A volta por cima
O Estado de S. Paulo – 03/11/2011
A conduta pública do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva desde que soube que tem câncer na laringe é a melhor resposta que ele poderia dar às baixezas de que tem sido alvo nas chamadas redes sociais e outros meios de expressão na internet. Mentalidades encardidas, incapazes de distinguir entre rejeição política e respeito pelas vicissitudes pessoais daqueles a quem combatem na cena pública, deram vazão ao que o antecessor Fernando Henrique Cardoso chamou de “recalques” – talvez para não dizer algo pior. Com indisfarçado gozo com o sofrimento alheio, batem na tecla de que Lula devia se tratar no SUS para sentir na pele as mazelas da saúde pública no País que, certa vez, em um dos seus arroubos autocongratulatórios – que este jornal jamais deixou de criticar -, declarou não estar longe de “atingir a perfeição”.
Quanto mais não seja, os tipos que espelham nas novas mídias a própria mesquinhez nem sequer se perguntaram se o ex-presidente dispõe de um plano de saúde que cubra o seu tratamento numa instituição de primeira linha. Na realidade, conforme se noticiou, não só dispõe de um seguro do gênero, como ainda, depois de oito anos no Planalto e com as conferências altamente remuneradas que tem sido convidado a fazer, amealhou recursos pessoais para eventualmente complementar as suas despesas médico-hospitalares. É sabido que em toda parte a internet é também um repositório de torpezas. Mas não é em toda parte que líderes políticos contribuem, pelo modo como reagem a uma grave enfermidade, para elevar os padrões da ética pública em seus países – o que inclui, parafraseando Thomas Jefferson, um respeito decente pela opinião da sociedade.
Informado de sua condição, Lula decidiu que não se deveria sonegar dos brasileiros a verdade sobre o seu estado, o resultado dos exames a que se submeteu para aferir a gravidade da sua moléstia, a natureza, duração e efeitos colaterais da terapia que estava para começar, bem assim os prognósticos a que a sua equipe médica podia chegar já nesse estágio. Fez o que não foi capaz de fazer, para citar um exemplo estrangeiro notório, o então presidente francês François Mitterand que escondeu estar acometido de câncer na próstata na maior parte dos 14 anos em que exerceu o poder, entre 1981 e 1995. Lula, a rigor, não foi o primeiro político brasileiro de envergadura a jogar limpo numa situação como essa – que, inevitavelmente, provoca especulações nem sempre otimistas sobre o seu desempenho futuro.
A primazia, até onde chega a memória, foi do governador paulista Mário Covas, cuja incapacitação, licença e afinal falecimento, em 2001, aos 71 anos, vítima de câncer na bexiga, influiu nos rumos da política nacional. Tampouco o vice de Lula, o empresário José Alencar, tentou em algum momento ocultar a sua luta de 11 anos e 15 cirurgias contra um câncer abdominal. Ao contrário, foi um exemplo de tenacidade. E o próprio presidente não há de ter estado alheio à decisão da então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, de revelar, em abril de 2009, ter iniciado tratamento contra um câncer no sistema linfático e, desde então, de manter o Brasil informado do seu caso. Àquela altura, já se sabia que era a candidata escolhida por Lula – e os dois, principalmente ela, tiveram de suportar as conjecturas saídas na imprensa sobre o eventual colapso de sua candidatura.
Agora, o ex-presidente não apenas mandou que falassem a verdade a respeito de sua saúde, mas faz ainda outra coisa que se espera de uma figura com a sua estelar popularidade. À maneira de José Alencar, ensina pelo exemplo que o câncer não deve prostrar os seus portadores – que é o que os oncologistas vivem dizendo a seus pacientes e aos familiares deles, por saber que o ânimo dos enfermos desempenha um papel não negligível para as suas chances de recuperação. O vídeo que divulgou anteontem, no qual afirmou que “não existe espaço para pessimismo”, despedindo-se com um “até a primeira assembleia, o primeiro comício, o primeiro ato público”, é puro Lula.
Dando a volta por cima do susto inicial, vai tirar do drama pessoal o que ele lhe pode render de acréscimo na sua já formidável popularidade.