“Até quando vamos manter a cegueira e a hipocrisia em relação ao aborto?” por Ana Costa
Em toda a América Latina e Caribe, sábado passado, 28 de setembro, foi o Dia Internacional de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto.
Um dia de mobilização para dar visibilidade à nossa luta e fortalecê-la politicamente.
Essa data foi definida em 1990 no V Encontro Feminista Latino-americano e do Caribe (EFLAC), realizado em San Bernardo, na Argentina.
Àquela altura já estava mais do que evidenciado que o aborto clandestino mata as mulheres, especialmente as mais pobres, e que era questão de saúde pública.
Daí, a necessidade de acabar com a criminalização do aborto. Afinal, a penalização da sua prática constitui mutilação de direitos, particularmente os direitos sexuais e reprodutivos.
— Por que questão de saúde pública? – certamente há leitores questionando.
Dizemos que um tema é questão de saúde pública quando a sua presença causa malefícios e danos à população atingida e eles podem ser revertidos por medidas factíveis.
É o caso do aborto clandestino. Mulheres que, em vez de atendimento em serviços de saúde seguros, usam métodos inseguros colocam as suas vidas e saúde em risco.
E o perigo é imenso. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). 95% dos abortos realizados na América Latina são ilegais e inseguros.
A ilegalidade direciona à prática clandestina, colocando em risco a vida das mulheres.
Por isso, a legalização do aborto é medida urgente a favor da vida das mulheres.
— Que mulheres se submetem a aborto?
De todas as classes sociais.
Explico. Mulheres de todos os níveis sociais, escolaridade, etnias, urbanas, rurais, religiosas ou não estão sujeitas a uma gravidez indesejada.
Aliás, muitas mulheres que já têm outros filhos perdem suas vidas ao fazer um aborto arriscado, desmontando a estrutura de apoio familiar a essas crianças.
Portanto, despenalizar o aborto é importante para as famílias e não somente para as mulheres.
No Brasil, especificamente, o aborto é permitido em três situações: quando há ameaça à vida materna devido a determinadas doenças e a gravidez é fator agravante que acarreta riscos à mulher; estupro; e fetos com anencefalia, ou seja, sem cérebro.
Porém, há mulheres que não querem levar a gravidez adiante por diferentes razões.
Independentemente de qual seja, há sobejas evidências de que a gravidez indesejada conduz ao aborto inseguro, ceifando a vida de tantas mulheres pobres.
Por que então manter a cegueira e a hipocrisia?
As mulheres que têm recursos financeiros a gravidez indesejada é resolvida sem riscos e elas não morrem.
Já com as que são pobres isso não acontece.
Temos aí uma questão bioética, de justiça social, criada no emaranhado de moralidades e valores que conduzem essas mulheres ao abandono e à morte. Por que o desprezo e a omissão de apoio a essas mulheres?
— Mas isso é apologia ao aborto, é adotá-lo como método para evitar filhos, planejar a família! – alguns devem estar reagindo.
Nem uma coisa nem outra.
Trata-se de admitir uma realidade: a gravidez indesejada ocorre e o problema será resolvido com a interrupção dela.
Muitos dizem: sou contra o aborto e a favor de planejamento familiar!
Claro que é muito importante o planejamento familiar com a disponibilização de todos os métodos contraceptivos, com oferta de informação e garantia da autonomia decisória das mulheres.
Mas oferecer planejamento familiar, por melhor cobertura e qualidade que venha a ter, não exclui a necessidade de despenalizar o aborto que continuará ocorrendo e sendo resolvido na clandestinidade.
Continuará matando e constituindo um risco para a vida cotidiana das mulheres.
E isso pode ser diferente se o aborto deixar de ser penalizado, permitindo segurança àquelas que decidem por ele.
Somos regidas por leis muito antigas e inadequadas que precisam ser atualizadas, de acordo com a prática e modos de vida do povo e das mulheres.
O mesmo Código Penal, de 1940, define aborto como crime e penaliza, facultado apenas nos casos de risco de vida e de estupro:
Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico: I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
É muito recente a legalização da interrupção da gravidez dos casos de fetos anencefálicos.
Celebramos. Foi uma conquista.
É importante que mulheres não tenham que vivenciar o sofrimento de prosseguir uma gravidez de um feto inviável para a vida.
O Brasil, porém, precisa avançar mais.
Uruguai, Argentina e México – para ficarmos em países da América Latina — têm dados passos firmes e seguros para garantir os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
Por isso, pergunto. Como em pleno século 21 sejam regidas por um código de 1940?
Até quando os legisladores vão se manter cegos à situação que traz tanto sacrifício à vida e à saúde das mulheres e das famílias?
*Ana Maria Costa é médica sanitarista, doutora em Ciências da Saúde, professora universitária e diretora executiva do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes). Texto publicado inicialmente no Blog da Saúde, do Viomundo.