América Latina tem subestimado a desigualdade, aponta Cepal
A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) lançou hoje (28/11) em Santiago, no Chile, o relatório Panorama Social da América Latina 2019 e fez o alerta para a tendência de aumento da pobreza na região. A organização fez uma convocação para renovar a construção de pactos sociais integrais e universais.
O documento confirma a tendência ao aumento apresentado desde 2015 na América Latina. Em 2018, cerca de 30,1% da população da região estava abaixo da linha da pobreza, enquanto 10,7% vivia em situação de extrema pobreza. Pelas projeções da Cepal, essas taxas aumentariam para 30,8% e 11,5% em 2019.
Segundo a publicação, isso significa que aproximadamente 185 milhões de pessoas estavam abaixo da linha da pobreza em 2018, das quais 66 milhões estavam na extrema pobreza. Já em 2019, o número de pessoas na pobreza aumentaria para 191 milhões, dos quais 72 milhões estariam na extrema pobreza. “Destaca-se, nessa evolução, o fato de que praticamente todas as pessoas que são somadas às estatísticas de pobreza desse ano se integram diretamente à extrema pobreza“, aponta a organização no documento.
O aumento de 2,3 pontos percentuais da pobreza entre 2014 e 2018 na média regional é explicado basicamente pelo aumento registrado no Brasil e na Venezuela. Nos demais países, a tendência dominante nesse período foi de queda, devido principalmente a um aumento da renda do trabalho nos domicílios de menores recursos, mas também, às transferências públicas dos sistemas de proteção social e privada, como as remessas em alguns países. A pobreza afeta principalmente crianças e adolescentes, mulheres, povos indígenas e afrodescendentes, os que residem em zonas rurais e os desempregados.
O estudo aponta também que a desigualdade na distribuição de renda – expressa no índice de Gini com base nas pesquisas em domicílio – continuou a tendência de queda (em média, caiu de 0,538 em 2002 para 0,465 em 2018 em 15 países), mas em um ritmo menor do que nos últimos anos: enquanto entre 2002 e 2014 diminuiu 1,0% ao ano, entre 2014 e 2018 a queda foi de 0,6% ao ano.
A própria Cepal destaca ressalvas a esses números. De acordo com a organização, se o índice de Gini for corrigido usando outras fontes de informação, capazes de captar melhor a renda do 1% mais rico, observa-se que a desigualdade é mais elevada e a tendência de declínio é atenuada em comparação com a estimada somente a partir das pesquisas em domicílio.
No Brasil, a participação do 1% mais rico no total da renda do país em 2014 alcançava 9,1%, de acordo com as pesquisas em domicílios, percentual que subia para 27,5%, levando em consideração as informações fiscais. No Chile (dados de 2015), a participação do 1% mais rico na renda total, também medida pelas pesquisas em domicílio, atingia 7,5%, proporção que subia para 22,6%, considerando as informações dos registros fiscais e para 26,5% no caso da riqueza líquida (ativos financeiros e não financeiros menos passivos) e no Uruguai (dados de 2014) as proporções também aumentam: 7,3% (com pesquisas em domicílio), 14% (informações fiscais) e 17,5% (riqueza líquida).
“Por quase uma década, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) posicionou a igualdade como base do desenvolvimento“, destacou Alicia Bárcena, Secretária-Executiva do organismo regional, durante o lançamento do relatório. “Hoje, constatamos novamente a urgência de avançar na construção do Estado de Bem-Estar, baseado em direitos e na igualdade, que outorguem a seus cidadãos e cidadãs acesso a sistemas integrais e universais de proteção social e a bens públicos essenciais, como saúde e educação de qualidade, habitação e transporte. A convocação é para criar pactos sociais para a igualdade“.
Para ela, a diminuição da desigualdade de renda é fundamental para retomar o caminho da redução da pobreza e cumprir as metas estabelecidas no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 1 da Agenda 2030. “É necessário crescer para igualar e igualar para crescer. A superação da pobreza na região não exige apenas o crescimento econômico; isso deve ser acompanhado por políticas redistributivas e políticas fiscais ativas“, afirma a Cepal no estudo.
O documento destaca o crescimento dos estratos de renda média, embora eles continuem experimentando várias carências e vulnerabilidades, tanto em relação à sua renda quanto no exercício de seus direitos, alerta a Comissão. Entre 2002 e 2017, a participação dos estratos de baixa renda no total da população diminuiu de 70,9% para 55,9% (percentual que inclui as pessoas em situação de extrema pobreza, pobreza e em estratos inferiores não pobres).
A participação dos estratos de renda média (divididos em médio-baixo, médio-médio e médio-alto) cresceu de 26,9% para 41,1%. Dessa forma, 76,8% da população da América Latina pertence a estratos de renda baixa ou média-baixa. As pessoas que pertencem aos estratos de renda mais alta passaram de 2,2% para 3,0% do total.
Do total da população adulta pertencente aos estratos de renda média, mais da metade não havia concluído o ensino médio e em 2017; 36,6% foram inseridos em ocupações com alto risco de informalidade e precariedade (trabalhadores por conta própria não profissionais, assalariados não profissionais em microempresas e serviço doméstico); e apenas a metade das pessoas economicamente ativas eram afiliadas ou contribuintes em um sistema de previdência.
Segundo a Cepal, o principal preceptor da renda do trabalho desses estratos recebe em média US$ 664 por mês, enquanto nos estratos mais baixos essa renda cai para US$ 256. O relatório mostra que uma alta proporção da população de renda média experimenta importantes déficits de inclusão social e do trabalho e um alto grau de vulnerabilidade ao retorno à pobreza diante das mudanças provocadas pelo desemprego, pela queda de sua renda ou outros eventos catastróficos, como doenças graves e desastres.
Uma boa notícia é que o Panorama Social da América Latina 2019 indica que o gasto social do governo central aumentou de 10,3% para 11,3% do PIB entre 2011 e 2018, alcançando 52,5% do gasto público total. A América do Sul tem a média do gasto público social mais alto da região (13,2% em 2018), enquanto na América Central, México e República Dominicana esse número é de 9,1%. No Caribe, o gasto social médio em relação ao PIB é mais alto (12,2%), mas em 2018 voltou aos níveis de 2014, com um peso equivalente a 43,2% do gasto público total. O estudo adverte que precisamente os países que enfrentam os maiores desafios para cumprir as metas da Agenda 2030 são aqueles com os níveis mais baixos de gasto social.
Por fim, o documento pede para atender as causas estruturais da migração e o fortalecimento da cooperação multilateral para garantir a proteção social e a inclusão social e do trabalho dos migrantes em todas as etapas do ciclo migratório. Entre 2010 e 2019, o número de migrantes na América Latina e no Caribe aumentou de 30 para 40,5 milhões, o equivalente a 15% do total de migrantes em todo o mundo. Entre 2000 e 2019, a proporção de migrantes intrarregionais aumentou de 57% para 70% do total.
No documento, a organização aponta que “as remessas (de dinheiro) desempenham um papel importante no alívio da pobreza em vários países“. Em El Salvador, Guatemala, Honduras e República Dominicana, a incidência de pobreza sobre o total da população seria entre 1,5 e 2,4 pontos percentuais mais elevada se não fosse por essas transferências de dinheiro.
No relatório, a Cepal enfatiza que, para erradicar a pobreza e reduzir a desigualdade e a vulnerabilidade dos estratos de baixa e média renda, são necessárias políticas de inclusão social e do trabalho. Também, é necessário um mercado de trabalho que garanta emprego de qualidade e salários decentes, eliminando barreiras na inserção de trabalho das mulheres e fortalecendo o desenvolvimento de sistemas de proteção social integrais e universais no âmbito do Estado de Bem-Estar Social, focados nos direitos e na igualdade.