“Aborto é questão de saúde pública e não moeda de troca eleitoral”
A Igreja Católica utilizou o momento de vinda do papa Francisco para marcar posição sobre temas polêmicos, como a questão da homossexualidade e do aborto. Kits foram distribuídos criticando o uso da expressão “interrupção da gravidez”, pois “mascara a realidade, ocultando a morte da criança”. Com o recente avanço do estatuto do nascituro, o momento sinaliza a urgência de continuarmos o debate sobre o explícito desrespeito à laicidade do Estado e sobre o aborto enquanto questão de saúde pública. Por isso, o Cebes entrevistou o coordenador do Grupo de Estudos sobre Aborto na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Thomaz Rafael Gollop, imprescindível no debate do STF e nas sociedades científicas. Segundo Gollop, houve retrocesso na discussão sobre o tema.
1. O aborto é um grave problema de saúde pública nos países da América do Sul e a magnitude de sua ocorrência no Brasil e as complicações à saúde por causa de sua clandestinidade ocasionam mortes que poderiam ser evitadas por atenção adequada e oportuna. Nesse sentido, e na sua visão, qual deveria ser o papel do SUS no acolhimento da mulher que opta pelo aborto?
Houve um programa de Saúde Pública muito bem sucedido no Uruguai apoiado pela Organização Panamericana de Saúde (OPAS), denominado REDUÇÃO DE DANOS. Este programa visava orientar a mulher sobre os riscos do abortamento inseguro e como fazer para evitá-los. Além disso, a mulher retornava ao atendimento médico após o abortamento para receber orientação anticoncepcional e assim evitar uma nova gravidez indesejada. No Uruguai, o Misoprostol (Cytotec) é vendido nas farmácias e, portanto, lá os médicos podiam orientar as mulheres como utilizá-lo. No Brasil, o Misoprostol é de uso exclusivo hospitalar. Entretanto, penso que será possível, um dia, adaptar a experiência uruguaia ao Brasil e procurar assim minimizar os danos à saúde e a vida das mulheres brasileiras.
2. Como o debate sobre o aborto vem ocorrendo no Brasil e quais são, na sua avaliação, as perspectivas de legalização?
É inquestionável que houve um retrocesso na discussão sobre o aborto nos últimos anos. Em primeiríssimo lugar os legisladores e políticos no Brasil esqueceram-se, entre outros, do princípio constitucional da LAICIDADE DO ESTADO. Estado Laico significa que não há controle das Igrejas e do clero sobre o Estado. Todas as religiões e seus dogmas são respeitados, mas não há ingerência delas sobre a gestão do Estado e sobre a formulação das Leis. O que vemos hoje no Brasil é uma enorme confusão e eu diria que há uma submissão de legisladores, políticos e candidatos à representantes de diversas correntes religiosas. Mais além, não há uma discussão madura da questão do aborto com a sociedade civil. Em todas as classes sociais muito poucas pessoas sabem que o Código Penal vigente pune a mulher que pratica um aborto com 1 a 3 anos de CADEIA. A Lei vigente de 1940 é anacrônica e INEFICAZ. Felizmente, muito raramente uma mulher é presa em função de ter praticado aborto. As pessoas em geral consideram que a discussão do aborto deve obter um consenso: isto é impossível. As sociedades humanas são multiculturais. A questão do aborto insere-se no Direito Humano das Mulheres e deve ser vista dentro dos Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos. A futura despenalização do Aborto vai depender de uma prévia discussão adequadamente realizada com a sociedade civil. As pessoas precisam saber que o aborto inseguro é a quinta causa de mortes maternas no Brasil.
3. Como avalia o avanço da aprovação do estatuto do nascituro, considerando suas implicações na questão do aborto?
O Estatuto do Nascituro é uma aberração. É um desrespeito às mulheres. É um desrespeito à vida humana. Considerar que uma mulher vai manter tranquilamente uma gravidez em função de receber “uma bolsa” é achar que a vida humana pode ser mercantilizada. Para mulheres e homens o Projeto de ter um filho é de ordem afetiva; é um projeto de vida. Gravidez após violência é desprovida de projetos e de afetividade. Gostaria de saber, caso homens engravidassem, se algum dos senhores que propõem esta aberração que é o Estatuto manteria sua gestão.
4. Quais são os impasses para uma mulher que tem uma gravidez com feto portador de patologia genética ter o seu direito assegurado ao aborto?
Desde 1989 a maioria dos juízes de primeira instância tem permitido, através de alvarás judiciais, que mulheres possam optar por interromper gestações de fetos com afecções incompatíveis com a vida. Em 12 de abril de 2012 o Supremo Tribunal Federal votou favoravelmente a Ação que discutia especificamente a interrupção em casos de fetos anencefálicos. A questão é que os avanços da biologia molecular permitiram o diagnóstico de centenas de doenças genéticas. O Projeto do Novo Código Penal, que está no Senado, prevê a permissão da interrupção de gestações com fetos portadores de doenças graves geneticamente determinadas. A questão é que as leis são atualizadas com descompasso enorme em relação aos avanços da ciência.
5. O Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres recentemente inquiriu o Ministro Padilha sobre a retirada do aborto da pauta do Ministério da Saúde, inclusive eliminando textos de documentos que eventualmente definiam ações de saúde relacionadas aos direitos sexuais e reprodutivos e ao aborto. Propostas da natureza do Estatuto do Nascituro ganham espaço no Congresso. No plano político, qual a sua visão sobre o contexto no Parlamento e na sociedade nacional?
Temos dados concretos: quando a Ministra Eleonora Menicucci assumiu a Secretaria das Políticas para as Mulheres, houve uma orientação direta da Presidente Dilma para que a questão do Aborto não fosse discutida por sua pasta. Nossos políticos olham esta questão com viés exclusivamente eleitoral. Esquecem-se que hoje a maioria dos eleitores é composta por mulheres. A questão do Aborto é vista pelos políticos não como questão de Saúde Pública e sim como “moeda de troca” eleitoral.