A saúde que nós mulheres esperamos
Ana Maria Costa
O Ministro Alexandre Padilha, no discurso de sua posse, afirmou que a saúde das mulheres será prioridade de sua gestão. Mais uma vez celebramos o fato já que não é o primeiro ministro que anuncia isso. Mas o fato é que na prática contabilizamos retrocessos. É por isso que ainda é importante dizer o que nós mulheres esperamos, ou melhor, o que precisamos em saúde.
A primeira coisa que temos a lembrar é que nossas necessidades de saúde não se restringem ao cuidado de pré-natal e à atenção ao parto. Ao tempo em que pontuamos a gravidade em restringir as políticas para a saúde das mulheres às necessidades reprodutivas, é importante lembrar ao Governo que as mulheres grávidas têm as mesmas necessidades de saúde das outras mulheres.
Nessa perspectiva, é urgente admitir o que os números nos revelam quanto à dimensão do aborto e suas consequências no adoecimento e na morte das mulheres brasileiras. E para não restringir a saúde reprodutiva ao ciclo gestação, parto e puerpério, a saúde reprodutiva das mulheres deve ser acrescida da oferta de serviços de planejamento familiar para as que querem ou não engravidar, atenção apropriada ao abortamento, seja ele espontâneo ou não. É por isso que o projeto Rede Cegonha (que nome infeliz e impróprio!) precisa ter o cuidado de não reduzir estas demandas, mesmo considerando, lamentavelmente, o foco na saúde reprodutiva!
Desde o início da década de 1980 vem se falando na integralidade como atributo para a saúde da mulher com enfoque ampliado e complexo acerca da condição, das necessidades e das demandas femininas em saúde. Sustentado na retórica, o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM) – sigla que correu o mundo para referir à política de saúde integral para as mulheres – foi gradualmente dilapidado e, a cada vez, mais reduzido e fragmentado até serem ressuscitados os programas de cunho “ materno infantil”. Estes programas proliferaram nos municípios e estados brasileiros sob diversas “marcas”: Mãe Curitibana, Nascer Sorrindo, Nascer com Cidadania etc.. Todos eles, além de não considerarem a amplitude das questões de saúde das mulheres, são reducionistas mesmo tomando a referência do foco reprodutivo, porque elegem como objeto apenas as necessidades relacionadas ao desfecho da gravidez e do bebê.
Com isso, as mulheres vêm perdendo a chance de conquistar uma revolução no conceito e nas práticas de saúde, estruturadas na transformação dos serviços de saúde em lugares que as respeitam e promovem o empoderamento e a autonomia em relação às decisões sobre sua saúde. Essa transformação toma como base o papel social das mulheres e a complexa situação de saúde que decorre da sobrecarga e da discriminação intrínseca nas relações de gênero e suas repercussões sobre o processo saúde doença. No mundo real, as mulheres – grávidas ou não – convivem com a violência, a AIDS, drogas, depressão, câncer, etc entremeadas por questões relacionadas à sexualidade, ciclos de vida, raça, pobreza, segurança alimentar etc.
O significado desta mudança de concepção e de práticas nos serviços de saúde é um campo que necessita ser devidamente politizado na sociedade e internamente no SUS. Há consistentes evidências sobre o uso abusivo e desnecessário de tecnologias e medicamentos levando à iatrogenia, violência e insegurança do cuidado. Além disso, esse abuso tem consequência direta nos gastos financeiros. É por isso que, mais que a garantia do acesso, é preciso garantir o direito a saúde. Com qualidade.
A garantia do direito à saúde das mulheres deve ser resgatada na sua radicalidade e isso requer transformações que ofereçam não apenas serviços articulados em rede, mas uma outra cultura de cuidados de saúde, que tenha sob foco principal as mulheres, suas subjetividades, dores e sofrimentos além de ter como perspectiva a garantia de seus direitos.
É necessário garantir mudanças na assistência hospitalar, que são penosas para as mulheres, apesar do elevado volume das internações femininas no SUS não apenas pelas clássicas causas reprodutivas (parto, aborto, etc). A garantia de assistência ao parto é um discurso recorrente no SUS, mas as mulheres ainda não têm garantia de acesso à maternidade no momento de parir. Apesar de ter no Brasil uma lei que reconhece os benefícios e dá direito a um acompanhante no momento do parto, o seu cumprimento é nacionalmente sabotado.
É urgente mobilizar a sociedade brasileira, o sistema formador de profissionais e o conjunto dos trabalhadores de saúde por mudanças no modelo de atenção ao parto no país. O modelo de parto praticado hoje “pessimiza” e torna dolorosa – quando não, trágica – a experiência do parto, com a sucessão abusiva de intervenções obsoletas, arriscadas e dolorosas que são usadas rotineiramente. Episiotomia, ocitocina, parto deitada e imobilizada, sem acompanhante compõem a rotina das parturientes , tanto no SUS quanto nos serviços privados/conveniados. Esse abuso de tecnologias ineficientes e violentas, é resistente a toda a evidência cientifica em contrário.
Quanto ao planejamento familiar, hoje o SUS dispõe e oferece métodos contraceptivos em toda sua rede. Sem as práticas educativas, que permitem escolhas melhor fundamentadas por parte das mulheres, pode se falar que há uma indução passiva dos profissionais na seleção dos métodos contraceptivos. Na falta de autonomia na decisão das mulheres, o que prevalece no quadro da distribuição do uso de métodos contraceptivos entre as mulheres brasileiras é a polarização: laqueadura tubária e contraceptivos hormonais (orais e injetáveis). Os hormonais são, praticamente, universalizados na oferta do SUS. É urgente retomar e valorizar a informação, a educação em saúde como ação dos serviços de saúde e , nesse caso, como estratégia para a escolha autônoma das mulheres e, ao mesmo tempo, assegurar menor risco às usuárias de métodos contraceptivos.
São necessárias medidas para prevenir gravidez indesejada, que sejam simultâneas a outras medidas que visem redução da mortalidade por aborto. O SUS deve adotar iniciativas para a humanização da atenção ao aborto, independente de ser espontâneo ou provocado. Os serviços de saúde não podem julgar e penalizar as mulheres como acontece. É necessário uma profunda transformação cultural nos serviços, nos profissionais de saúde e na opinião pública, pois boa parte das mortes por causa do aborto ocorre em serviços de saúde, onde as mulheres são muitas vezes sujeitas a negligências e abusos.
É importante lembrar a respeito que nossa Presidenta Dilma disse em campanha e já o repetiu posteriormente, “(…) Não acho certo as mulheres morrerem por não serem atendidas, quando provocam o aborto”. Nessa perspectiva, é urgente adotar o conceito da “redução de danos” para o caso do aborto inseguro. Esse conceito já vem sendo incorporado na saúde publica brasileira para outras situações similares onde prevalece o interesse de salvar vidas. Trata se de um imperativo ético impedir que estas mulheres morram. Para não morrer, as mulheres precisam de acolhimento, informações, insumos, serviços de saúde que lhes garantam a sobrevivência e a vida. É isso que nós mulheres esperamos da saúde no SUS do Governo da Presidenta Dilma.
Ana Costa é Medica Sanitarista, Doutora em Ciências da Saúde, Diretora Executiva do CEBES (Centro Brasileiro de Estudos de Saúde), integrante de Grupo de Trabalho Gênero e Saúde da ABRASCO (Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva).