Aborto medicamentoso via telemedicina: O Brasil na contramão do mundo
Qual é a saída para o país garantir direitos básicos às mulheres? Por Fernanda Regina da Cunha, jornalista do Cebes.
A pauta do aborto no Brasil ainda rende imensas discussões, geralmente pautadas por olhares machistas ou de viés religioso. Enquanto isso, as pesquisas indicam que o aborto medicamentoso realizado através de consultas via telemedicina possui alta segurança e eficácia.
A revista Nature Medicine publicou recentemente um estudo conduzido pela Universidade da California revelando que nos Estados Unidos o aborto medicamentoso feito por telemedicina foi eficaz em 98% e seguro em 99% dos casos. A pesquisa foi realizada depois da liberação pela Food and Drug Administration (FDA) para envio de pílulas abortivas pelo correio. Foram analisadas três organizações de aborto por telemedicina, num total de 6 mil pacientes.
O protocolo adotado naquele país é simples e constituiu em uma chamada de vídeo, onde a paciente é atendida por um profissional de saúde que faz a avaliação para o aborto ser realizado dentro desta modalidade. Depois disso a mulher recebe os medicamentos e as orientações via correio. O caso recebe acompanhamento e em caso de necessidade a gestante é orientada a procurar pelo serviço de saúde presencial.
Aqui no Brasil, durante a pandemia, o assunto foi tema de polêmicas e perseguições. Enquanto os atendimentos para aborto legal ficaram paralisados devido à crise sanitária, a equipe do Núcleo de Atenção Integral às Vítimas de Agressão Sexual (Nuavidas) e a médica ginecologista e obstetra Helena Paro, Universidade Federal de Uberlândia (UFU) criaram o serviço pioneiro de atendimento às mulheres e meninas vítimas de violência sexual via telemedicina. Entretanto, o serviço e a profissional sofreram uma série de retaliações, desde ataques virtuais, até movimentos coordenados, o que inclusive gerou um procedimento ético-profissional contra Helena movido pelo Conselho Regional de Medicina (CRM de Minas Gerais).
Embora os procedimentos via telemedicina tenham sido regulamentados no Brasil por resolução do Conselho Federal de Medicina, quando o assunto é aborto legal, a atividade é travada. Para o médico ginecologista/obstetra e coordenador da Rede Médica pelo Direito de Decidir, Cristião Fernando Rosas o que falta que o Brasil cumpra com as obrigações de garantia à saúde e ao atendimento digno às mulheres que necessitam de aborto é que as autoridades responsáveis e a Anvisa atualizem as resoluções, normativas, portarias e cartilhas que hoje estão desatualizadas com relação às melhores prática e ao tratamento baseado em evidências científicas. “Na verdade, é omissão. Omissão de uma responsabilidade funcional dos gestores que têm obrigação e dever de fazer. Da maneira que está, os profissionais estão sendo induzidos a uma má prática, a procedimentos de maior risco e maior morbimortalidade”.
O médico levantou a questão do medicamento misoprostol, utilizado em diversas indicações obstétricas, que faz parte da lista de medicamentos obrigatórios da OMS (Organização Mundial de Saúde) desde 2005, e não é apenas para aborto, mas também para hemorragias obstétricas, parto, indução do parto, indução de fetos mortos e outros tratamentos. “Este medicamento no mundo inteiro, está disponível nos ambulatórios. No Brasil a Anvisa tem uma portaria (RDC 344/1998) onde o misoprostol foi incluído dentro de uma série de restrições, uma série de barreiras para seu acesso”, explica.
Em 2021, a Anvisa lançou uma consulta pública para atualização desta portaria na atualização em questão havia um capítulo específico sobre o medicamento. “Não há explicação razoável para colocar um capítulo especial de um medicamento cuja proposta mundial e o uso mundial é ambulatorial e de acesso. Isso cria mais estigma em cima do remédio. E a portaria não corrigia as distorções para o uso do misoprostol”.
Depois disso, diversas entidades científicas e entidades de defesa da saúde do Brasil e do exterior encaminharam sugestões à Anvisa para que houvesse a regulamentação, inclusive com propostas práticas para a garantia de acesso deste medicamento essencial. Estamos em 2024 e até hoje não houve nenhuma atualização.
As discussões em torno do assunto no Brasil seguem pautadas por embates entre a ciência e grupos conservadores incentivam a sociedade a entender a questão como incentivo ao aborto, enquanto mulheres que muitas vezes sofrem abortos espontâneos tenham que passar por procedimentos invasivos com altas taxas de complicação e risco, enquanto poderiam ter acesso a um medicamento cientificamente considerado seguro. Inclusive, o uso misoprostol traria menos custos ao sistema de saúde, mais eficiência e dignidade na assistência. “As mulheres e as meninas brasileiras continuam em insegurança jurídica, sem acesso aos medicamentos, sendo tratadas com técnicas obsoletas, com maior risco à sua vida e à sua saúde”, aponta Cristião.
Em 2012 um estudo publicado no Journal of Public Health Policy (EUA) analisou países da África, Ásia e América Latina e colocou o Brasil ao lado apenas do Vietnam entre os que possuem maior restrição ao acesso ao aborto farmacológico no mundo (Sneeringer et al., 2012). A situação é ainda mais grave se levarmos em consideração que no Vietnam, a mifepristona, segundo medicamento indicado no protocolo da Organização Mundial de Saúde (OMS), é utilizado.
Para Ana Maria Costa, médica sanitarista e diretora executiva do Cebes, a desassistência reprodutiva às mulheres no Brasil é uma contradição à própria constituição que garante o direito à saúde. “O acesso ao serviço de telemedicina para o aborto é uma conquista significativa para a saúde e os direitos das mulheres. É um serviço que oferece vantagens importantes, como acessibilidade, privacidade, apoio emocional e informações precisas. Garantir que todas as mulheres tenham acesso a cuidados de saúde reprodutiva seguros e confidenciais é um passo crucial para a promoção da igualdade de gênero e da autonomia”.
Para Ana o Brasil precisa sair da contramão do mundo e avançar no enfretamento de temas como direito ao aborto. “Garantir a proteção e os direitos reprodutivos para as mulheres brasileiras é um tema caro para a própria democracia. Neste momento o que enfrentamos é um terrorismo contra o próprio aborto legal, o que tem dificultado muito o avanço desta pauta onde todas as mulheres perdem, especialmente aquelas em situação de vulnerabilidade”.
Conservadorismo – Uma questão que naturalmente deveria ser tratada no âmbito da saúde pública tem sido alvo de entraves significativos para o acesso a cuidados essenciais. “É muito grave o que está acontecendo, e não é apenas no Sistema Único de Saúde, na rede privada também acontece. O governo precisa dar uma resposta, uma resposta urgente e clara baseada em direitos, em equidade, em constitucionalidade, direitos humanos, reprodutivos e na ciência”, declara Cristão Rosas.
A situação dos direitos reprodutivos das mulheres no Brasil, diferente do que tem sido propagado nos meios conservadores e de viés fundamentalista, é apenas uma garantia daquilo que já está previsto legalmente. Desde 1940 o Código Penal Brasileiro permite o aborto em casos de gravidez resultante de estupro e risco de vida da mãe – hoje também contempla em casos de anencefalia do feto. A Constituição de 1988, também segue sendo um marco legal de grande importância no processo de asserção dos Direitos Reprodutivos no Brasil. Porém, são direitos violados diariamente por ideologias que têm ocupado cada vez mais espaços e atuado no controle dos corpos femininos.
Sob o ponto de vista científico, nenhum dos argumentos apresentados pelos que são contrários ao aborto, seja em qualquer circunstância possui respaldo. São apenas argumentos baseados em ideais religiosos e extremistas que não deveriam em hipótese alguma se sobrepor às leis, à ciência e ao Estado laico.