A necessária regulação do mercado de planos de saúde
O desafio apresentado para o programa de governo do PT é a implementação de uma política que vise desprivatizar o sistema do país e desmercantilizar o Sistema Único de Saúde. Um programa que atenderia as necessidades da população, incluindo expressivos setores da base social.
Por Carlos Ocké*
Existe um desafio teórico para os petistas na formulação do programa de governo. Seria possível implementarmos uma política de saúde com o objetivo de desprivatizar o sistema brasileiro e desmercantilizar o Sistema Único de Saúde (SUS), integrando os orçamentos e os programas da seguridade social (assistência, previdência, saúde e seguro-desemprego)?
Visando suprir as necessidades de saúde da população, essa política atenderia setores expressivos da nossa base social, tem forte caráter redistributivo e dinamiza a cadeia produtiva keynesiana de maneira sustentável. Bem calibrada com o crescimento da economia, não desestabiliza o orçamento público e, em certas condições, contribui para a redução da inflação setorial1. Ela mexeria com pesados interesses econômicos, mas, na atual correlação de forças, pode ser aplicada com o apoio das Unidades da Federação, das instituições do Ministério da Saúde (MS), do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social e dos recursos do pré-sal, de forma progressiva e mediada, no futuro governo Dilma.
Em 1988, os reformistas apostaram na universalização para todos, na redução do mercado e na melhoria das condições de atenção médica em todos os níveis. Vinte anos depois, o projeto sanitarista colecionou experiências exitosas na erradicação de doenças, na redução da taxa de mortalidade infantil, na ampliação da assistência médico-hospitalar, na expansão do Programa Saúde da Família e das Unidades de Pronto Atendimento, virando referência mundial na prevenção e no tratamento da aids2.
O modo petista de governar contribuiu para a implantação do SUS, tensionando o caráter tecnocrático, hospitalocêntrico, fragmentado e liberal presente na história das políticas de saúde. No entanto, o financiamento público continua baixo, o mercado cresceu e a estratificação de clientela não foi superada.
Esse cenário se explica porque o Estado nunca dispôs de recursos para cobrir integralmente o polo dinâmico da População Economicamente Ativa (PEA) (o gasto público em saúde responde tão-somente por 45% do total)3, que tem capacidade de pressionar pelo alargamento do direito social encarnado no SUS (as centrais sindicais não pautaram o SUS em seu calendário de luta e a base aliada não votou a Contribuição Social para a Saúde em 2009).
A suposta ineficiência da gestão nas principais regiões metropolitanas decorre, em boa medida, dos gargalos do financiamento: a morte nas fi las dos hospitais é sua face mais perversa. Esse quadro reflete o estágio subdesenvolvido de construção de hegemonia do SUS.
Segundo pesquisa do Datafolha, a saúde é o principal problema do país e a área de pior desempenho do governo federal. A pesquisa de março de 2010 realizada pela Confederação Nacional da Indústria e pelo Ibope segue na mesma linha, reforçando a insatisfação com o setor público, porém igualmente com o setor privado – as queixas na Justiça contra os planos de saúde não param de crescer.
O caminho é o SUS
Para reverter esse quadro, devemos apostar no projeto igualitário, solidário e socialista do SUS, de modo a incrementar seu financiamento, diminuir a desigualdade de acesso, melhorar a qualidade dos serviços e planejar a relação público-privado (ampliando ações regulatórias, regulando a eficácia e necessidade da incorporação de tecnologia e refreando a duplicação da oferta).
Seria um erro, portanto, privilegiar uma visão fiscalista, em que o fomento ao mercado de planos de saúde aparece como solução pragmática para desonerar as contas públicas. Esse conservadorismo precisa ser superado na futura coalizão, dentro e fora do PT. Não foi essa concepção que levou a oposição a derrotar a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira no Senado? Não foi essa concepção, apesar da resistência de setores petistas da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que permitiu a captura da agência reguladora, constrangendo o interesse público e a agenda social do partido e de Lula?
Não há razões para consentir essa trajetória de desmonte, privatista. A luta pelo SUS pressupõe a adoção de políticas regulatórias, que tornem o mercado de planos, de fato, suplementar. Esse mercado, hoje, substitui o SUS, levando-nos a uma espécie de “americanização perversa”4.
O PT precisa refletir também sobre o imperativo de reformar o mercado, em direção a novos modos de intermediação do financiamento de serviços privados5. Caso não seja plausível hoje conceber o sistema fora das relações mercantis, dever-se-ia pensar em um tipo de propriedade privada de interesse público, um farol na regulação de preços, na padronização da cobertura, na melhoria da qualidade da atenção médica privada, na implantação de arranjos solidários e no cumprimento de metas clínicas e epidemiológicas do MS.
O próprio Estado poderia usar seu poder de compra (economia de escala) como braço de apoio regulatório da ANS, para relativizar o poder dos oligopólios e sancionar a concorrência regulada por meio da constituição de um plano de saúde entre servidores públicos e governo federal. Este, devido à larga escala do número de usuários e ao volume do gasto da União com a atenção médica dos servidores, a princípio permitiria um corte nos gastos de custeio da máquina.
As experiências organizacionais de instituições como o seguro-saúde do Banco do Brasil, a Fundação de Seguridade Social (Geap) e mesmo o novo seguro da Caixa Econômica Federal devem ser avaliadas pelo partido. De certa forma, foi essa a ideia-força que orientou a proposta do Plan Public Option da reforma de Obama6.
Nessa perspectiva, dentro de um projeto de capitalismo de Estado, sob hegemonia do SUS, o associativismo, o cooperativismo e a filantropia poderiam até se tornar aliados importantes na construção da esfera pública, em que as parcerias público-privadas atendessem às funções sociais e constitucionais da propriedade, contrabalançando o mercado tipicamente capitalista e o próprio empresariamento médico.
Acesse aqui o trabalho técnico “Mensuração dos Gastos Tributários: O Caso dos Planos de Saúde”, em que o autor analisa o mercado dos planos de saúde no país entre 2003 a 2011.
Notas
1. OCKÉ-REIS, C.O.; CARDOSO, S.S. “Uma descrição do comportamento dos preços dos planos de assistência à saúde 2001-2005”. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2006 (Texto pa ra Discussão 1.232).
2. CEBES, Centro de Estudos da Saúde. “SUS: qual é o rumo?” Documento elaborado com base no seminário do Cebes Gestão Pública na Saúde: Alternativas para a Consolidação do Direito Universal, realizado em dezembro de 2009, em Brasília (mimeo,11/3/2010).
3. OCKÉ-REIS, C.O. “A constituição de um modelo de atenção à saúde universal: uma promessa não cumprida pelo SUS?” Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2009 (Texto para Discussão 1.376).
4. VIANNA, M.L.T.W. A Americanização (Perversa) da Seguridade Social no Brasil: Estratégia de Bem-Estar e Políticas Públicas. Rio de Janeiro: Ucam-Iuperj, 1998.
5. OCKÉ-REIS, C.O. “Novos modelos para a saúde privada.” Desafios do Desenvolvimento, ano 2, n° 11, p. 63, 2005.
6. HACKER, J.S. “The case for public plan choice in national health reform. Key to cost control and quality coverage.” Washington: Institute for America’s Future: U.C. Berkeley School of Law, 2009 (Technical Paper).
*Carlos Octávio Ocké-Reis é técnico de Planejamento e Pesquisa DIEST-IPEA e conselheiro consultivo do Cebes
Artigo publicado no site Proposta e Debate, em 2010, com conjuntos de reflexões e propostas válidas na conjuntura das Eleições de 2014