“Granitos e hotelaria no hospital não significam boa assistência médica”
Em entrevista ao blog “Direito, Medicina e Poder “ (DMP), a presidenta do Cebes, Ana Maria Costa, avalia os reais problemas da saúde no Brasil e ressalta que a população precisa defender o SUS.
“Para a presidenta do Cebes, Ana Maria Costa, falta a compreensão de que a saúde vai além de médicos e hospitais. ‘Sem a atenção primária, que previne e cuida oportunamente de quase 90% dos problemas de saúde e de doença de uma população, estamos enxugando gelo’, avalia a especialista, que ainda aponta para outro veneno que circula na concepção de saúde no Brasil: sua transformação em produto administrado pelo mercado”.
DMP: Hoje, no Brasil, temos um embate: de um lado o governo diz que faltam médicos. De outro, as associações de classe falam que sobram médicos. Na sua opinião, faltam ou sobram médicos no País?
Ana Costa: Faltam médicos em lugares longínquos, cidades pequenas, periferias de regiões metropolitanas. Faltam médicos em algumas especialidades em todos os lugares. E sobram médicos em algumas cidades e regiões, e em algumas especialidades. O fato é que há muitas populações que não dispõem de assistência médica e, nesses casos, não faltam apenas médicos mas todos os profissionais de saúde. O assunto é bem mais complexo e é necessário analisar e responsabilizar o Estado, os profissionais e as escolas formadoras pela situação.
DMP: O Mais Médicos pode ser uma solução?
Ana Costa: Ele não resolve os profundos problemas dessa injusta e persistente desigualdade no acesso à assistência médica, mas teve o mérito de colocar o debate à sociedade. E agora o País sabe que, se quiser tratar do direito à saúde de todos os brasileiros, terá de enfrentar paradigmas e corporativismos que sempre ficaram ocultos e protegidos pelos diversos interesses envolvidos. Também é sempre importante lembrar que o modelo atual não produz saúde de maneira eficaz. Sem a atenção primaria, que previne e cuida oportunamente de quase 90% dos problemas de saúde e de doença de uma população, estamos enxugando gelo.
DMP: Quais os riscos de se medir a qualidade da saúde pela quantidade de médicos ou de hospitais?
Ana Costa: O número de médicos ou de hospitais não representa as condições de vida e de saúde, particularmente, quando isolados de outros fatores. A qualidade da saúde de uma população se expressa por meio das taxas de morbi-mortalidade, que dizem sobre como as pessoas morrem e adoecem. Além disso, a saúde tem relação com outros indicadores de qualidade de vida, como a renda, a escolaridade, a habitação e o saneamento, entre outros.
DMP: Em um artigo publicado recentemente, você critica o slogan “Queremos saúde padrão FIFA”. Vivemos hoje um momento de fetichização dos tratamentos médicos?
Ana Costa: O fetiche é um fenômeno humano, uma metáfora do desejo, um desvio ou uma distorção. Marx nos ensinou o conceito de fetichismo ao analisar o encanto pelo consumo de mercadorias. Freud tratou do fetichismo como desvio, com o deslocamento do objeto do desejo. A medicina, suas tecnologias e o mercado da assistência médica abusaram da fragilidade e do sofrimento humano criando um campo farto para o desenvolvimento do fetichismo.
DMP: Quais são os riscos desse comportamento?
Ana Costa: Visitei alguns hospitais e emergências médicas credenciados pela FIFA. Todos eles bem maquiados, servidos de bom cardápio de exames e tecnologias, com fino e impecável acabamento arquitetônico. E a medicina praticada neles é a do mercado, o que não necessariamente quer dizer boa assistência médica. Vou dar um exemplo: Se uma pessoa chega com politraumatismos no SUS, a equipe será mobilizada para fazer o que for necessário. Já no serviço mercantilizado, a exigência primeira é certificar se haverá garantia para o pagamento do que deve ser feito.
Essa imagem distingue a medicina de mercado da medicina ética e comprometida com a saúde e a vida humana. Granitos e hotelaria no hospital não garantem e nem traduzem bom atendimento. Mas geram feitiço e encantamento. Assim o valor social atribuído à boa medicina vai para a assistência médica altamente intervencionista, para a realização de exames desnecessários e até arriscados e para o uso abusivo de procedimentos e medicamentos.
DMP: Temos hoje, no Brasil, um atendimento baseado em um sistema de plantões que não é bom para ninguém: nem para o paciente, nem para o profissional. É possível implantar um modelo mais adequado?
Ana Costa: Esse é o modelo dos serviços privados. É assim porque é barato. Não interessa ao hospital privado ter médicos assalariados, vinculados, com carreira. Fica caro, reduz o lucro! Então pagam-se plantonistas, explorando a precariedade da mão-de-obra médica, que passa a não criar vínculo e nem responsabilidade em relação às pessoas que atende. Isso é muito ruim.
DMP: Quem se beneficia do modo como o sistema de saúde está hoje organizado no País?
Ana Costa: Todos nós devemos refletir sobre essa pergunta. O sistema não atende aos interesses públicos. É preciso tomar consciência disso e pressionar para a retomada dos rumos da saúde no Brasil.
DMP: No Brasil, a saúde foi uma das principais bandeiras das manifestações de junho e razão para embates posteriores após a divulgação do programa Mais Médicos. Os Estados Unidos estão em um colapso administrativo em muito por um impasse na forma de financiamento de seu sistema de saúde. Por que a saúde tem tanto poder na sociedade contemporânea?
Ana Costa: Por que a saúde é uma necessidade humana básica. A doença fragiliza as pessoas e a ausência de certezas em relação à proteção social e à saúde gera muita insegurança. Por isso defendemos que a saúde seja como está na Constituição: um direito de todos sob a responsabilidade do Estado. Não deve ser como está hoje: um direito comprado e mal atendido por planos fajutos de operadoras que a mercantilizaram.
DMP: É possível implantar no Brasil (considerando-se as dimensões do País) um sistema único de saúde que funcione efetivamente e em nível nacional?
Ana Costa: Claro que sim. Há serviços públicos que dispõem de excelentes profissionais, tecnologias adequadas, mas, por não ter boa hotelaria, não têm o crédito da população. É verdade que o acesso a esses serviços não é fácil, o que contribui para uma avaliação negativa dos mesmos. Mas o valor sobre a maquiagem, sobre a aparência do hospital ou da emergência conta muito. Mesmo porque muitas vezes o tempo de espera é tão longo nos atendimentos dos planos de saúde quanto nos serviços do SUS. Essas contradições devem ser enfrentadas e me parece que, em sua base, está a concepção que os sujeitos têm sobre o público e sobre os direitos sociais – particularmente, sobre o direito à saúde.
DMP: O que pode ser feito para o SUS se tornar um sistema efetivo?
Ana Costa: Há muito o que ser feito, então arriscaria enfatizar algumas coisas que considero essenciais. Primeiro, há que se ter vontade politica de fazer valer a Constituição e, para que isso aconteça, o povo tem papel fundamental. Depois, há que se destinar recursos financeiros adequados, implantar uma gestão mais eficiente e refinada, controlar mais, ter um plano de cargos e carreiras para pessoas que trabalham no SUS. Além disso, é preciso uma regulação eficiente do setor público, que deve atender ao interesse público.
O SUS é um sistema possível, mas que vem sendo boicotado desde sua criação. Em países com sistemas similares, a questão da saúde está resolvida. O que não resolve é remeter a saúde ao mercado, como vem ocorrendo no Brasil. O compromisso do mercado não é com saúde, é com o lucro.