André Singer propõe: PT deve romper com conservadores

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Ex-porta-voz e secretário de Imprensa de Lula (2003-2007), o cientista político André Vítor Singer tem se destacado como teórico – e crítico – do que chama de “lulismo”. Nesta entrevista ao colaborador do blog João Paulo Martins, o autor de Os Sentidos do Lulismo (Companhia das Letras) analisa erros e acertos do PT no poder e lamenta a ausência de uma esquerda forte o suficiente para pressionar o governo pela aceleração das mudanças.

Ele também aponta a “falta de confrontação com o capital” e aposta que o leilão de Libra foi feito para agradar “a burguesia que está passando por um período de grande hostilidade” em relação ao governo Dilma. “A Petrobrás teria condições de fazer a exploração de Libra por si mesma, sem a necessidade de associação com empresas privadas. Parece-me razoável, sendo o petróleo um elemento estratégico para o desenvolvimento do país”, disse.

Para Singer, é necessário “algum grau de afastamento das forças conservadoras” . É arriscado? Sim. Mas o partido poderia correr o risco. “Para manter uma posição mais firme na perspectiva das mudanças estruturais que o Brasil precisa”, defende. Leiam a íntegra da entrevista abaixo (Cynara Menezes)

Em 10 anos de governo PT (Lula-Dilma), o País passou por diversas conjunturas dentro do processo político. Sua tese sobre o lulismo nos auxilia a entendê-las. Quais medidas tiveram resultados satisfatórios? Em que o governo preferiu não mexer e foi negativo para o processo de mudanças no Brasil?

André Singer – No fundamental, houve uma significativa redução da pobreza no Brasil, sobretudo da pobreza extrema. O que a gente poderia chamar de tripé do “Lulismo”– que é constituído pelo Bolsa Família, pelo aumento do salário mínimo real e pelo crédito consignado–, funcionou muito bem. Na verdade, muita gente passou a ter acesso a bens de consumo e serviços que não tinha antes, você pode constatar uma melhora na condição de vida das camadas mais pobres da sociedade. E isso acabou produzindo uma reativação da economia partindo de baixo, o que significou também um quarto elemento fundamental: a geração de emprego. Nós tivemos uma redução importante do desemprego, de cerca de 12% para 5%. Isto significa que não só houve uma redução da pobreza, mas houve uma melhora das condições de luta da classe trabalhadora que acompanha a redução do desemprego. Esse é o aspecto que eu acho que funcionou bem.

Em contrapartida, o modelo lulista é um modelo que implica em não confrontação com o capital. E nos resta saber, partindo deste fato, se mudanças mais amplas no modelo econômico podem ser feitas utilizando essa estratégia. A presidente Dilma foi ousada, na primeira parte do seu mandato, tentando construir uma base para uma nova industrialização do Brasil, promovendo uma recolocação do Brasil em outros termos na Divisão Internacional do Trabalho (DIT). No entanto, aparentemente, o resultado não foi bom e agora estamos assistindo a um momento muito incerto com relação à maneira como esse projeto poderá se desenvolver no futuro.

O atendimento dos interesses de alguns setores por parte do governo, como o capital financeiro (bancos e investidores financeiros), grandes empreiteiras e o agronegócio é proporcional ao enfrentamento da pobreza promovido também por ele?

É uma constatação difícil. O lulismo é um modelo de governo de arbitragem. Ou seja, é um governo que tenta se colocar acima das classes, fazendo com que esta arbitragem produza certo equilíbrio. Claro, isto significa um governo que tende a oscilar de acordo com a conjuntura e a correlação de forças existentes no processo político. Então, não há como fazer essa apreciação geral. O lulismo é um modelo que prima por “repartir os ganhos”, por assim dizer, mas que pode ficar limitado no momento em que não há muito o que repartir.

De que maneira o pacto conservador como garantia de governabilidade e a perda de contato com os movimentos sociais modificaram as propostas iniciais do PT e trouxeram novos rumos para as diretrizes políticas do partido?

À medida que o lulismo foi se consolidando, ao longo do primeiro mandato do ex-presidente Lula e, sobretudo, sendo coroado na eleição de 2006, o PT foi adotando esse modelo, fazendo com que houvesse um deslocamento em suas bases. O PT era um partido claramente de esquerda, teve uma tradição de mais de 20 anos como um partido radical, e a partir do lulismo ele começa a transitar para outro tipo de política, que não é mais uma política radical, mas uma política de conciliação. Então, eu acho que a questão do PT é que ele ainda tem uma parcela da sua militância e mesmo dos seus dirigentes que raciocinam em termos do que foi o passado do partido e com um projeto de esquerda, mas a maioria dos membros aderiu a outro modelo de política que tem outros parâmetros.

E qual o impacto disto sobre o partido? Foi de certa forma prejudicial para o PT e seus membros antigos?

Impacto sobre o partido tem, em todos os sentidos. Essa é uma mudança importante, do que o partido foi até 2002 e do que ele passou a ser a partir de 2003. Agora, quanto a ser prejudicial é uma questão bastante dependente da posição de cada um. Eu acho que, no Brasil, seria positivo vir uma esquerda que pressionasse mais fortemente na direção de uma aceleração maior das mudanças. O sentido das mudanças que o lulismo está fazendo é basicamente correto. Qualquer esquerda no Brasil teria que ter como ponto prioritário do seu programa a redução da pobreza e desigualdade. O grande problema é o ritmo dessas mudanças. Seria bom para o Brasil um setor de esquerda forte e atuante que pressionasse no sentido de acelerar essas mudanças.

Quais são as suas perspectivas sobre o leilão do Campo de Libra? Houve privatização? Quais os ganhos e as perdas reais do Brasil com ele?

O que eu pude depreender é que a Petrobrás teria condições de fazer a exploração de Libra por si mesma, sem a necessidade de associação com empresas privadas. Parece-me razoável, sendo o petróleo um elemento estratégico para o desenvolvimento do país. Seria interessante que isso ficasse sobre controle nacional porque permitiria uma maior influência sobre o ritmo da exploração e o preço do petróleo. A meu ver, a própria compra de equipamentos produzidos no Brasil entra em um conjunto de fatos que justificariam o controle da produção por parte da Petrobrás, mesmo que isso implicasse uma certa lentidão no processo. Até porque, em minha concepção, o processo de exploração desse petróleo tem que ser lento, e é bom que ele seja. Minha intuição aponta para que esta medida tenha sido tomada a fim de dar uma prova de confiança para a burguesia que está passando por um período de grande hostilidade em relação ao governo Dilma. Não tenho como provar, mas a minha hipótese é essa: a associação não foi feita por razões estritamente econômicas, mas sim para permitir que o governo Dilma tivesse uma espécie de prova de confiabilidade em relação ao capital privado.

Como você analisa o sistema tributário brasileiro? Há uma proporcionalidade na relação entre arrecadação e distribuição?

O meu entendimento é que o sistema tributário brasileiro poderia ser mais progressivo, ou seja, taxar mais os que possuem mais. Esse é o ponto principal. Para que o Brasil possa construir um Estado de bem-estar social, o Estado tem que ter muitos recursos. Como eu acredito que esta seja das experiências mundiais que levou os países que o construíram mais próximo de um nível elevado de civilidade, sou simpático à construção dele no Brasil. Para tornar isso possível, a minha sugestão seria um sistema tributário mais progressivo, em que o Estado taxasse mais os mais ricos e pudesse financiar a construção deste Estado de bem-estar social.

Seria possível o PT se distanciar das forças conservadoras para disputar a eleição? Isso seria bom para o partido?

Possível é. A questão é que isso envolve riscos eleitorais. Em minha opinião, sem abrir mão do realismo político que é necessário, o partido poderia correr alguns riscos em nome de manter uma posição mais firme na perspectiva das mudanças estruturais que o Brasil precisa. Em política, você não deve tomar riscos que você não tenha calculado, nem que sejam riscos exagerados. Eu não sou voluntarista e não acredito numa proposta meramente para marcar posição. Acho que o partido tem tido um papel nas mudanças e deve continuar tendo. Com moderação, o partido poderia e deveria correr alguns riscos. Nesse sentido, algum grau de afastamento das forças conservadores seria necessário.

E a aliança com o PMDB, com os ruralistas e com os pastores deputados? Há como o partido se desvencilhar delas?

São setores poderosos da sociedade brasileira, mas que de modo geral dependem de um programa conservador, que é muito oposto às propostas originais do PT. Sem dúvida são setores com os quais deveria se pensar em criar alguma distância. Mas repito: haveria muitos riscos eleitorais.

Qual é sua análise sobre as manifestações de junho? Como o Estado deveria atender as reivindicações populares?

As manifestações acabaram se constituindo em um fenômeno muito complexo, porque elas não tiveram uma causa única e nem uma direção única. Isso torna o mês de junho no Brasil difícil de entender. Elas começam como manifestações de esquerda e com uma plataforma voltada para aceleração das mudanças e a construção do Estado de bem-estar social. A reivindicação pela diminuição da tarifa com perspectiva de um transporte público gratuito aponta no sentido de direito coletivo ao transporte público, e é uma visão, no fundo, anticapitalista.

No entanto, a partir de um certo momento, que eu situo naquela grande manifestação do dia 16 de junho, elas deixaram de ser manifestações de esquerda, porque começaram a entrar outras forças ideológica que eram de direita e de centro. A esquerda continuou presente, mas ela deixou de ser majoritária e deixou de ter o comando efetivo das manifestações. A partir desse momento, as reivindicações se tornaram alguma coisa muito ambígua, porque elas estavam pedindo coisas muito diferentes, partindo de orientações ideológicas muito diferentes. Nesse sentido, manifestações com aquelas características não vão acontecer mais, porque é muito raro acontecer uma situação na qual a extrema esquerda e a extrema direita estejam em uma mesma passeata, passando por diversos espectros. O fato é que a partir de junho os setores fiscais se viram, de alguma maneira, estimulados a se mobilizarem e pressionarem no sentido das suas reivindicações particulares. O problema é que são reivindicações muito diferentes e, em alguns casos, opostas.

Por exemplo, tivemos depois de junho manifestações públicas contra o Mais Médicos. São reivindicações contrárias a quem quer uma expansão da saúde pública no Brasil. São duas visões diferentes. Não há resposta para a pergunta se haverá atendimento ou não às reivindicações e por quais medidas. Na verdade, o que acontece é que junho marca uma mudança na conjuntura brasileira, em que você passa a ter uma luta social mais intensa. O que já está acontecendo é que cada setor, cada camada social, cada fração de classe vai lutar por si e o resultado vai depender da sua força relativa. Nós tivemos, de lá pra cá, greves, como a greve dos bancários. Ela foi bem sucedida, visto que eles conseguiram um aumento real para a classe. Então, isso tende continuar acontecendo em todos os setores. Agora, em que medida essas reivindicações vão ter sucesso ou não vai depender da força relativa de cada setor.