“Ao liberar hidroxicloroquina, CFM joga nas costas do paciente a responsabilidade pela decisão de usar”
entrevista de Conceição Lemes com o cebiano Heleno Corrêa para o Viomundo
Os Conselhos Profissionais das Profissões regulamentadas são órgãos de Polícia Administrativa do Estado.
Têm a função de fiscalizar o cumprimento de regras estabelecidas para o exercício profissional, em combinação com práticas publicadas e aceitas por instituições científicas e acadêmicas.
Isso vale, claro, para o Conselho Federal de Medicina (CFM).
O CFM pode, por exemplo, fechar hospital, lacrar pronto-socorro ou centro cirúrgico.
Também pode interditar um profissional ou uma clínica com indícios de ilegalidades ou práticas consideradas antiéticas ou de charlatanismo.
Em tese, deveria fiscalizar as leis referentes a tratamentos autorizados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e Associação Médica Brasileira (AMB), que representa as especialidades médicas.
Ou seja, é órgão que tem o dever que zelar pela ética da prática médica em todas as instâncias.
De uns anos para cá, porém, o CFM assumiu crescentemente um papel político — e partidário.
Defendeu o golpe que derrubou a então presidenta Dilma Rousseff.
Fez campanha contra o Programa Mais Médicos e os profissionais cubanos.
Seu presidente, Mauro Luiz Britto Ribeiro, defendeu fervorosamente a candidatura de Jair Bolsonaro à Presidência, entre outras ações.
E hoje, agindo essencialmente por motivações políticas, acabou jogando uma pá de cal sobre si mesmo.
O CFM liberou o uso da hidroxicloroquina em três situações, inclusive no início de sintomas sugestivos de covid-19 e em ambiente domiciliar.
O anúncio foi feito pelo próprio presidente do Conselho, após reunir-se com Bolsonaro e o ministro da Saúde, Nelson Teich.
Na ocasião, Ribeiro entregou às autoridades um parecer do conselho sobre a administração da substância em pessoas com Covid-19.
“Ao decidir permitir ‘embora sem autorizar’ o emprego de terapêutica que não tem suporte científico publicado, o Conselho Federal de Medicina extrapolou suas competências e atribuições”, critica o professor Heleno Corrêa Filho, em entrevista exclusiva ao Blog da Saúde.
Heleno é pesquisador colaborador da Universidade de Brasília (UnB) e diretor executivo do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes).
Segue a íntegra da nossa entrevista.
Blog da Saúde – O presidente do CFM disse que o Conselho decidiu liberar os médicos para usarem a substância. Mas que não se trata de uma recomendação da entidade, mas de uma autorização. Como é possível esta mágica?
Heleno Corrêa Filho – Lembra-se de que o Bill Clinton, ex-presidente dos EUA, disse que fumou maconha mas não tragou?
Na época, Clinton não queria posicionar-se a favor da descriminalização de uma droga psicoativa, mesmo assim apertou o cigarro da droga, acendeu, fumou. E depois alardeou.
Nem Caetano Veloso diria “se eu sou algo incompreensível meu Deus é mais”!
O CFM fumou, não tragou e alardeou.
Blog da Saúde – Um médico pode recorrer a uma medicação não comprovada em casos extremos?
Heleno Corrêa – Veja bem. Se o tratamento é empregado com finalidades heroicas ou de compaixão pela falta de evidências científicas favoráveis, um médico não pode e não deve ser processado pelo CFM e suas divisões estaduais.
O acordo de medicação paliativa, de compaixão ou de tratamento de última tentativa pela sustentação da vida é totalmente coberto pelo comum acordo entre o médico, o paciente, e na falta de capacidade decisória, da família e/ou seu cuidador tutelar.
Portanto, não há necessidade de “autorizar” tratamentos paliativos.
Blog da Saúde – Mas o CFM “autorizou” o uso domiciliar e no início de uma possível infecção pelo novo coronavírus!
Heleno Corrêa Filho – Ou seja, não se trata de tratamento paliativo. Além disso, há evidências científicas de que a hidroxicloroquina não funciona e ainda pode causar efeitos colaterais graves.
Até hoje, 23 de abril de 2020, as evidências são de que o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina em casos graves, e mesmo leves, precipitou agravamentos e efeitos colaterais que levaram a suspender o tratamento.
Portanto, não há por que permitir o uso, seja lá o que for uma ação que implica na sua contradição.
Na língua portuguesa há uma palavra que define uma contradição implícita no sentido usado pelo que está sendo escrito ou falado – é um oximoro. A palavra é tão estranha quanto o conceito.
Blog da Saúde – É atribuição do CFM autorizar o uso de uma droga?
Heleno Corrêa Filho –A rigor quem libera o uso dos medicamentos no mercado nacional é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
A hidroxicloroquina não está liberada pela Anvisa para uso na covid-19.
Outro caminho seria via AMB. Associação Médica Brasileira recolhe evidências e publica um parecer sobre um determinado tipo de tratamento com base em conhecimento divulgado e consenso entre especialistas.
O CFM não usou este mecanismo de reunir uma Câmara de Especialidades de Tratamento de moléstia infectocontagiosa de origem viral.
Simplesmente “permitiu” por escrito baseado na opinião política de seu presidente após ouvir um leigo que também prescreve tratamentos anticientíficos – o atual presidente da República Federativa do Brasil.
Blog da Saúde – O presidente do CFM disse que entregou um parecer do Conselho a Bolsonaro…
Heleno Corrêa Filho – As Câmaras Técnicas do CFM e Conselhos Estaduais podem elaborar pareceres sobre temas solicitados com base no consenso técnico, nas publicações científicas e na ética médica aprovada pelo Código de Ética Médica.
Não podem, no entanto, inovar na prática médica sem evidências científicas prévias e sem submeter o tema à discussão entre os Conselheiros eleitos com mandato fixo pela categoria médica.
Não temos conhecimento de que uma Câmara Técnica do CFM tenha feito isso. E, se o fez, ignorou as melhores evidências técnicas e científicas atualizadas e cometeu um abuso de competência.
Blog da Saúde – Na entrevista, o presidente do CFM se referiu pelo menos três vezes à participação do paciente na decisão de usar a hidroxicloroquina.
“É também uma decisão compartilhada com o paciente, em que o médico explica que não existe nenhum benefício provado da droga no uso da Covid e os riscos que a droga apresenta”
“Ou seja, o paciente está praticamente fora da possibilidade terapêutica e o médico, com autorização dos familiares, pode usar essa droga”
“Todos os casos a administração deve ser feita no âmbito da relação entre o médico e o paciente”
Professor, o doutor Mauro Ribeiro está inaugurando a terceirização da responsabilidade, tirando das costas do médico e jogando nas do paciente? Se o paciente morrer devido aos efeitos colaterais a responsabilidade será dele?
Heleno Correa Filho — É uma ação irresponsável jogar sobre o paciente em estado de angústia, sofrimento e até agonia a decisão, sem conhecimentos, sobre a medicação que é de responsabilidade médica.
O paciente não está em condições de analisar mesmo precariamente informado.
É diferente de informar para tomada de decisão com conhecimento prévio de efeitos adversos.
Nesse caso, não são conhecidas as vantagens e somente conhecemos parte dos efeitos indesejáveis, pois a medicação não foi utilizada historicamente em pacientes com a covid-19.
Essa “inovação” com a responsabilidade jogada sobre os ombros dos pacientes deve ser vista como condenável do ponto de vista ético porque o paciente não tem como avaliar o malefício provável.
Blog da Saúde – Um pouquinho atrás o senhor se referiu a Bolsonaro, que, assim como o presidente do CFM, prescreve tratamentos anticientíficos. O que acha de alguém que dá este tipo de opinião?
Heleno Corrêa Filho – Lembra-se de que durante a campanha eleitoral de 2018 Bolsonaro disse que, como capitão, a especialidade dele era matar?
No caso da hidroxicloroquina, Bolsonaro está exercendo a faculdade maior da sua especialidade declarada.
Há uma grande probabilidade de que a prescrição populacional ampla de um tratamento inconveniente possa levar mais pessoas à morte, além dos casos recentemente relatados na imprensa internacional.
De fato, a especialidade é matar, neste caso com fins políticos, além da usurpação de uma atribuição que não compete ao CFM.