A política dita de “austeridade” econômica de Temer e Meirelles
Paulo Henrique Rodrigues* | A Verdade
Pode-se afirmar hoje que é o Estado brasileiro que está em crise, por conta do esgotamento tanto do modelo político, que foi estabelecido pela ditadura militar no final dos anos 1970, quanto do modelo econômico de subordinação ao imperialismo, imposto a partir dos anos 1990. Ambos os modelos decorrem do processo que levou à crise e ao fim da ditadura militar brasileira ao final dos anos 1970 e permitiu a passagem para o regime de democracia burguesa iniciado em 1985.
A crise da ditadura foi causada não só pela crescente perda de legitimidade do regime militar, mas também pela crise da dívida externa provocada pela guinada dos juros norte-americanos decidida por Paul Volcker, presidente à época do FED, o banco central dos EUA. Em pouco mais de um ano, os juros dos títulos do Tesouro norte-americano passaram de cerca de 2% ao ano para 21,5%, dando início a uma crise da dívida externa que não foi só brasileira, mas dos países de toda América Latina, do Leste Europeu e da África.
A crise econômica imposta aos países dessas regiões do mundo foi logo depois agravada pela política neoliberal do governo de Ronald Reagan, a partir de 1981. Esses dois fatores criaram as condições para a imposição do ajuste estrutural a essas regiões do mundo, que visava garantir uma brutal transferência de excedentes econômicos das mesmas para o centro do sistema, ou seja, a economia norte-americana. Tratava-se de uma guinada de 180 graus em relação ao período anterior, no qual políticas keynesianas haviam permitido a recuperação do sistema capitalista depois das duas guerras mundiais e a conquista pelos trabalhadores em alguns países de sistemas de bem-estar social que melhoraram as condições de vida para uma parte da humanidade, principalmente nos países ricos.
A política de ajuste estrutural foi executada de forma impiedosa pelo FMI e pelo Banco Mundial, sob o controle direto do Departamento do Tesouro e do Federal Reserve norte-americanos, que impuseram uma nova divisão internacional do trabalho. Encerrava-se o período em que a dominação norte-americana sobre o sistema capitalista convivia com formas de organização econômica relativamente soberana em alguns países. Entre a 2ª Guerra Mundial e 1980, o socialismo se expandiu da União Soviética para o Leste Europeu, Coreia do Norte, China, Cuba, Vietnã e Laos. Da mesma forma, nos países latino-americanos desenvolveu-se uma política de substituição de importações, particularmente no Brasil, que permitiu rápida industrialização e a melhoria das condições de vida para uma parcela importante dos trabalhadores.
Em 1955, realizou-se na Indonésia a Conferência de Bandung, com a participação de 29 países asiáticos e africanos, que formaram o Movimento dos Países Não Alinhados, os quais também buscavam um desenvolvimento com soberania em relação ao imperialismo. Tudo isso se encerrou de forma brutal, a partir da imposição da política neoliberal de ajuste estrutural, imposto pelo garrote da dívida externa.
No Brasil, essa política encerrou os cinquenta anos de predomínio do nacional-desenvolvimentismo, iniciado por Getúlio Vargas em 1930, que assegurou a industrialização do país, o crescimento da classe operária e as conquistas dos direitos trabalhistas, cujo maior símbolo foi a Consolidação das Leis do Trabalho de 1945 e, nos anos 1980, o início da conquista de direitos sociais universais, estabelecidos pela Constituição Federal de 1988.
A crise da dívida fabricada pelo FED norte-americano e a imposição do ajuste estrutural abriram espaço para que Fernando Collor de Mello chegasse ao poder, em 1990, adotando um modelo econômico de total subordinação ao imperialismo. Esse novo modelo, justificado pelas ideias neoliberais, abriu a economia, promoveu a privatização das empresas estatais, deu início à desregulamentação das relações trabalhistas, promoveu intensa desnacionalização da economia, interrompeu o esforço de substituição de importações colocando a produção das chamadas commodities agrícolas e minerais, ou matérias-primas, como o centro de nossa economia, juntamente com o crescente poder dos grandes bancos.
A partir de então, o Brasil passou a se inserir de forma subordinada na economia internacional, importando cada vez mais produtos industrializados e serviços sofisticados, em troca da exportação de commodities, tal qual nos tempos em que era colônia. O atual modelo econômico não é capaz de gerar empregos suficientes para uma população de quase 210 milhões de pessoas, nem excedentes tributários capazes de financiar as indispensáveis políticas sociais que possam dar condições de vida minimamente dignas para os trabalhadores. Também é responsável por uma dependência científico-tecnológica que se expressa na crescente necessidade de importação de bens industrializados de toda ordem.
As consequências sobre as políticas públicas sociais e de saúde são enormes, basta ver as consequências do fim da proteção à produção interna de medicamentos decidida no governo Collor e a aceitação submissa da legislação patentária pelos governos Collor e Fernando Henrique Cardoso (FHC). A devastação na capacidade de produção de farmoquímicos fez com que a fabricação interna caísse de 80% das necessidades em 1990 para menos de 10% em 2015. Em função disso, o país se tornou tão vulnerável do ponto de vista econômico e sanitário que já não temos condições sequer de tratar a sífilis congênita, que depende de um antibiótico relativamente simples e de baixo custo, a penicilina benzatina.
A vulnerabilidade do modelo econômico atual foi disfarçada durante os anos 2000, porque o acelerado crescimento chinês valorizou os preços das commodities brasileiras, gerando uma ilusão de crescimento e bem-estar interno. A política econômica do governo Lula, apesar da retórica mal costurada do chamado “neodesenvolvimentismo”, teve como sua verdadeira face o estímulo aos grandes grupos do agronegócio e da mineração, aumentando as fortunas de figuras como Eike Batista, os irmãos Wesley e Joesley Batista, do grupo JBS, a BRFoods de Luiz Fernando Furlan, todas empresas exportadoras de commodities.
Com base numa política de aliança de classes com banqueiros, mineradores e exploradores do agronegócio, os governos petistas não só mantiveram, como estimularam o aprofundamento do modelo subordinado. A crise de 2008 e a redução do ritmo de aumento das importações de commodities pela China, entretanto, derrubaram as cotações desses produtos e, junto com elas, as ilusões do crescimento fácil com base no modelo subordinado e de aliança de classes. Apesar da promessa de Lula de que a crise internacional só chegaria para nós como uma “marolinha”, o Brasil mergulhou na mais profunda depressão econômica de sua história. A partir de 2008 fica a cada dia mais claro que o atual modelo econômico esgotou-se e terá de ser substituído com urgência, ou o Brasil estará condenado a um retrocesso sem paralelo na história.
A tentativa do governo Temer de aprofundar esse modelo, com medidas ultraliberais ditas de “austeridade econômica”, só vem contribuindo para agravar ainda mais a situação, mas, além da clara tentativa de radicalizar o modelo, elas servem de base na verdade para tentar quebrar a resistência popular para a destruição dos direitos trabalhistas e sociais e para a mais desavergonhada venda do patrimônio nacional.
O sistema político-eleitoral que sustentou este modelo econômico foi decorrente das medidas engendradas pelo general Golbery do Couto e Silva no governo Ernesto Geisel. Elas visavam dar uma sobrevida à ditadura militar diante do fortalecimento das lutas populares e o crescimento do antigo MDB, único partido de oposição permitido. A primeira dessas medidas foi o Pacote de Abril de 1977, que distorceu os critérios de representatividade eleitoral em favor das regiões dominadas pela antiga Arena e pelas oligarquias retrógradas que apoiavam o governo. As consequências podem ser avaliadas pelo fato de que um eleitor de Roraima – o estado menos populoso – valer por 12,3 paulistas, do estado mais povoado do Brasil. A segunda – a reforma partidária de 1979 – visava esfacelar o partido de oposição, o MDB, e facilitou de tal maneira a criação de novos partidos, que temos hoje 32 partidos com representação no congresso, com vários outros em formação, contra apenas cinco em 1989.
Tal fragmentação torna qualquer governo refém de uma ampla coalizão de partidos, muitos deles meras legendas de aluguel, dominada por oligarcas reacionários. A amplitude das coalizões de governo vem impedindo que se dê qualquer rumo estratégico para o país, tendo impedido ou descaracterizado qualquer programa de governo eleito. A crescente fragmentação do quadro partidário dominada por partidos que são, na verdade, balcões de negócios tornou o país ingovernável, gerando o chamado presidencialismo de coalizão. O número de partidos no governo cresceu de uma média de três no início dos anos 1990 para uma média de nove no final dos governos petistas.
Outra característica de nosso sistema político-eleitoral vem dos anos 1930, que consagrou circunscrições eleitorais que correspondem ao território dos estados. Os votos têm de ser disputados em territórios imensos, que exigem acordos e campanhas eleitorais dispersas e tornaram nossas eleições umas das mais caras e mais impopulares do mundo. Para sustentar tal sistema são necessárias montanhas crescentes de dinheiro, que geraram o sistema político provavelmente mais corrupto do mundo. Tal sistema não foi reformado na passagem do regime militar para a democracia, em 1985-1988, porque não tivemos uma assembleia constituinte, mas um congresso constituinte, eleito pelas regras já existentes. Nossos constituintes eram vencedores nessas regras, não tiveram qualquer motivação para alterá-las e as bases do sistema político-eleitoral são essencialmente às mesmas até hoje, com as sérias consequências que estamos vivendo.
Modelo esgotado
Assim como o modelo econômico, o sistema político-eleitoral também se esgotou. A fragmentação partidária forçou o Executivo a se tornar um condomínio frouxo de um número crescente de partidos incapaz de governar. A estrutura eleitoral e os custos financeiros decorrentes tornaram o sistema dependente da criminosa simbiose entre os grandes grupos econômicos e os políticos, que vem gerando escândalos e mais escândalos de corrupção, mais evidentes depois do início da Operação Lava-Jato, iniciada em março de 2014. Os poderes Executivo e Legislativo tornam-se crescentemente inoperantes, fazendo que a maior parte das decisões relevantes sejam levadas ao Supremo Tribunal Federal.
Em função do acirramento da conjuntura política, a partir das manifestações de 2013, houve, inicialmente, uma certa leitura maniqueísta da Lava-Jato, que a identificou apenas com o golpismo contra o governo petista. Hoje, quando a continuidade da mesma atinge até mesmo as cúpulas do PMDB e do PSDB e o próprio Michel Temer, fica evidente a fragilidade de tal interpretação. Estamos assistindo, na realidade, ao colapso do sistema político. A solução para a crise política não está nem no Congresso Nacional, incapaz de reformar as regras atuais, por ser fruto das mesmas, nem em meras eleições diretas, que embora necessárias, serão conduzidas pelas mesmas forças que dominam o atual Congresso.
As origens do modelo econômico e do sistema político-eleitoral são distintas, mas o segundo foi funcional para o primeiro. O regime militar reforçou as oligarquias tradicionais, secularmente ligadas ao latifúndio, muitas das quais passaram a explorar o agronegócio. Fortalecidas política e economicamente, essas oligarquias vêm reinando junto com os interesses das altas finanças e da mineração privatizada no governo Collor. Esse modelo iniciado naquele governo foi consolidado por FHC e continuado por Lula e Dilma.
Durante quase todos os anos 2000, a “carona da China” inflacionou nossas commodities e gerou a ilusão do ouro dos tolos, estimulando as viagens internacionais da classe média, uma espécie de “Bolsa Miami”. Essa situação permitiu a política de conciliação de classes em que Lula e Dilma davam uma mão para o MST e outra para Luiz Fernando Furlan, da Sadia/BR Foods, ou para Kátia Abreu, representantes do agronegócio.
A crise de 2008, ao derrubar os preços das nossas commodities, acabou com as bases da relativa bonança, acirrou o conflito distributivo e causou principalmente o rancor da classe média, que a levou momentaneamente para os braços da direita fascista dos recém criados Movimento Brasil Livre (MBL) e Vem para Rua, facilitando o impeachment de Dilma e a ascensão do governo ultraliberal de Michel Temer.
A virada à direita, levou Temer ao governo provisório em maio de 2016 e definitivo em agosto do mesmo ano. Esse governo, constituído de forma ilegítima, pôde contar com ampla base no Congresso mais conservador de nossa história, mas com baixíssima popularidade. Suas medidas reacionárias vêm destruindo as conquistas trabalhistas e sociais dos últimos 30 anos e promovendo um brutal ajuste econômico e financeiro, que geraram um desemprego de mais de 13% dos trabalhadores e a maior depressão econômica da história. Como resultado, até a classe média, que apoiara nas ruas e em panelaços o golpe parlamentar de 2016, saiu das ruas e vem esboçando um afastamento das lideranças fascistas. A perda de empregos e dos planos de saúde privados, aliada à continuidade e agravamento dos escândalos de corrupção, esvaziou, pelo menos por hora, a capacidade da direita galvanizar parte das classes médias. As ruas vêm sendo ocupadas cada vez mais pelo movimento popular e pela oposição de esquerda, que se mobilizam de forma crescente contra as reformas econômicas e sociais de caráter reacionário do governo.
O movimento social demonstrou sua força tanto na histórica greve geral de 28 de abril passado em todo o país, quanto na manifestação em Brasília no último dia 24 de maio, selvagemente reprimida pela polícia e pelos militares.
Poder popular
É necessário desmascarar perante as massas os verdadeiros objetivos da política dita de “austeridade” da dupla Temer/Meirelles. Sob a desculpa de que não há recursos públicos para nada, que há um enorme déficit público, essa política vem promovendo uma gigantesca redução dos gastos com saúde e educação e gerando uma brutal recessão e desemprego. Ao mesmo tempo, o país mantém uma enorme reserva financeira internacional aplicada em títulos da dívida do governo dos EUA, que tem um enorme custo para a sociedade brasileira.
Segundo o Banco Central do Brasil, a posição das reservas internacionais do Brasil, no final de agosto de 2017 era de US$ 381,89 bilhões (Bacen: 30/08/17). Tais reservas têm elevado custo cambial, fiscal e social para o país e, pelo menos parte delas, poderiam ser utilizadas para tirar o país da recessão, desde que utilizadas para promover investimentos de infraestrutura que poderiam gerar empregos e movimentar a economia.
O economista Reinaldo Gonçalves, no livro “Desenvolvimento às avessas: verdade, má-fé e ilusão no atual modelo brasileiro de desenvolvimento” (2013), calculou que somente entre 2009 e 2011 o custo cambial médio por ano das reservas foi de US$ 5,7 bilhões e o custo fiscal anual de mais de US$ 49 milhões, ou seja, a manutenção dessas reservas vinha custando praticamente US$ 6 bilhões de dólares, sem que a população tire qualquer benefício disso. Porque manter reservas tão grandes, enquanto se mata a população de fome através da recessão e do desemprego?
Os objetivos ficam cada vez mais claros: o desemprego visa quebrar a resistência das massas trabalhadoras à retirada dos seus direitos, a recessão visa entregar o país ao imperialismo, através da venda mais descarada das empresas estatais a preço de banana, desvalorizadas pela crise. A Eletrobrás, por exemplo, que não foi privatizada nem por Collor, FHC, Lula ou Dilma, agora está à venda; valia cerca de US$ 40 bilhões um ano atrás, só vale US$ 25 bilhões agora.
Quanto mais a dupla Temer e Meirelles promove a recessão, mais piora a situação das finanças públicas, reforçando sua justificativa de mais e mais cortes de gastos e direitos. Perante a política atual genocida de destruição dos direitos e empregos e de venda do patrimônio nacional, é enorme a responsabilidade das forças de esquerda, populares e democráticas no sentido da construção de um projeto de poder popular alternativo.
O momento atual clama pela construção da união entre essas forças. Nesse processo será importante ter cuidado para não se repetir a fracassada experiência de conciliação de classe promovida pelos governos petistas. É hora de aprender com os erros e buscar a união sem sectarismo, para se poder formar uma frente popular e democrática capaz de redefinir os rumos do Estado brasileiro, abrindo espaço para novos modelos econômico e político de caráter popular e soberano.
* – Paulo Henrique Rodrigues, sociólogo, doutor em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ e diretor do Cebes.