Aborto invisível

Por Jacqueline Pitanguy.

 

Duas tragédias recentes acenderam o sinal vermelho sobre a realidade do aborto no Brasil. Jandira Magdalena, de 27 anos, dois filhos, desapareceu após sair de casa para interromper uma gravidez indesejada e tomou um carro que a levaria rumo à violência e à insegurança do aborto clandestino e suas consequências. Seu corpo carbonizado foi encontrado quase um mês depois. Elizângela, de 32 anos e mãe de 3 filhos, também embarcou no cenário de horror do aborto criminalizado. Seu corpo foi abandonado em frente a um hospital.

Em muitos outros países, que consideramos civilizados, Jandira e Elizângela teriam tido acesso à interrupção da gravidez de forma segura, com procedimento realizado por profissionais qualificados. Aqui, viraram página policial, quando, na realidade, desvendaram uma página que ilustra o descalabro do aborto no país, permitido apenas em casos de estupro e risco de vida — permissivos que datam ainda de 1940. Só em 2012, por decisão do STF, foi aprovada a interrupção de gestação de feto anencefálico.

Mesmo nas circunstâncias em que é legal, sua prática é constantemente ameaçada pela saga persecutória de setores político-religiosos que constituem hoje uma força que pretende definir prioridades e rumos de políticas públicas de saúde e que não mede esforços para que ocorram retrocessos na legislação em vigor, apresentando projetos de lei que pretendem impedir o abortamento em qualquer circunstância.

Esse é o quadro do aborto no país, quinta causa da mortalidade materna. O debate público, mesmo durante o período eleitoral, tem desconhecido a dimensão de direitos e de saúde inerentes à interrupção da gravidez. Até quando, em um país plural, democrático, com culturas, crenças e religiões diversas, governado por um Estado laico, seremos, todas as mulheres, reféns de negociações e acordos políticos respondendo à pressão de credos religiosos que desconhecem os direitos reprodutivos das mulheres, inerentes a seus direitos humanos?

A descriminalização do aborto tem, por regra básica, o respeito ao direito de escolha, significando que nenhuma mulher pode ser obrigada a realizar um aborto contra sua vontade. Não se trata de impor essa prática e sim de regulamentá-la, definindo prazos e circunstâncias, como fez recentemente o Conselho Federal de Medicina para que as mulheres que a ele recorram, não como método de planejamento familiar, e sim como último recurso frente a uma gravidez indesejada, sejam atendidas como cidadãs plenas de direito e não sejam relegadas ao espaço sombrio e perigoso do mundo do crime, desprovidas de sua dignidade humana e esmagadas pelo silêncio da sociedade.

Por que não se fala de aborto no Brasil? Onde estão as milhares de Jandiras e Elizângelas que integram as estatísticas de mortalidade materna do país? Até quando serão invisíveis?

 

1.426540Jacqueline Pitanguy é socióloga.

 

Fonte: O Globo