Ana Costa e a necessidade de apostar na Política para resolver os problemas do Brasil

Em entrevista ao Observatório de Análise Política em Saúde, Ana Costa comentou a escolha de Nísia Trindade para o Ministério da Saúde e os desafios que ela enfrentará na gestão da Pasta. A sanitarista também falou sobre o papel do controle social no governo, a representatividade feminina da Câmara dos Deputados, a correlação de forças entre governo Lula e o Congresso, dentre outros assuntos. Para Ana, para resolver as questões apresentadas, é necessário apostar na Política. Veja a seguir parte da entrevista de Inês Costal e Patrícia Conceição publicada no portal do OAPS.

“Repressão e legislação são importantes, mas ineficazes isoladamente para a reconstrução da democracia e da esperança que o Brasil precisa. O desafio é revolucionar culturalmente, criar uma nova hegemonia no imaginário social radicalmente democrática, criativa e confiante”. Esta é a análise de Ana Maria Costa, doutora em Ciências da Saúde pela Universidade de Brasília (UnB), professora do Programa de Pós-Graduação na Escola Superior de Ciências da Saúde do Distrito Federal e a entrevistada de fevereiro do Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS), no qual coordena o eixo Acompanhamento de Iniciativas do Poder Legislativo Federal em Saúde. Na entrevista, a diretora do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) comenta as expectativas em torno da escolha de Nísia Trindade para o Ministério da Saúde e o perfil da nova bancada do Congresso Nacional, em sua maioria não comprometida com o SUS, nem com os interesses populares – cenário que “talvez delineie uma responsabilidade para a militância sanitária que garanta uma consistente e permanente ação política junto ao Congresso”. A pesquisadora também aponta o debate sobre direitos sexuais e reprodutivos das mulheres como “urgência sanitária” e pauta central para a democracia, além de discutir o papel do controle social no novo governo Lula, que em sua avaliação tem dado sinais de estímulo à radicalização democrática, o que não prevaleceu em governos populares anteriores, nos quais “os movimentos sociais acabaram disciplinados para a garantia da governabilidade”. Boa leitura!

Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS): A indicação de Nísia Trindade para o Ministério da Saúde é considerada uma vitória do movimento da Reforma Sanitária por sinalizar um compromisso com o fortalecimento do Sistema Único de Saúde e a retomada do diálogo com a ciência. Qual sua avaliação sobre as primeiras medidas do governo Lula para o setor, entre elas o revogaço de portarias contrárias às diretrizes do SUS, e quais os principais desafios daqui em diante?

Ana Costa: O direito universal à saúde, principal objetivo da luta do movimento da Reforma Sanitária (MRS), não visa somente consolidar o SUS, mas garantir o conjunto de direitos e políticas sociais que produzem qualidade de vida e possibilitam acumulação de mais cidadania ao povo brasileiro. Por isso o MRS reitera que saúde se conquista com democracia articulada, naturalmente, a um modelo de Estado edificado e em consonância aos interesses populares. O esvaziamento na democracia acarreta recuos para a saúde, em todas as suas dimensões. 

Perdemos muito nestes anos recentes sem democracia e com obscurantismo e autoritarismo. Os dispositivos legais identificados e revogados no início do Governo Lula expressam parte dos retrocessos desviantes do SUS constitucional, mas para além das perdas irrecuperáveis das vidas humanas, haveremos que cuidar também dos problemas que comprometem o cotidiano dos trabalhadores do setor ou que incidiram sobre a cultura institucional.
 
A decisão por Nísia mobiliza muitas esperanças por diversas razões. Para além da felicidade de uma mulher ministra, Nísia conta com o respeito do campo sanitário e está cercada não apenas de seus auxiliares diretos, mas da comunidade sanitária, ou seja, de muitos profissionais altamente comprometidos, competentes e experientes na gestão da saúde, prontos e disponíveis para ajudar. 

O Ministério da Saúde mais uma vez foi muito cobiçado e, ao escolher a ministra, o presidente confirma o rumo constitucional para a saúde.  O terreno de disputa no setor é complexo, bem sabemos. Os interesses do mercado se explicitam continuamente nas últimas décadas de implementação do projeto definido pela Constituição Federal e estamos distantes de uma necessária hegemonia. Essa pantanosa configuração de alianças do atual mandato presidencial irá exigir muita habilidade e firmeza política do governo. As forças e interesses presentes no Congresso não darão trégua e isso exigirá uma articulação virtuosa do governo e da base governamental para garantir as mudanças que serão necessárias. 

A saúde não conta nessa Legislatura com uma bancada fortemente comprometida com o SUS, infelizmente. Os problemas acumulados são gigantescos e o povo espera respostas rápidas na medida das urgências sanitárias que ele vivencia. E o Ministério terá sob sua responsabilidade formular e implementar respostas e, ao mesmo tempo, avançar nas iniciativas para a consolidação do direito à saúde e do SUS. Acabar com as filas, dar resposta ao represamento das demandas, ampliar as coberturas vacinais constituem urgências que devem ser adotadas. 

Ao mesmo tempo, o Ministério precisará dedicar-se à busca da estabilidade e adequação do financiamento ao aperfeiçoamento do modelo de gestão do sistema, além de promover a criação de consórcios nos territórios, apoiar a implementação das redes de atenção à saúde (RAS), atuar na implementação de políticas paralisadas como as de promoção da equidade para negros, indígenas, mulheres e outros grupos vulneráveis e em condição de intolerável desigualdade.

O MRS espera que a saúde atue na pauta das políticas sociais no conjunto do governo, incidindo no processo da determinação social da saúde e consolidando os direitos sociais, promovendo mais cidadania e contribuindo na acumulação da qualidade de vida e saúde. Há algum tempo ficaram claras as evidências de que o investimento em saúde não é gasto e é base essencial para o projeto de desenvolvimento do país, rendendo múltiplos impactos que incluem desde a melhoria da situação sanitária da população à sua consolidação enquanto setor produtivo estratégico para a economia e soberania nacional. Estamos atrasados nesta questão e os efeitos deste atraso foram gritantes na pandemia. 

Não podemos deixar de citar algumas das pautas pendentes que se acumulam ao longo das décadas de implementação do SUS, destacando as temáticas da força de trabalho, formação de RH, carreiras, fortalecimento e qualificação dos atores e dos processos de gestão participativa e de controle social. Ainda citando desafios, a urgência climática irá requerer um investimento especial do Ministério na questão da saúde e vigilância ambiental, ao mesmo tempo, é preciso dar respostas aos alertas sobre a gravidade para a saúde acarretada pelo registro, comercialização e uso dos agrotóxicos e insumos agrícolas.

Como podemos ver nestes breves comentários, desafios não faltarão para a ministra que, por certo, disporá de habilidades, inteligência política e liderança para enfrentá-los. Estamos convencidas quanto à importância de um pacto político da sociedade brasileira pela saúde e o SUS. 
    

Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS): Sobre o papel do controle social nos próximos anos, como os movimentos sociais, especialmente aqueles ligados à saúde, devem pautar sua atuação diante de um governo federal que contribuíram ativamente para eleger?

Ana Costa: O direito universal à saúde e o SUS não contam com uma hegemonia que assegure tranquilidade… ao contrário, nas últimas décadas penamos com o financiamento inadequado e insuficiente e presença predatória do setor privado, apenas para citar duas pedras que barram o projeto constitucional. A saúde tem tradição em relação à participação social institucionalizada nos conselhos e conferências, que têm sido de grande valia nesse cenário político complexo de jornada contra-hegemônica. Entretanto, precisamos de mais participação e mobilização e talvez agora, mais do que nunca, da presença do povo nas ruas, que não é panaceia, mas poderá fazer a diferença sobre as expectativas de avanços. 

Lula tem dado sinais que estimulam a radicalização democrática, mobilizações e participação popular como método para avançar e garantir que prevaleçam interesses populares. Não foi o que prevaleceu em governos populares anteriores, onde os movimentos sociais acabaram disciplinados para a garantia da governabilidade. O impeachment de Dilma, a injusta e longa prisão de Lula e a presença massacrante da extrema direita no governo e na sociedade constituem fatos e circunstâncias que não podem sair da memória política do país. O outro Brasil que se apresenta hoje já não esconde seus povos originários, seus pretos, seus marginalizados e quer re-construir-se a partir deles. Decolonizar-se. E, para isso, vai apostando até agora, na radicalização da sua democracia. 

A criação de um Conselho articulado ao Sistema de Participação Social interministerial, envolvendo instituições e órgãos governamentais, constitui uma importante iniciativa de diálogo entre governo e grupos sociais, de democratização da gestão, mas não pode encerrar a mobilização da sociedade que deve ser livre, autônoma e instituinte enquanto sujeito da Política. O Decreto 11.407/2023, que cria esse sistema, é claro quanto à sua missão de “estruturar, coordenar e articular as relações do governo com os diferentes segmentos da sociedade de forma transversal às políticas públicas” e certamente será uma ferramenta potente para a redução das desigualdades no país, pautando os diversos setores de governo. 

Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS): Em 01 de fevereiro, com a posse dos/as 513 deputados/as federais eleitos/as no ano passado, teremos uma Câmara composta majoritariamente por homens (83%), pessoas brancas (72,12%) e representantes de partidos do centrão e de centro-direita (53%). O que esperar de uma Câmara com esse perfil?

Ana Costa: No Congresso Nacional as sucessivas legislaturas têm exibido o crescimento do campo conservador não à custa dos democratas, mas de parlamentares de extrema direita, anunciando o fenômeno presente na sociedade. Esta 57a legislatura da Câmara repete a tendência de perfil dos deputados. Apesar de um amplo e eclético bloco de apoio ao governo de 496 deputados, onde mais uma vez o “centrão” lidera, é de apenas 126 a contagem de deputados vinculados a partidos de centro, centro esquerda e esquerda. Ou seja, ainda não foi dessa vez que elegemos uma bancada significativa para garantir os interesses populares. 

E todos sabemos que os negócios constituem a força que move o “centrão”, que se serve de estratégias de chantagens para atingir seus objetivos, constrangendo os governos a situações extremamente difíceis. Para a saúde o cenário não será simples, já que não existe uma bancada forte na defesa consistente do SUS e do direito universal à saúde. Em situações e temas particulares o assunto merece uma lente mais apurada. Por exemplo, para os direitos sexuais e reprodutivos a situação agora agravou-se, pois a bancada evangélica continua seu crescimento, tendência observada desde 1999, e agora conta com 25% dos deputados, ou seja, 132 deles. No Senado esse contingente também aumentou para 14 senadores. 

Esse cenário talvez delineie uma responsabilidade para a militância sanitária que garanta uma consistente e permanente ação política junto ao Congresso Nacional. Bom lembrar que esta prática do MRS foi essencial na aprovação do capítulo da saúde na Assembleia Constituinte. 

Além da hegemonia masculina, a nossa maioria de pessoas negras na população está longe de ser representada na Casa do Povo, já que entre os eleitos para a 57a legislatura, apenas 5% são identificados como negros e 0,9% indígenas. Mas como nossos passos e lutas vêm de longe, é importante registrar as mudanças mesmo que discretas e muito lentas. Veja que atualmente contamos com 91 deputadas mulheres, 17,7% do total da Casa, sendo duas delas trans. No Senado a bancada tem 11 senadoras. 

Para ampliar a representatividade e o poder político das mulheres vem ganhando força no Congresso a ideia de estabelecimento de participação obrigatória de mulheres nas mesas diretoras da Câmara e do Senado e, nesse sentido, o foco deve ser para o projeto de Luiza Erundina, que trata do assunto. No Senado, a bancada feminina discute formas de garantir ainda nas eleições a paridade de candidaturas.  

Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS): O que uma análise sobre a nova configuração do Congresso Nacional pode apontar em termos da relação Legislativo x Executivo, correlação de forças e desafios do governo Lula diante de heranças como o orçamento secreto? 

Ana Costa: Com o orçamento secreto, os deputados ganharam o poder de fazer negócios, definir políticas e avançar nas funções do Executivo, comprometendo especialmente dois setores, o da saúde e o da educação. A invasão bárbara que resulta desta manobra compromete a democracia e mutila princípios da Constituição. O Governo jogou alto com o foco nas eleições e entregou-se de joelhos à Câmara, criando as tais emendas de relator. 

Embora o Supremo Tribunal Federal tenha declarado a inconstitucionalidade destas emendas, sob francas ameaças e chantagens de deputados, rapidamente vestido de roupagem nova, mas igualmente nocivo, surge um novo mecanismo de emendas já com a anuência do governo eleito Lula, negociado no bojo da chamada PEC da Transição – que era essencial para o cumprimento de promessas eleitorais almejadas para bancar o Bolsa Família e outros programas sociais. 

De quebra, salta para as algibeiras do governo o mesmo “centrão” que criou e manobrou pela criação do orçamento secreto, agora na base do novo governo, e que certamente irá jogar buscando manter Lula sob suas rédeas. Nos resta apostar na Política.

Leia a entrevista na íntegra no link ou a seguir:

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