Ana Costa: Ricardo Barros coloca gente de santa casa, indústria e planos privados no ministério; estão lá para garantir seus negócios e destruir o SUS
Na sexta-feira (18/08), a agência de notícias do Ministério da Saúde enviou à mídia este release:
Ministro da Saúde participa da 2ª Conferência de Saúde das Mulheres
Durante a abertura do encontro, o ministro Ricardo Barros apresentou os avanços da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher
O ministro da Saúde, Ricardo Barros, participou, nesta quinta-feira (17), da abertura da 2ª Conferência de Saúde das mulheres em Brasília (DF).
(…)
“Tivemos avanços importantes na assistência à saúde da mulher no SUS, mas ainda há muito no que avançar. Precisamos ampliar nossos serviços, capacitar os profissionais para que possam garantir mais acesso e mais respeito no atendimento. Precisamos dialogar para que possamos melhorar e qualificar as políticas públicas que são voltadas para a saúde da mulher. O acesso deve ser integral, eficiente e igual para todas”, destacou o ministro Ricardo Barros.
O release completo (na íntegra, ao final) tem 3.871 caracteres com espaço distribuídos em 60 linhas. Ao todo, 601 palavras.
Nenhuma vírgula, porém, sobre as já históricas vaias que o ministro da Saúde, o engenheiro e deputado federal Ricardo Barros (PP-PR), levou na abertura da 2ª Conferência Nacional de Saúde das Mulheres.
A primeira foi assim que ele chegou ao evento.
Depois, durante toda a sua fala, que durou cerca de 10 minutos.
Postadas de costas, a maioria das 1.800 delegadas de todo o Brasil exigiu que Ricardo Barros saísse da mesa e vaiou-o durante os 10 minutos.
“Politicamente foi uma manifestação bastante forte e significativa, pois ali estavam delegadas representantes das usuárias, dos trabalhadores e gestores do SUS, marcando que não concordam com o que ele vem fazendo com a saúde”, avalia a médica Ana Costa, logo no início desta entrevista exclusiva ao Viomundo.
“Certamente, essa conferência de saúde das mulheres, produto da legítima participação social, vai marcar a história da saúde no Brasil, especialmente pela mobilização consequente do que aqui foi debatido e aprovado”, observa.
Ana Costa é professora do Programa de pós-graduação da Escola Superior de Ciências da Saúde do Distrito Federal, diretora do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes) e feminista.
Ela foi uma das homenageadas na 2ª Conferência.
Viomundo – Por que a homenagem?
Ana Costa – Em 1983, eu coordenei o processo de formulação do Programa de Assistência Integral à Saúde Mulher – o Paism –, tendo sido também a sua primeira coordenadora.
A homenagem é reconhecimento dessa Conferência ao salto que nós demos em termos de referencial de política e saúde para as mulheres. Afinal, resultou na compreensão da complexidade das demandas femininas como orientação para a integralidade nos serviços para cuidado da saúde da mulher.
Com isso, rompeu com os limites impostos pela concepção dos programas materno-infantis que prevaleciam até então.
Foi uma grande inovação. Nós construímos toda uma concepção de como as mulheres deveriam ser cuidadas nos serviços, considerando a perspectiva de que serviços de saúde também deveriam estar comprometidos com a cidadania e especificidades de gênero. Esses elementos foram inspiradores ao processo que já estava em curso de criação do Sistema Único de Saúde.
Mais tarde, já no governo de Lula, essa política foi atualizada, claro, mas a sua essência — a integralidade e o respeito às mulheres e às suas demandas — continua sendo referência não só no Brasil como na América Latina.
Viomundo – E, agora?
Ana Costa – A prática do Ministério da Saúde tem sido fragmentada.
Isso, aliás, vem desde os anos 90, quando a saúde da mulher foi fatiada em diversos programas e sub programas, empobrecendo a estratégia de organização dos serviços integrais nas redes de saúde. Afinal, isso direciona a uma oferta de ações de saúde distinta das necessidades das mulheres.
Só que o momento atual é muito mais grave. Assistimos o Ministério da Saúde completamente tomado por indivíduos que estão ali para garantir os interesses e negócios dos grupos que eles representam. O SUS constitucional está comprometido e fortemente ameaçado.
Viomundo – Que grupos?
Ana Costa — As santas casas tensionam por sua sobrevivência e lucro.
A indústria e o mercado de insumos para a saúde — equipamentos, química, farmacêutica hemoderivados, vacinas –, assim como o setor de agrotóxicos (incluindo a lobby da bancada ruralista no Congresso) atuam de forma explícita, influenciando decisões relacionadas à saúde. As empresas de planos privados de seguros e planos de saúde patrocinam projetos e processos de gestão e regulação que lhes favorecem.
O certo é que representantes desses setores ocupam hoje os cargos mais importantes do Ministério da Saúde. Esse é o lastimável retrato do atual Ministério da Saúde.
Como resultado, o SUS está sendo desmontado nas diretrizes constitucionais, para atender aos interesses desses grupos.
Para eles gastos e investimentos públicos em saúde não podem ser ampliados. As soluções que eles implementam constituem desrespeito às conquistas populares e à Constituição.
Viomundo – Que recado as mulheres mandaram, quando se postaram de costas para o ministro durante a fala do ministro?
Ana Costa – Deixaram claro que rejeitam o ministro Ricardo Barros, rejeitam a sua política e rejeitam também o governo impostor do Michel de Temer que ele representa. Essas foram as palavras que as mulheres ali sustentaram, às claras.
Viomundo – O ministro tentou alardear os feitos do Ministério da Saúde em relação à saúde das mulheres, mas não foi ouvido. Elas tinham algum motivo para ouví-lo?
Ana Costa – Nenhum. As mulheres estão muito preocupadas com os rumos da atual política para a saúde, não têm tempo a perder.
Já não suportam mais o descaso com a saúde. Afinal, são as mulheres as maiores frequentadoras dos serviços, seja buscando socorro para si ou para a família.
Viomundo – E para comemorar?
Ana Costa – Também nada. O que o ministro arrolou como seus feitos são quase nada e nem podem ser atribuídos à gestão dele.
Um discurso de uma pobreza imensa, mas ele estava no seu papel. Ou seja, de enaltecer como muito o quase nada que ele fez.
Não se faz nada pela saúde das mulheres esvaziando o SUS, destruindo a rede pública de saúde, como o ministro Ricardo Barros está fazendo.
Viomundo – O que te chamou atenção na fala do ministro?
Ana Costa – Ele falou muito sobre a ampliação de kits de exames, de ofertas de exames no SUS. Interessante, não?!
Só que nós sabemos muito bem que essa incorporação de novas tecnologias está muito mais associada aos negócios dele do que a necessidades epidemiológicas que justifiquem.
Não que o SUS esteja completo em relação à oferta de tecnologias e de insumos. Mas nesse contexto não é possível aplaudir a incorporação da vacina X, do exame Y sem entender que isso mais serve ao projeto de negócio do ministro.
Viomundo – Destacaria mais algum ponto da fala do ministro?
Ana Costa – Dois pontos. Primeiro, ele diz que a integralidade não cabe na universalidade. Segundo, o que ele pensa sobre controle social. Ele disse que controle social e gestão são coisas distintas. E não são!
Viomundo – Por quê?
Ana Costa – Ele esquece ou não sabe que a Constituição e a Lei Orgânica da Saúde definiram que o exercício do controle social — por meio das instâncias criadas para a participação social — caracteriza e integra a gestão.
Conselhos têm caráter deliberativo. Conferências definem diretrizes programáticas para as politicas que devem ser cumpridas pelos gestores. Não são folhas mortas!
A participação social representa a própria interlocução do Estado, dos gestores, com os usuários e trabalhadores do Sistema Único de Saúde.
O SUS que atende bem a população é produto de uma boa gestão com participação social.
O ministro parece não acreditar nessa concepção adotada pela legislação brasileira. O Ricardo Barros é um ministro gerencialista e lobista.
Viomundo – Em que medida?
Ana Costa – O ministro tem intenções muito claras. Todas as ações dele são muito bem direcionadas.
Ele foi posto no ministério para atender os interesses dos grupos que ele representa e destruir o SUS universalista, integral e de qualidade, que é conquista do povo brasileiro.
Voltando à participação social. O ministro tem desprezo por ela. Ele demonstrou isso não só na sua fala, mas também na sua prática.
Viomundo – Por exemplo.
Ana Costa – Veja um tema que tem mobilizado e indignado o setor que a Política Nacional de Atenção Básica. O Ministério da Saúde acordou com o Conselho Nacional de Saúde (CNS) a realização de uma consulta pública para revisão da PNAB, que ele mesmo propôs.
Só que o ministro não cumpriu esse acordo e lançou o texto como definitivo sem a participação anteriormente combinada, desagradando usuários e trabalhadores do setor.
O que ministro está propondo, particularmente para os mais pobres, é restringir a oferta de ações de saúde. Além disso, a equipe corre o risco de ser desfalcada do agente comunitário, que realiza um trabalho imprescindível na atenção básica.
Ricardo Barros, portanto, sequer respeitou o Conselho Nacional de Saúde. Isso nunca aconteceu antes!
Viomundo — O que o ministro quer com a revisão da PNAB?
Ana Costa – A intenção dele é ofertar apenas uma cesta básica, mínima, de ações de saúde aos usuários e retirar a capacidade e o papel que a atenção básica tem no contexto de uma rede de serviços.
A revisão articula naturalmente com o próprio programa que ele implementa e as políticas que ele vem negociando com o Congresso Nacional e seus pares e aliados, incluindo as empresas de planos privados de saúde.
A revisão da PNAB tem a ver com a garantia de terreno para os chamados planos acessíveis, que ele quer implementar.
Com isso, o ministro Ricardo Barros destrói a universalidade, que é um dos pilares do SUS.
Só que os tais planos de saúde acessíveis são um verdadeiro estelionato que será cometido contra a população brasileira.
Além disso, todos nós sabemos que o plano acessível não tem condição de prestar os serviços que pelos quais vai ser contratado.
Resultado: tudo vai acabar no SUS, como, aliás, vem acontecendo há anos.
Quando os usuários de planos privados de saúde precisam de tratamentos e tecnologias caras ou que não dão muito lucro a essas empresas, eles são obrigados a correr para o SUS.
Por isso, o povo deve pensar sobre isso antes de embarcar nos planos privados.
Eles não garantem o direito à assistência à saúde! Ao contrário. Eles conduzem ao engodo e à fantasia da segurança de você dispor de uma assistência à saúde que não é real.
Viomundo — Finalmente, quais os resultados da 2ª Conferência Nacional?
Ana Costa – As mulheres aprovaram importantes diretrizes referentes ao que se exigir do SUS. Envolvem mais acesso e qualidade dos serviços de saúde.
Aprovaram também diversas demandas de fortalecimento do SUS de modo geral e de forma particular no interesse das especificidades dos diversos grupos de mulheres.
Viomundo – Você foi palestrante da mesa que debateu políticas publicas e participação social. A que conclusão chegou?
Ana Costa — Nós tivemos a oportunidade de refletir sobre o conjunto de desafios que estão postos para preservar o conquistado e avançar em temas politicamente estratégicos frente ao crescimento do fascismo e do fundamentalismo no mundo e no Brasil…
Nossa responsabilidade sob meu ponto de vista é radicalizar a luta pela legalização do aborto, que simboliza o confronto e a resistência das mulheres.
Felizmente, depois de muita polêmica e debates de alto nível e compromisso com a saúde, a plenária aprovou uma deliberação que encaminha para a legalização do aborto, tarefa que requer a ação do Congresso Nacional e a mobilização de todos nós.