Álvaro Linera: Bolívia voltará à trilha do pós-capitalismo
Entrevista a Mario Santucho, traduzida por Carta Maior, publicada no portal Outras Mídias
Álvaro García Linera está exultante. Não só por uma vitória eleitoral cuja magnitude não era esperada, mas porque, morando em Buenos Aires, comemorou o fato de o calor opressivo ter dado uma trégua de alguns dias, permitindo uma queda de temperatura que prevaleceu nesta última semana. Sinais inconfundíveis de um retorno iminente às terras altas, após onze meses de exílio e incertezas. No entanto, apesar de sua fé cega no desenrolar da história, o ex-vice-presidente da Bolívia sabe que nada será igual.
O encontro aconteceu nesta terça-feira, 20 de outubro, na casa que a editora Siglo XXI possui em Palermo, mais precisamente em seu terraço. O intelectual nascido em Cochabamba pediu o adiamento da entrevista por uma hora, porque teria que cuidar da filha um pouco mais do que o esperado. As razões do triunfo do MAS (Movimento Ao Socialismo), as lições do perigo vivido, os desafios para o próximo governo e os grandes dilemas da esquerda no cenário em que vivemos são alguns dos temas abordados nesta entrevista, que culminou justamente quando começou a cair a noite.
Qual é o significado histórico deste evento? Você ficou surpreso com o que aconteceu?
Fiquei surpreso com o volume do triunfo. Sabíamos que iríamos vencer, mas não calculamos a dimensão da vitória. Quando começaram a chegar os primeiros dados sobre a nossa vantagem sobre o segundo colocado, fiquei animado e muito feliz. O significado, para a Bolívia, é que o projeto nacional popular que o MAS construiu continua sendo o horizonte intransponível desta época. No ano passado, esse projeto não foi derrotado, foi paralisado. Você derrota algo quando tira sua força moral ou sua energia. E isso não aconteceu. Eles (o governo golpista) foram impostos, graças a problemas óbvios e uma votação nossa que não foi tão alta como agora. Mas a prova é o que desta vez isso está acontecendo. O projeto que tentaram paralisar e cortar à força no ano passado renasceu com um vigor impressionante, porque sua energia ainda não se exauriu, não terminou. Nesse sentido, o projeto do MAS de inclusão social, crescimento econômico e distribuição de riqueza continua sendo o horizonte desta nova década que se avizinha. E para o continente, acho que a lição é que se você aposta em processos que beneficiam fundamentalmente as pessoas mais simples, mais necessitadas, mais trabalhadoras, você não está falhando. Você pode ter problemas, pode ter dificuldades, contratempos, essas voltas e reviravoltas que ocorrem, mas é uma aposta que vai com o sentido da história. Diferente daqueles projetos que apostam em se colocar ao lado da empresa, dos ricos, dos privilegiados, e que pretendem, a partir daí, puxar o resto da sociedade. Esse projeto está esgotado, cada vez mais endurecido, autoritário. Por outro lado, se na hora de tomar posição, você aposta nos trabalhadores, se você se agarra em continuar apostando na emancipação, na luta, no bem-estar, na melhoria das classes trabalhadoras, pode ceder temporariamente, mas a história continuará caminhando do seu lado. E isso é bom neste momento em que o mundo inteiro está em uma espécie de estupor planetário, em que os líderes políticos e sociais, a intelectualidade, não sabem para onde o mundo está indo.
Durante essas horas, ouvi três interpretações sobre por que a vitória do MAS foi tão ampla e um tanto surpreendente. A primeira diz que a maioria da população votou pela volta aos 13 anos do governo anterior, que, segundo essa ideia, ainda são o horizonte intransponível da época. Um segundo argumento defende que o governo (Jeanine) Áñez foi tão ruim que o povo votou contra ele, e, assim, beneficiou o MAS. E uma terceira reflexão coloca a ênfase na fórmula de Arce-Choquehuanca, que teria proporcionado o fluxo eleitoral que a fórmula com você e com Evo não podia conquistar mais. O que você acha?
Que os três são arestas diferentes do mesmo fato social. Não são visões alternativas, mas complementares. A memória da gestão anterior com certeza influenciou, porque permitiu que as pessoas tivessem a sua voz reconhecida, a sua identidade se integrasse, as suas condições de vida melhorassem… e quando vem este governo e tenta mostrar um novo caminho, o faz sem integrar as pessoas, sem reconhecer sua identidade, maltratando e empobrecendo as pessoas. Assim, as pessoas puderam comparar rapidamente. Teria sido diferente se tivéssemos saído do governo por má gestão, se tivéssemos levado o país a uma crise econômica, desemprego generalizado e paralisia produtiva, mas não foi o que aconteceu. Se fosse simplesmente a má gestão de Áñez, mas a anterior, a do MAS, tivesse sido igualmente ruim, não haveria o contraste, as pessoas veriam uma continuidade. O fato de existir uma candidatura como a de Luis Arce e de David Choquehuanca também significou que, no âmbito do projeto geral de transformação da economia, do Estado e da sociedade, trazido pelos sindicatos e organizações sociais, existe a possibilidade de incorporar outras vozes. Então, mostra que é um projeto que não parou de crescer, que é capaz de manter a fonte de suas raízes, sua espinha dorsal muito popular, e ter força para mudar lideranças sem que isso seja produto de cisões ou rupturas entre uma nova geração e a anterior, e sim se apresenta como um processo de rearticulação. Nossa geração, aquela em que completamos uma etapa inteira, acompanha a nova geração. Em outras ocasiões, na Bolívia, isso ocorreu através de uma ruptura entre o velho e o novo, frente a frente. Aqui não, é uma junta orgânica. Por isso, sinto que são três elementos de um mesmo fato social. Nossa vitória está estrategicamente garantida e continuará garantida enquanto não surgir um projeto alternativo de economia, estado e sociedade. É por isso que, em 2019, eu dizia à direita: enquanto não montarem um novo projeto de economia, estado e sociedade que supere isso e que gere expectativas, sempre perderão, continuarão perdendo. Eles podem perder com um pouco menos ou um pouco mais, mas continuarão perdendo. E esta é a validação desta hipótese geral: hoje, na Bolívia, um projeto alternativo de economia, estado e sociedade não emergiu das forças de oposição, das forças conservadoras. E esse é o seu limite. Isso os condena ao fracasso. E se isso não mudar em 2025, será assim novamente. O que as forças conservadoras fazem é simplesmente agarrar o velho e endurecê-lo. Acrescentam um pouco mais de autoritarismo, um pouco mais de racismo, uma dose de ódio, uma dose de rancor, outra de violência… Isso não é um projeto, não é algo que possa servir por um tempo e tampouco para gerar uma convicção duradoura do horizonte às pessoas. Em parte, a política é como você direciona o horizonte de previsão das pessoas. É uma luta pelo monopólio do horizonte preditivo da sociedade. E eles o perderam. Eles tentam revivê-lo com choques elétricos de ódio, ressentimento, racismo, e acabam obtendo um Frankenstein. Você não consegue um projeto orgânico de sociedade dessa forma. Sinto que é um momento ruim para as forças conservadoras a nível mundial. Eles podem continuar a governar, e estão governando a maior parte dos países, mas é um momento ruim. Uma nova peça dessa capacidade de direcionar o horizonte da sociedade está caindo do tabuleiro deles todos os dias. O horizonte preditivo é quando você acorda, sabe o que vai fazer. E o que seu filho vai fazer, sua esposa e seu irmão, o que você pensou sobre o dia seguinte, ou o próximo mês, ou os próximos seis meses. É algo concreto, não uma abstração filosófica: como as pessoas preveem seu destino imediato. Quando você não consegue fazer isso, como está acontecendo agora com as forças conservadoras, esse processo caótico ocorre. O progressismo é uma resposta ao esgotamento do horizonte preditivo do neoliberalismo. É uma aposta que avança, tem problemas, se debilita e depois se ergue novo. Veja o que aconteceu com a Bolívia. A retomada do comando pelas forças neoliberais nos últimos anos é temporária, é uma retomada de pernas curtas. Você por me dizer: “mas e o que aconteceu com o Bolsonaro?”. E claro, também é um projeto neoliberal, e também é um Frankenstein, com doses de racismo, sexismo e violência. Eles também podem vencer eleições, mas não têm controle do horizonte preditivo. Eles tinham, nos Anos 80, aquele discurso que propagaram pelo mundo, de que “já não há mais opções”. Foi a frase de (Margaret) Tatcher, “o que resta é só isso”, o neoliberalismo, a única opção. O que o senhor (Francis) Fukuyama escreveu mais tarde, com linguagem filosófica, sobre o suposto “ fim da história”. Isso eles não podem dizer agora, eles não ousam dizer. O próprio Fukuyama se retratou. Ninguém sabe o que vai acontecer no mundo.
Vamos voltar à conjuntura, para ver o que você acha de dois outros argumentos que ouço hoje em dia, e que talvez não sejam tão confluentes. Uma dessas reflexões diz que o triunfo confortável da fórmula Arce-Choquehuanca confirma que foi um erro ter insistido no ano passado com a segunda reeleição de Evo. A segunda interpretação é completamente diferente, pois afirma que o objetivo do golpe era destruir a liderança histórica e que, com Evo fora de cena, o MAS pode se tornar uma força mais digerível para os poderes constituídos. Concorda com alguma delas?
Quanto a saber se esta fórmula poderia ter sido tentada antes, é claro que se pode dizer “é possível”. O interessante é que quando se decide o que fazer antes do referendo, não é um decreto presidencial que ordena a reintegração de Evo, mas um grande encontro de organizações sociais que aconteceu em Santa Cruz, em 2019. Uma opção era procurar outros líderes, e de fato vários nomes já começavam a aparecer. E outro setor disse não, que tínhamos que procurar algum tipo de consulta jurídica. Foi um debate muito intenso durante três dias e, no final daquela assembleia, que incluiu lideranças sindicais e camponesas, decidiu-se seguir esse caminho. Porque havia a preocupação de que, se Evo não fosse o candidato de novo, o que ia surgir seria uma espécie de explosão de novas lideranças, com os riscos de ruptura, como é a experiência dos grandes partidos antes, até da própria esquerda. Quando o líder deixa de ser, por exemplo, Marcelo Quiroga no Partido Socialista, aparecem o PS1, o PS2, o PS3, o PS4 e o PS5.
Luis Arce vem desse Partido Socialista boliviano, que terminou rachado, certo?
Sim, do PS1. E no caso do MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário), que não tem líder até hoje, surgiram o MNRI, o MNRA, o MNRR, o MNRZ. Esse é o medo que aparece no debate dos companheiros. Não queremos que isto, que nos custou tanto construir, e que não é um partido de intelectuais, mas um partido de sindicatos aos quais aderem os setores intelectuais, reproduza o antigo partidarismo de antes. Foi essa preocupação dos companheiros que nos conduziu por este caminho. Essa outra fórmula poderia ter sido tentada? Quem sabe? Quem sabe se naquela época não teria significado que os interculturalistas montassem sua própria candidatura, e fizessem sua própria fórmula, e outro setor fizesse outra. E por que agora está funcionando? Porque houve uma convocação de lideranças históricas que ajudaram a unir, mas também a perseguição de um governo que encurralou o setor popular no esconderijo, na perseguição, no exílio e no massacre. Então, a possibilidade de que outros setores lançassem candidato próprio, que o Pacto de Unidade tivesse um, ou que o movimento social de El Alto tivesse outro, isso não aconteceu, porque estávamos todos sendo atacados. É por isso que acho que essa fórmula funcionou, por causa dessas condições especiais. Quem sabe se essa fórmula teria funcionado em 2019? Eu colocaria minhas dúvidas sobre isso.
E o que sugere a você a interpretação que lamenta o deslocamento de lideranças históricas?
Evo e eu – e no meu caso, infinitamente menos em termos de liderança –, viemos da organização popular. Antes de sermos governo, fomos precedidos por 20 ou 30 anos de trabalho de base, organização, formação política. Isso é o que sabemos fazer, na verdade viemos de lá, esse é o nosso ser, o nosso ser político. E o fato de que agora temos que voltar a isso, é quase tão óbvio. Na verdade, as lideranças são construídas lá. A liderança de Evo não foi construída a partir do Estado. Cuidado, porque esse é um erro da direita: “a liderança de Evo depende do Estado, se não tiver recursos públicos, não haverá o MAS”. É assim que eles pensam, e é por isso que, em fevereiro, quando foram convocadas as eleições, os caciques como Tuto Quiroga, Doria Medina e outros se inscreveram como candidatos, pensando que não haveria o MAS. Não é verdade, porque Evo não é o Estado, sua direção foi formada fora, em suas marchas, em suas mobilizações, em seu acompanhamento às lutas do campo à cidade, com os trabalhadores. E o Estado fortalecido, mas sem Estado ainda existe aquela liderança construída de baixo para cima. Sinto que a liderança de Evo vai continuar agora, porque sua força não está porque ele foi presidente por um tempo, mas porque ele sabia tecer por baixo. E isso agora foi posto à prova. Há muito de Evo no fato de as organizações sociais não se separarem de outros candidatos. Sobrou um, são os cooperados, que sempre estiveram conosco desde 2006, em 2019 também, mas em 2020, eles fizeram a candidatura própria, e acho que conseguiram 0,4%. Mas o resto das organizações, Evo ajudou a costurá-los, a costurar as alianças. E é aí que vai decidir se a liderança de Evo se mantém, adquire outras características ou se dilui, dependendo do que Evo vai fazer nos próximos anos, dentro das organizações sociais.
Que papel você pretende assumir no período que se inicia?
Eu me vejo lá também. É o que eu queria fazer desde 2016. Para as eleições de 2019, eu não queria ser candidato (a vice de Evo), publicamente não aceitei, e aí meus colegas insistiram. Porque vejo um déficit em nós, que é a formação política das novas gerações, das novas lideranças. O treinamento político não é apenas ler um livro, mas é uma forma de entender a vida, e entender o destino pessoal no destino político. Isso é luta, é debate, é um esquema mental, é um esquema moral e um esquema lógico. Os treze anos de governo que tivemos foram muito estáveis, mas ao mesmo tempo foram de muita renovação de liderança. Com exceção de Evo e eu, o resto vem mudando e a cada eleição. De 98% dos novos deputados, novos senadores, novos prefeitos, vereadores, que vêm do mundo sindical, do mundo agrário. Não há burocratização, mas a alta volatilidade dos níveis de gestão também faz com que as pessoas que acessam tenham cargos de liderança, liderança social ou estadual, façam do jeito fácil: eu venho da base, eu viro sindicalista , o próximo passo é tornar-me legislador, depois prefeito, ou governador, ou ministro, quase como uma carreira na mobilidade social. Não é ruim, porque é assim que você vê índios, operários, ministros, deputados, senadores, mulheres de saias, onde antes era uma classe endógama branca que se sentia dona daqueles espaços. Mas sua origem social não é suficiente; Deve também ser marcada por um espírito, uma série de convicções, que te permitem precisamente enfrentar as adversidades, que te permitem enfrentar a tentação da corrupção, suportar as quedas, as derrotas, para voltar a subir. O que o levanta é a sua convicção, não apenas sua origem social. E por um longo tempo, essa se suavizou. Acabamos de ver uma amostra do que a direita é capaz. A direita é capaz de travar violentamente um projeto que tem o poder de se desenvolver; e a defesa não é apenas uma questão de aparato, é uma questão de espírito coletivo. Esse tipo de elemento deve ser promovido, e eu me vejo lá, há muito tempo queria fazer isso. E agora este ano difícil, terrível e sangrento tem sido uma escola, porque nos devolveu a mística. Na nova geração de jovens que saíram para mostrar a cara, há uma mística que não tínhamos mais, por causa da gestão governamental. Com esse misticismo, formaram-se as lideranças antigas, são os perseguidos dos anos 90, as das grandes marchas com prisões, aí se formou uma mística popular, depois passou a gestão estatal, e que renasceu neste ano de luta social, que deve ser fortalecida, para que a nova geração que vai liderar o país melhore e supere o que temos feito, e logo transmita à geração seguinte, numa espécie de sedimentação enriquecida da experiência de luta dos setores populares.
Você falou sobre o que a direita é capaz de fazer e muitos de nós tínhamos sérias dúvidas de que o governo de Áñez restauraria o poder do MAS. Você acha que o que aconteceu este ano em relação à suspensão da democracia e das regras do jogo é um aprendizado que não deve ser esquecido tão cedo? Ou foi apenas um acidente que podemos deixar para trás rapidamente?
Não, a sensação que tenho é de que cada vez mais a democracia se apresenta como um obstáculo às forças conservadoras. Nos Anos 80 e 90, eles submeteram a democracia ao projeto de economia de mercado livre, eles se uniram. E agora, em tempos de esgotamento hegemônico neoliberal, a democracia aparece como um entrave. Isso não vai mudar. A Bolívia é um exemplo de que se você tem que colocar uma chance para entrar no governo pela janela, você tem que entrar. E a direita, desesperada, começou a apostar cada vez mais nisso. Veja o que acontece nos Estados Unidos, com um presidente que questiona se vai transmitir o governo no caso de perder. Isso era impensável em uma democracia tão antiga. A hipótese é que chega um momento em que os portadores dessa hegemonia cansada sentem que a democracia é um empecilho e, paradoxalmente, a democracia representativa se esvaziou dos instrumentos legitimadores do projeto neoliberal, as possibilidades de transformação social e emancipação têm absorvido a democracia como uma de suas ferramentas, seus sedimentos e seus inevitáveis preconceitos, seu bom senso. Não é que democracia seja emancipação, é sobre ela que se podem pensar em processos de maior democratização. Ou, para estender o ato democrático exercido uma vez a cada cinco anos, em algo que você exerce todos os anos, todos os meses, todas as semanas. À medida que o popular se apropria do fato democrático, as forças conservadoras perdem o controle e se distanciam do fato democrático, porque ele não mais atende aos seus interesses. Serviu a eles na medida em que havia um consenso geral, mesmo entre as classes populares: mercados livres, globalização, privatizações, empreendedorismo. Naquela época não havia disputas de projeto, o que estava sendo decidido era qual elite iria dirigir o projeto geral. Mas quando surge outro projeto e começa a ganhar votos, eles dizem “é muita democracia”.
Em 2016, você deu uma palestra na Universidade de Buenos Aires na qual mencionou cinco fragilidades de um ciclo de governos progressistas que começou a vacilar, a partir de uma possível nova onda: em primeiro lugar, a economia e a necessidade de colocar o mais negligenciado, apesar da pressão das elites e das classes médias; no segundo caso, uma revolução cultural, intimamente ligada ao tema da formação; terceiro, reforma moral, vinculada ao aspecto da corrupção que afetou várias experiências. Você também falou sobre lideranças históricas, e, finalmente, a superficialidade da integração regional. Vendo, hoje, o que aconteceu no ano passado na Bolívia, não deveríamos acrescentar a questão militar, e como lidar com o monopólio da força nos Estados contemporâneos?
Sim, essa é a novidade que esta história nos ensinou e não vimos com clareza suficiente em 2016. Essa regressão autoritária do neoliberalismo, esse neoliberalismo 2.0, mais enraivecido, violento, disposto à violência sem qualquer tipo de limite moral ou remorso, disposto ao golpe, ao massacre para prevalecer. Esta é uma informação nova que as forças de esquerda devem saber entender ao seu modo, no quadro de uma conquista do poder que se realiza através da democracia eleitoral, pelo menos por enquanto. As forças de esquerda têm que debater, têm que assumir o risco e pensar como as tentativas de golpe e até os paramilitares terão que ser contidos, derrotados, para não pensarem que são capazes de tentar violentamente a retomada o poder à força. E, portanto, não existe um único caminho. Alguns velhos debates de esquerda estão de volta, mas agora em um contexto de mobilização de massa, de governos populares, de atraso eleitoral como preconceito popular, da possibilidade de tomada do poder por meios eleitorais. Sobre esse fato novo, o velho debate sobre o monopólio da coerção. Eu posso ir tão longe em minhas reflexões. Devemos resgatar aquele velho problema nas novas condições e neste contexto que nos permite chegar ao governo pela via eleitoral, e defender a conquista dos governos também pela via eleitoral e outras coisas. O que é isso? Não sei, cabe a cada um refletir.
Eu estava acompanhando a trajetória eleitoral do MAS. Em 2005, chegaram ao governo com 53,7%, contra 28,5% da direita; na primeira reeleição, em 2009, obteve 64,2% contra 26,4%, e em 2014 foram reeleitos com 61,3% contra 24,2%. No ano passado, houve a menor votação, com 47% contra 36%. E agora voltaria quase ao patamar de 2005, inclusive um pouco mais, em termos quantitativos. Pode-se interpretar que o partido está no início de uma nova onda, ou pode-se pensar que, de certa forma, está voltando ao ponto de partida. E não só pelos números eleitorais, mas pelos desafios que o próximo governo enfrentará: mais uma vez, deverá lidar com as Forças Armadas e de segurança, que reprimiram e mataram o povo; mais uma vez, o bloco oriental aparece hegemonizado pelos setores oligárquicos e da extrema-direita. Isso não parece que questiona sua crença em um movimento da história sempre em um caminho de progresso?
O que acontece é que você nunca mais volta, embora em certos aspectos possa encontrar um isomorfismo com o que aconteceu há 15 anos, mas são outras circunstâncias. Porque olha, em 2005 a gente tinha 54%, mas a direita do Tuto Quiroga, dura, neoliberal, pró-norte-americana, chegou a quase 30%. Agora, essa direita dura obteve 15%. Tem Mesa, mas ele é de tudo um pouco, como um personagem dele mesmo. Um pouco aqui, um pouquinho ali, outro pouco acolá. Um pouco conservador, mas também um pouco progressista. Isso é novo. Esse setor era representado anteriormente por Doria Medina, que obteve 15% em 2005. Houve uma espécie de investimento. Tuto Quiroga é como Luis Fernando Camacho, mas um pouco mais esperto. Também tem aquele setor conservador, tem que ter cuidado com eles. Ele é um golpista, regionalista, um risco para a democracia. Mas está em seu cofre. Não é a direita que tínhamos em 2005, algo mudou. E atrevo-me a dizer que aconteceu o seguinte: em 2005, a agroindústria de Santa Cruz exportou 900 milhões de dólares, enquanto a Bolívia exportou 3 bilhões. No ano de 2019, exportamos cerca de 9 bilhões de dólares e eles contribuíram com 1 bilhão. Antes eram a terceira parte, agora é a nona parte. É um setor importante, deve ser levado em consideração, mas não é um setor decisivo. Antes, o setor agrícola de Santa Cruz se articulava verticalmente: camponês, fornecedor de insumos, processador e exportador de soja. Hoje, o setor camponês, que antes recebia créditos de empresários, tem seu fornecedor de insumos no Estado. A corrente vertical foi quebrada. E aí você tem a presença de outro setor empresarial que é ligado ao governo, que tem um terço do processamento da soja. Bem concreto, o que isso significa? Se em 2005 aquele setor decidisse que não iria vender soja para produtores de carne de frango, em uma semana o preço dobraria, e você iria protesta contra o governo pela inflação disparada. Os alimentos são um fator decisivo na taxa de inflação do país. Hoje, se o setor parar de vender soja aos produtores, o Estado pode vender. Continua sendo um setor importante e poderoso, mas não tem mais esse controle econômico. Se você vai abordar para fazer negócios com o setor privado, você tem que abordar com um estado forte, não com um estado mendigo. Do contrário, você se tornará um funcionário desse setor economicamente poderoso. Se a economia mede 8 bilhões de dólares e este setor gerencia 1 bilhão, bem, é difícil. Agora, continua administrando mil, mas a economia do país passou a significar 42 bilhões. E o Estado passou de controlar 12% para 35% do PIB da Bolívia. Portanto, quando você fala com o empregador, você não está mais fazendo isso de baixo para cima. Você pode fazer um acordo porque precisa desse setor de negócios, mas não mais como um fator de domínio, poder e comando. O que você não pode permitir, se você for um governo muito progressista, é que o poder econômico esteja no setor privado. Isso é perigoso. É preciso estabelecer uma relação de igual para igual, ou de cima para baixo com o setor empresarial, sem ter que brigar com ele. Aí se consegue uma relativa autonomia do Estado. Mas se o Estado não tem poder econômico, a autonomia relativa do Estado não funciona. O que se tem é uma subordinação geral do Estado ao bom funcionamento da economia, porque é isso que vai definir se há inflação ou não, se há emprego e investimento. Suas políticas progressistas vão ter que ser apaziguadas, pois o poder econômico ainda está nas mãos dos usuais. Para ser progressista, um governo mais cedo ou mais tarde tem que dar poder econômico às estruturas do Estado. Não absoluto: nunca pensamos ou acreditamos que o socialismo é nacionalizar tudo. Mas ouso dizer que o Estado deve ter 30% do PIB acima. Menos de 50%, mas mais de 30%, para que você tenha uma margem de decisão política e social que não esteja sujeita ao temperamento dos grandes blocos empresariais.
O ciclo progressivo do início do século teve condições internacionais muito favoráveis, mas hoje a situação é muito complicada e não só por causa da pandemia. O novo governo do MAS não poderá oferecer boas notícias econômicas tão cedo. Nesse contexto, você não tem medo de ter que fazer muitas concessões para alcançar uma certa estabilidade política?
Um parêntese para sua pergunta, para voltar a algo sobre o assunto de coerção e violência. Com a Unasul (União de Nações Sul-Americanas) em vigor, não teria havido golpe em 2019. O contexto internacional também ajuda a regular a força política de coerção. Isto é muito importante. Em 2008, tivemos uma situação semelhante, ainda mais radical por parte dos conservadores. Mas havia uma neutralidade policial e militar, altamente influenciada pelo contexto continental, que garantiu que o estado de direito não fosse violado ou ignorado. E foi o suficiente, apesar do dinheiro que deve ter circulado na época entre os comandantes militares. Isso deve ser levado em consideração ao fazer a avaliação geral do que é feito com esses impulsos das forças conservadoras. Um contexto regional progressista e mais democrático ajuda enormemente. Com a presença da Unasul, policiais e militares não teriam ousado realizar um golpe. Por se tratar de uma mobilização típica da classe média, uma das mobilizações clássicas ocorridas em 2008, 2011, 2017. Ajustável no marco das teorias de ação coletiva latino-americanas. Mas se você colocar a polícia e os militares nisso, você está em outro contexto, não é mais uma ação coletiva, é um golpe. Isso só é possível em tempos de governos muito conservadores no continente.
Um parêntese dentro desse parêntese: em 2019 havia um controle da OEA (Organização dos Estados Americanos) no processo eleitoral, porém, em 2020, a ONU (Organização das Nações Unidas) tinha mais destaque e a Europa estava muito presente, deslocando os Estados Unidos, de certa forma. Existe alguma hipótese sobre por quê?
O que acontece é que nossa tarefa com Evo tem sido pedir isso à Europa, à Fundação Carter e às instituições continentais que vão observar. Não que eles vão proteger nada, apenas que vão observar e relatar qualquer irregularidade. Então a OEA desembarcou com todas as suas tropas, mas vários observadores da União Europeia, parlamentos de países latino-americanos e europeus, a Fundação Carter, a Fundação de ex-presidentes estiveram presentes, implantando uma estrutura logística para que não haja irregularidades. Por isso a presença da OEA foi diluída. O contexto internacional mobilizado para a transparência das eleições na Bolívia tem ajudado muito para que a OEA não faça como em 2019.
Voltemos à pergunta que ficou em aberto: como o novo governo vai tomar posse em um contexto de crise econômica, você está preocupado com a possibilidade de que ele seja forçado a fazer muitas concessões para alcançar a estabilidade política?
Quando tomamos posse, em 2005, encontramos um contexto adverso, mas sabíamos tomar um conjunto de decisões específicas que nos permitiram superar essa adversidade no médio prazo. Uma delas foi a de nacionalizar áreas de alto lucro e não nacionalizar áreas de baixo lucro. Poderíamos ter nacionalizado a companhia aérea, que custou 200 milhões de dólares. Para que? Isso foi uma chatice, você não tem que nacionalizar isso, não importa o quanto você queira soberania aérea. Não arraste um homem morto. Nacionalizamos hidrocarbonetos porque havia excedente ali. Outras minas não nacionalizamos porque não havia rentabilidade. Parece muito pragmático, mas o que fazer a seguir com o corte de orçamento? Você vai gastá-lo para pagar dívidas privadas? Isso não é nacionalizar, é privatizar mais recursos públicos. Concentre-se onde houver recursos: pegamos hidrocarbonetos e telecomunicações. Isso permitiu ao Estado que no ano seguinte já tivéssemos superávit. Nacionalizamos as telecomunicações com 100 milhões de dólares, que é o que gera o seu lucro por ano. Em hidrocarbonetos, pagamos cerca de 600 milhões de dólares em vários anos, mas tínhamos uma receita de petróleo de 1,5 bilhão por ano, que depois passou a 2 bilhões. Quando o preço do gás subiu, a renda chegou a 4,5 bilhões de dólares de lucro líquido para o Estado. Isso permite gerar políticas públicas. Agora não há muito espaço para isso. É óbvio que é outro contexto, mas é preciso ver quais áreas geram excedente. Se não houver, implemente outras opções. Elevamos isso no programa de governo: não vamos pagar a dívida externa daqui a alguns anos, como fez a Argentina. São 600 milhões de dólares anuais para a Bolívia. Com isso, se construiu um superinvestimento público, que deixamos em 8 bilhões anuais, mas já é alguma coisa. O outro é o imposto sobre grandes fortunas, que não existe na Bolívia. Destina-se a pessoas com renda anual superior a cinco milhões de dólares. Deve ser aplicado, porque não é que você vai tirar das empresas, mas sim dessa riqueza que eles acumularam, e que deve ser injetada no país. Então, você tem dinheiro que apareceu em paraísos fiscais. Como funciona o paraíso fiscal? Você é exportador de soja, vende para os Estados Unidos a 400 dólares a tonelada, mas na Bolívia você registra que vendeu por 200: esse a mais fica no Panamá, nas Ilhas Virgens. Mas há um registro disso. Na verdade, a família de Camacho aparece na teia dos Panamá Papers: seu pai fugiu, é um criminoso prófugo. Então, você pode fazer uma espécie de anistia. Se ele voltar para o país e reinvestir, o dinheiro é seu e não tem nenhum tipo de punição. Se não o repatriar, as dívidas e as penalidades começarão a correr. E você paga ou paga. Temos que redirecionar o dinheiro dos bancos. O que fizemos foi uma espécie de fusão leninista do capital bancário com o capital produtivo: 60% do dinheiro do banco, por lei, é emprestado ao setor produtivo a uma taxa fixa de 5%. Isso injeta dinheiro na economia, para criar empregos a taxas razoáveis. Depois, as políticas redistributivas via salários e transferências em países como o nosso, onde os setores populares gastam 48% com alimentos dos produtores locais. Esse dinheiro volta a circular, torna a economia mais dinâmica. Boa parte do salário das pessoas volta, é um reinvestimento. Quando se diz que os salários são inflacionários não é verdade, nos setores populares não é apenas um fato de justiça, também faz parte da dinâmica do mercado interno do pequeno e médio produtor. O que o atual governo tem feito é dar dinheiro aos bancos, ao estilo norte-americano, para que eles pinguem no setor. Não senhor, não é assim: você tem que investir para que o fundo, a base, suba. Não o contrário.
Você acha, então, que existe uma possibilidade de melhora econômica palpável para a população, no curto prazo?
Sim, para recuperar o que se perdeu neste ano desastroso não só pela pandemia, mas também pela péssima gestão deste governo. Mas, é claro, as ferramentas são mais limitadas do que as que conhecíamos em 2008, 2009 e 2010. O importante é que as pessoas são capazes de ver o que você está fazendo, quão pouco, médio ou muito você está fazendo, se está priorizando mais as pessoas como um todo ou privilegiando alguns. Porque pode haver momentos de escassez e problemas, mas se você usar o pouco dinheiro para dar a quem tem mais, então você está errado.
Não acha que há um problema de estrutura econômica tão enraizados e de tal forma que chega a um limite onde não há outra opção senão travar o ímpeto igualitário, e aí não como não recuar na questão da estrutura?
O problema do pós-capitalismo não se resolve com decreto, não se trata de nacionalizar tudo e você já está no socialismo. Não é assim. Você verá um sistema diferente do capitalismo na medida em que a sociedade democratiza a propriedade e as relações de produção. E você não faz isso por decreto. Os governos não fazem socialismo, a capacidade de emergência do socialismo dependerá do fato de que a sociedade democratiza as relações de propriedade e de produção. E um governo progressista pode contar com isso para irradiá-lo. Claro, há uma imagem de que o socialismo é uma questão de eleição, com a vanguarda redirecionando a história. Isso não funciona. A única maneira é que a sociedade seja compelida por certas circunstâncias a socializar, ocupar, controlar e administrar. E se você acompanhar isso, a coisa entra na sua cabeça; mas se não acontecer, se o que existe é uma luta por reconhecimento, por redistribuição, por participação, você só acompanha essa luta. Os limites de um governo progressista são os limites da própria sociedade. E se a sociedade vai se radicalizar, e eu espero que sim, em direção aos horizontes pós-capitalistas, um governo progressista tem que acompanhar essa experiência e apoiá-la. A questão é: surgirá a ação coletiva, no movimento social, a possibilidade de construir um horizonte socialista hoje na América Latina?
Não. Mas há horizontes pós-capitalistas que surgiram neste século, e eles não são herdeiros do socialismo.
Por exemplo?
Os movimentos feminista, ambientalista, defensores da economia popular, movimentos que questionam a dominação do capital, a lógica do desenvolvimentismo e da modernização, mesmo quando colocados de forma pluralista como você o fez. Por outro lado, fiquei impressionado com um recente artigo seu sobre as classes médias serem portadoras do fascismo. Essa é uma questão generalizada em governos progressistas: a perda da capacidade de diálogo com os setores urbanos, especialmente nas grandes cidades.
É um assunto muito importante e complexo. Cada sociedade tem sua própria história dos setores médios. O caso boliviano é uma história muito recente. As classes médias, as tradicionais, surgiram após 1952, estamos falando de uma história de 50 anos. A Argentina tem uma história de mais de 100 anos. E esses sedimentos. E você estabelece outro tipo de vínculo. No caso da Bolívia, uma parte desses setores médios apostou muito pelo neoliberalismo, por essa narrativa, por essa ilusão de modernidade, globalização, boas vibrações, new age, um certo feminismo, um certo multiculturalismo, um certo ambientalismo. E apostou muito nesse neoliberalismo progressista que surgiu em todo o mundo. E quando começou a apresentar fissuras, fragilidades, esgotamento, uma parte deste setor que apostou no (Gonzalo) Sánchez de Lozada, o projeto mais globalizante, começou a olhar com grande interesse para o quão popular estava a emergir. E o que o nosso projeto fez foi coletar esse setor, incorporou-o, mas não privilegiou a classe média, por mais influente que seja, que privilegiou as políticas de mobilidade social dos setores mais pobres, mais marginalizados. Vou te mostrar: enquanto o salário mínimo para um trabalhador, uma empregada doméstica ou um trabalhador em uma pequena oficina era de 50 dólares em 2005, em nosso governo fomos para 300. E o salário de um professor universitário de 20 anos, que estava em 2 mil dólares, durante esses anos subiu para 2,5 mil. Não caiu, mas aumentou em proporção menor. Sua economia não foi afetada, mas as de baixo melhoraram mais. E na época da carga tributária, a carga tributária não foi aumentada para esse setor que veio de baixo. Aqueles com melhores rendas não foram aumentados, mas o cumprimento de suas cargas tributárias foi ajustado. Então, isso enervou o setor da classe média. Seu enfraquecimento não é tanto um fato ideológico, mas sobretudo um fato material. Esse mal-estar acumulado, condensado, verbalizado e constituído narrativas contra o governo extrativista. Além disso, recordemos que Evo Morales, em uma justa medida de austeridade, reduziu seu próprio salário e estabeleceu um decreto segundo o qual ninguém do setor público poderia ganhar mais. Um presidente na Bolívia ganhava 35 mil bolivianos, Evo reduziu para 15 mil, menos da metade. E depois subiu para 20 mil, mas havia um limite, e a medida empurrou todos os salários do setor público. Enquanto o setor abaixo aumentava cada vez mais. O trabalhador básico, com formação média, acumulou aumento de 400% em 13 anos, quando a inflação atingiu 50% nesses 13 anos. Assim, os processos de melhoria social tiveram uma geometria ou velocidade diferencial: descer foi mais rápido e subir mais lento. Tem acontecido? Houve um alargamento dos setores médios. De fato, estima-se que em 13 anos tenha sido criado o mesmo número de pessoas com renda que nos 50 anos anteriores. Havia 3 milhões de pessoas representando 30% da população, que escalaram socialmente em apenas uma década. Para a classe média tradicional, sua posição não caiu, mas foi desvalorizada. Porque agora ela compete com outros pelo conjunto de opções de trabalho, consultorias, pequenos negócios, para fornecer insumos para prefeitos. E fica até um pouco em desvantagem, porque os novos carregam um capital étnico, indígena, agora mais valorizado em nível estadual do que a brancura. Filho de sindicalista, ou filho de operário, ou de membro da comunidade, que entrou na universidade e montou um pequeno negócio para dar papel ao Ministério do Trabalho, teve uma opção melhor nessa contratação, porque seu pai conhece o ministro que é dirigente sindical. O que vocês viram no golpe de novembro é um repúdio à igualdade, uma mobilização contra a igualdade, contra os índios, porque os índios deveriam continuar sendo índios, sendo operários, balconistas, empregadas domésticas, carregadores nas ruas, vendedores nas feiras, mas não ter os filhos nas universidades, mesmo particulares, e não comprar um apartamento no seu prédio, que é onde mora a gente boa, gente com sobrenome. Isso tem se acumulado e explodido. Nesse contexto, a questão ambiental gera um discurso, digamos assim, instrumentalizado. Porque nestes meses de 2020, a floresta da Bolívia está queimando na mesma quantidade que no ano passado. É um escândalo, mas você não tem as marchas, não tem os influenciadores convocando contra esse governo predatório. Obviamente, há uma questão ambiental que a esquerda precisa resolver. Você não pode considerar os fatos da esquerda se não lidar com o problema ambiental. Mas há também um ambientalismo conservador, e muitas vezes é só pose, e certos setores da esquerda, ONGs, que no ano passado atearam fogo nas redes, atearam fogo na discussão contra um governo extrativista, que estava queimando as florestas da Bolívia, mas este ano não deram a mínima para isso a mesma quantidade de florestas está queimando e eles não exigem nada.
Mas pode um governo desenvolvimentista realmente assumir o desafio colocado pela questão ambiental do Estado?
Você tem que fazer. Porque a problemática ambiental o conecta com sua herança indígena que está ligada à natureza como entidade viva, da qual você também extrai coisas, mas negocia e renova o ciclo de dar e receber com base nas gerações seguintes. Então, não pode haver um governo com cunho indígena que não recupere definitivamente esse tema. E ao mesmo tempo é uma questão sensível para as novas gerações urbanas. Mas acho que no nosso caso foi superdimensionado. Vou dar uma informação: dizem que atacamos as florestas para transformá-las em terras para o agronegócio. A quantidade de terra usada para a agricultura na Bolívia é de 3%, incluindo a agroindústria e o setor camponês. A Alemanha, que vive de sua indústria, que é a fábrica da Europa, usa 15% de suas terras para a agricultura, e é um país verde, que possui as tecnologias mais poderosas do mundo. Se quiséssemos usar 4% da agricultura, que é muito menos do que qualquer outro país da América Latina usa, isso é apresentado como um holocausto da natureza. Existe uma qualificação exagerada do extrativismo. São coisas dentro da estrutura da prudência. Cuidado, assuma suas responsabilidades, mas não vamos colocar a responsabilidade sobre nossos povos da América Latina. Oponho-me a esse sentimento de culpa de um país e de uma população que emite gases de efeito estufa, medidos em toneladas, que são um décimo do que um ecologista faz na Europa, com tecnologias verdes, carros, eletricidade, porque seus sistema de vida emite gases de efeito estufa dez vezes mais do que o companheiro na Bolívia, Argentina ou Colômbia, que tem um padrão de vida normal médio abaixo. Você não pode colocar a responsabilidade de salvar o mundo sobre ele. Assuma a responsabilidade, substitua sua energia fóssil por energia alternativa. Na Bolívia, 13% já vem de energias alternativas. Deveria ser um pouco mais, os europeus arrecadaram muito mais. Mas passar de 0 a 13% em 10 anos é um bom passo. E nossa meta em 2025 é que 25% da energia consumida internamente seja alternativa. Veja substitutos para as exportações de gás e petróleo, sem perder a receita necessária para criar condições mínimas de saúde e educação. Mas não coloquemos em nossos povos a responsabilidade de carregar nas costas um esforço que deve ser compartilhado por todos. Você não pode pedir a um país inteiro que pare de produzir petróleo amanhã porque você é cúmplice da destruição do mundo. Como vou parar de exportar petróleo, que gera dois bilhões de dólares de receita, porque o que substituo? Precisamos ao menos de um período de transição ambiental, para que a questão ecológica seja acompanhada e não divorciada da questão social. Acho que há uma abordagem ambientalista que fossilizou o social e se concentra no ambiental. Portanto, o social faz parte da paisagem. Eles são os indiozinhos do cartão-postal e gostariam que fosse sempre assim. Mas aquele camarada indígena quer sua escola, ele quer sua rodovia, ele quer seu hospital, ele quer internet, ele quer sua eletricidade. Quer condições para as quais você tem que contribuir. Você tem que fazer isso vinculando as medidas ambientais às medidas sociais. Não se pode priorizar medidas ambientais deixando de lado as sociais. Sim um ambientalismo, mas com respostas às necessidades sociais.
Enfim, como você vê os próximos meses, os próximos anos, em que fase vamos viver no futuro imediato? Não estou pedindo que transmita seu desejo, mas sim sua análise.
É uma época muito caótica para o mundo inteiro. É um tempo que não escreveu o seu destino. Sempre é um pouco assim, mas as hegemonias fazem você acreditar que o que está por vir já está escrito. Porque quando as pessoas não só vivem um destino que não está escrito, mas acreditam que o destino não está escrito, que é o que está acontecendo hoje e não só entre grupos de filósofos ou militantes, mas em geral, em uma espécie de bom senso compartilhado, pois são momentos muito intensos e muito criativos. Pode haver uma saída muito conservadora, que reescreve o horizonte de previsão nos cérebros dos habitantes da cidade; ou pode haver saídas muito mais progressivas. Portanto, é um momento ambivalente, porque pode ser marcado por muita dor, por muito sofrimento, por tragédias; mas também pode ser marcada por grandes atos de heroísmo, de invenção coletiva que fazem o mundo mover-se positivamente. Acho que é assim que esses tempos serão, muito turbulentos, e é um grande desafio para as forças de esquerda e progressistas saber que vocês não estão em tempos normais. Não busque a normalidade, não haverá. Na turbulência, você tem que criar linhas de ação, posicionar-se na crista da onda para não afundar e não parecer destruído pela própria onda. Requer muita criatividade e saber que tudo é muito volátil. Não acho que esses dez anos, 2005-2015, possam ser repetidos, um mar de rosas, isso não vai acontecer para ninguém no mundo. Nem para as forças conservadoras, nem para as forças de esquerda. E você terá que testar constantemente sua capacidade de aproveitar o tempo inovando propostas, iniciativas, discursos. É uma época altamente produtiva que vale a pena ser vivida. Não há melhor momento para quem se compromete com a história do que estes. Ações pequenas, bem direcionadas e sistematizadas podem gerar grandes efeitos para os diversos lados. Se você vem do compromisso de esquerda, progressista, revolucionário, esta é a sua vez. Não por causa das vitórias que irão ocorrer, porque vitórias extraordinárias ou derrotas terríveis podem ocorrer. Há um ano, quando deixamos a Bolívia em 12 de novembro de 2019, quem pensaria no dia seguinte no México que ganharíamos as eleições um ano depois?
Em seus cálculos, o exílio seria muito mais longo?
Sim, sim. Sabia que isso tinha pernas curtas, mas não tão curtas. Não era um projeto, não tinha horizonte, era vingança, mas essas pernas curtas podem durar quatro ou cinco anos. E acontece que não foi assim. Essas mudanças no cenário político podem ser uma norma global, dos Estados Unidos à China… embora, talvez a China seja o lugar mais estável, mas também vai ter problemas. Quero dizer, o mundo é assim. Acho que é um grande momento para se comprometer, lutar, se organizar, inventar, ser jovem. Então, eu te invejo muito porque de certa forma a hora também é hoje. A hora é hoje. Mas não sabemos para onde isso vai.
E o que você vai fazer agora?
O de costume, sou um comunista, um conspirador. Organizar e treinar. Acho que posso passar certas experiências para as pessoas, para as novas gerações. O que vou fazer agora não tem nada a ver com a repetição do que fizemos, mas algo pode ajudar a evitar muitos erros que aprendemos em todo esse tempo. E mostrar um pouco dos nossos acertos para o futuro. Eu me vejo em uma função que exercia antes de ocupar a vice-presidência: escrever, dar palestras, fazer cursos, formar quadros políticos, organizar o mundo sindical, organizar o mundo agrário camponês, fazer televisão, fazer rádio, lutar pelo bom senso, por novos sentidos comuns. Faço isso desde os 14 anos e acho que vou morrer fazendo isso.
Você quer voltar para a Bolívia?
Sim, temos que voltar para a Bolívia. Devemos esperar as condições mínimas do Estado de Direito para poder voltar como cidadãos comuns, e nos defender como cidadãos comuns, sem medo de sermos presos por termos nome e sobrenome, que é o que tem acontecido todo esse tempo. Assim que essas condições mínimas do Estado de Direito forem atendidas, voltaremos a fazer o que sempre fizemos.