A regulamentação de um estado de exceção
Correio Braziliense – 01/03/2012
Por Edmar Oliveira – Médico psiquiatra, ex-diretor do Instituto Municipal Nise da Silveira, autor de Ouvindo vozes e von Meduna, ambos sobre a prática em saúde mental
A Comissão de Assuntos Sociais do Senado se prepara para votar o Projeto de Lei (PLS) 111/10, que permite a internação compulsória do usuário de drogas, bastando para isso a autorização de um laudo médico. A proposta do PLS foi apresentada por senador do DEM, que previa originalmente a prisão do usuário. Dois outros senadores, da oposição, “melhoraram” o texto original trocando a prisão pela “internação compulsória”, num ato falho que expõe o caráter repressivo do recolhimento. Mais grave ainda é a avaliação dos senadores para a facilidade da aprovação do PL, já que o Ministério da Saúde autoriza a “tese” (sic), na interpretação dos políticos de oposição às recentes declarações do ministro da Saúde sobre o tema.
Duas consequências serão inevitáveis se tal projeto tornar-se lei. Primeiro, desfigura-se a Lei 10.216/2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais. Nela já se permite a internação involuntária, por ato médico, mas é necessário ao Judiciário determinar a internação compulsória, pois tal instrumento necessita de processo jurídico. Mesmo na internação involuntária, a 10.216 (número da legalidade já decorado pelos defensores da reforma psiquiátrica) obriga o internante a comunicar ao Ministério Público, que zela pela garantia dos direitos individuais.
Isso possibilita ao internado requerer sua defesa se se sentir lesado. Portanto não são sinônimos como às vezes se quer fazer acreditar por má-fé. A internação involuntária deve ser uma indicação clínica extrema, e provisória, para um paciente que será assistido pelo médico requisitante, conforme determina a lei, e com direitos de garantia de posterior discordância do internado. Na internação compulsória, cessam-se os direitos individuais e, por isso, a Lei 10.216 exige um processo jurídico e determinação judicial. Aprovada a PLS 111/10, parte significativa e essencial da proteção legislativa aos portadores de transtornos mentais será eliminada.
Segundo, haverá uma consequência trágica para o estado democrático. Aprovado o PLS 111, o Estado se coloca no direito de tirar o cidadão das ruas por uso de drogas com o Recolhimento Involuntário de pessoas indesejáveis à sociedade. Por isso os autores da “melhoria da lei” traíram-se na proposta de emenda. Não se troca “prisão” por “internação”. Mas “prisão” por “recolhimento”, o que vem a ser o mesmo. E compulsórios os dois.
Para os que não viveram os anos de chumbo, relembro um acontecimento de abusos do “poder médico”, entre outros. No Rio de Janeiro, durante a ditadura militar, uma clínica particular da Zona Oeste tinha por prática recolher mendigos e bêbados nas ruas da Zona Sul e, posteriormente, levar os recolhidos para obter “autorização de internação” nos postos de saúde do antigo Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social). Tais autorizações eram dadas por médicos que trabalhavam na referida clínica, quando não eram sócios nessa promiscuidade público-privada. Fazia-se dos desvalidos o lucro dos descarados. Mas eram anos de chumbo. E essas práticas ficaram envergonhadas diante do vigor de uma democracia que construímos nas lutas que fizeram o antigo regime desmoronar. Reclamávamos todos, os democratas, do uso da psiquiatria como prática repressiva de Estado, como acontecia no stalinismo.
Vivemos uma democracia que possibilitou nosso crescimento como nação. De fato, o país vem crescendo e se desenvolvendo como nunca. Para os incluídos. Aos excluídos urbanos a democracia pode estar regulamentando um Estado de exceção — usando a psiquiatria como instrumento repressivo do Estado como se fez nas ditaduras. Isso é grave.