Aonde quer chegar a ação na Cracolândia?

Revista Época – 16/01/2012

Por: Fernando Abrucio

A luta contra as drogas tem sido um dos maiores desafios às sociedades contemporâneas. Dicotomias como a pura repressão ou a simples legalização do uso não respondem adequadamente à questão. Por isso, abordagens que mesclam diversos tipos de ação e buscam reduzir os danos aos usuários e à sociedade têm sido cada vez mais utilizadas. É preciso, ainda, recuperar o poder do Estado como garantidor de direitos, entre os quais a mobilidade, a saúde pública, o horizonte profissional dos mais jovens e, como mais difícil de todas as tarefas, a reincorporação de pessoas que estão à margem da sociedade. A famosa cracolândia, área da cidade de São Paulo que virou símbolo do domínio do crack sobre milhares de pessoas, é o melhor exemplo no país para entender a complexidade desse tema.

Depois de quase 20 anos de descaso e abandono, há cerca de duas semanas foi feita uma megaoperação para retirar os traficantes e usuários da Cracolândia. Não foi uma operação meramente policial. Apareceram por lá técnicos da saúde, da assistência social, que já têm atuado na região, como também funcionários da limpeza urbana. No início, foi dito que tinha sido uma ação conjunta do governo estadual com o municipal, algo ótimo e desejável. Nos dias seguintes, porém, surgiram notícias de que o movimento não tinha sido tão bem articulado.

O passar do tempo revelou que faltou planejamento e maior integração das ações. Melhor exemplo disso: a prefeitura só inaugurará um centro na região para atendimento dos usuários em um ou dois meses. Os “noias”, como são chamados os dependentes zumbis do crack, começaram a perambular pelo entorno. Continuou a haver venda da droga a céu aberto – a apreensão de crack pela polícia desde o início da operação foi irrisória. As frases usadas para justificar a enorme mobilização do Poder Público começaram a se contradizer.

A imprensa veiculou uma história muito pior para o futuro da Cracolândia. Alguns jornais disseram que a ação foi precipitada pelo governo estadual, com apoio titubeante da prefeitura, porque havia a suspeita de que o governo federal faria uma grande operação em abril. Não se sabe ainda quanto disso é verdade ou apenas uma guerra de informação, típica dos períodos eleitorais. No caso atual de São Paulo, há uma enorme indefinição em relação às alianças partidárias, em particular para os tucanos e as lideranças do PSD. Obviamente o jogo pode virar, à medida que os governos estadual e municipal puderem corrigir os erros atuais e construir uma visão mais sistêmica e de longo prazo para a Cracolândia. Mas parte do estrago já foi feito: os cidadãos perceberam que a rapidez e o momento da ação miravam a eleição. Isso enfraquece os objetivos nobres que decerto guiavam a cabeça dos governantes.

Mesmo que o propósito não fosse eleitoral – ou melhor, eleitoreiro –, sabe-se que o auxílio do governo federal será importante nessa luta. Cabe aqui a comparação com o caso carioca. Só foi possível trazer o morro de volta ao Estado e, principalmente, aos cidadãos porque houve uma ajuda valorosa da União. Houve apoio financeiro, de infraestrutura, bélico, de efetivo militar, ações sociais e, fundamentalmente, a articulação com a Polícia Federal, que garantiu boa parte da inteligência da operação, além de contar com membros menos suscetíveis à corrupção das máfias urbanas.

Os governantes de São Paulo podem dizer que não precisam dessa ajuda, pois têm uma máquina burocrática mais competente e menos corrupta que a do Rio de Janeiro – algo provavelmente verdadeiro –, além de ter recursos suficientes para realizar uma ação de longo prazo. Se for essa a perspectiva, na linha mais da independência federativa que do cálculo eleitoreiro, será até compreensível a escolha. De todo modo, ela é equivocada. A articulação intergovernamental é fundamental para atacar um problema tão complexo como a Cracolândia. A soma de recursos financeiros, humanos e de experiência de gestão seria uma bênção para os paulistanos, como eu.

Muitas vezes se reclama de que São Paulo não é beneficiado por recursos federais como outros lugares. É o que se vê na questão do metrô. Capitais como Salvador e Curitiba, governadas pela situação e pela oposição à presidente Dilma, recebem mais ajuda direta para esse tipo de transporte. Pois bem: eis aqui uma oportunidade para mudar esse cenário. O governo Geraldo Alckmin já percebeu, com grande senso republicano, que é melhor fazer parceria com a União nas políticas de transferência de renda e habitação, além das obras do PAC. O prefeito Gilberto Kassab também já teve comportamento parecido. Por que não repetir isso no caso da Cracolândia? Se os três níveis de governo atuarem juntos, fica mais difícil o uso eleitoral da operação, por qualquer um dos atores partidários.

Tomando como verdadeira a informação veiculada de que haverá, a partir de abril, uma ação federal em várias capitais, estaria aí mais um motivo para chamar esse parceiro a atuar, no curto e no longo prazo, na Cracolândia. Seria possível ter uma dimensão comparativa e aprender no decorrer das intervenções urbanas, algo que ocorreu na montagem gradativa das UPPs dos morros cariocas. Mais importante ainda: teríamos um programa com uma dimensão nacional, elemento essencial no combate ao caráter epidêmico que tem o uso do crack no Brasil, chegando cada vez mais aos recônditos do país.

Além da articulação intergovernamental, é fundamental fortalecer a coordenação dos vários setores que devem atuar na Cracolândia, que pareceu, no mínimo, pouco planejada e integrada. O que está em questão são os objetivos de longo prazo da megaoperação. Se for simplesmente “limpar a região”, não é tão difícil assim. Basta ter uma presença permanente e repressiva no local, o que não é pouca coisa, dado o abandono da Cracolândia. Mas a mobilidade dos “noias” e dos traficantes é grande. Isso gera outras minicracolândias, sem muitas barreiras, na própria área central da cidade.

Outro pode ser o norte de uma ação sistêmica e de longo prazo: ter como objetivo garantir tanto a mobilidade da população como a assistência médica e social aos usuários. O maior desafio para atingir essa meta é criar centros permanentes, com um número maior de vagas, que sirvam para internação e ação contínua para os drogados – algo que São Paulo não tem. Para tentar tirá-los da situação de zumbis urbanos, é preciso tratar da saúde e da perspectiva de vida, oferecendo atividades que possam mudar o horizonte de vida dessas pessoas. Tão difícil quanto tirá-los do vício é reintegrá-los à sociedade.

Vencer a Cracolândia é recuperar não só o espaço físico, mas principalmente as pessoas. Dar a possibilidade de todos os cidadãos terem acesso a outras opções de vida é tarefa das mais nobres do Estado. O país tem conseguido fazer isso no combate à pobreza. Mas a exclusão vai além da renda e do emprego – e atinge até a cidade mais moderna da América Latina.
Fernando Abrucio é doutor em ciência política pela USP, professor da Fundação Getulio Vargas (SP)