Arriba e abaixo
Ligia Bahia | O Globo
Há um programa, um plano, uma meta a ser atingida para todo e qualquer problema de saúde. A dúvida é se essas peças normativo-legais alteram para melhor situações reais de acesso, utilização e qualidade das ações de saúde. Nascimentos, atendimentos a urgências e emergências, a crianças, hipertensão e diabetes foram equacionados pelas propagandas dos governos federal, estaduais e municipais nas campanhas eleitorais anteriores. Entretanto, os efeitos de campanhas publicitárias sobre o funcionamento do sistema de saúde não têm sido homogêneos. O programa Farmácia Popular, que efetivamente ampliou acesso a determinados medicamentos, foi antecipado pela plataforma eleitoral do primeiro mandato de Lula. Outras ideias para deixar marcas, como “caçar” mamógrafos e telefonar para as gestantes para saber sobre o parto, não conseguiram sair do papel ou dos discursos.
Em 2014, a saúde dificilmente se tornará o centro da polarização dos debates. As breves polêmicas entre Dilma e Marina concentraram-se em torno de políticas macroeconômicas, as áreas sociais sequer foram mencionadas. Parece um repeteco de 2010, quando a saúde já ocupava o primeiro lugar entre as principais preocupações da população, mas não adquiriu precedência em relação às disputas sobre a privatização ou não das estatais. Contudo, ninguém poderá deixa a saúde de lado nos desenhos do Brasil do futuro. O programa Mais Médicos, querendo-se ou não, construiu uma narrativa diferente sobre os problemas de saúde. A identificação de um inimigo e de uma solução para derrotá-lo — médicos elitistas versus populares — não figurava na nossa agenda pública.
Estávamos acostumados com o fez, não fez e o por fazer em relação a obras e atividades consensuais. A chamada inédita para posicionamentos contra ou favor do “inimigo” evidenciou a imensa adesão da população às propostas para a saúde rotuladas como radicais. E não é só por aqui que a explicitação de conflitos trouxe bons resultados. O Obamacare foi movido por adesões contra o excesso de mercantilização da assistência médico-hospitalar. Seria, porém, incorreto estabelecer analogias entre Brasil e EUA no que se refere à extensão e profundidade dessas controvérsias. A reforma do sistema de saúde americano atinge grandes empresas seguradoras, repercute no aumento de impostos para ricos e na vinculação da legislação à expansão do orçamento público e confronta claramente valores de liberdade e igualdade.
No Brasil, as altercações sobre a saúde ainda são superficiais, não ameaçam a definição de quem manda e obedece. O presidente americano participou pessoalmente de diversos debates no Congresso, em entidades médicas e empresariais. Aqui, os atuais candidatos à Presidência da República e aos governos estaduais insistem em agradar a todos, inclusive aos médicos não estrangeiros. Os mesmos personagens tachados de xenófobos e retrógrados, que tocam os negócios das Unimeds, acabam de ganhar um baita presente pré-eleitoral.
O ministro Fernando Pimentel participou neste mês da convenção da empresa em Belo Horizonte e anunciou a abertura de créditos do BNDES para incentivar a reforma e construção de hospitais para expandir as demandas de planos privados. A denúncia do favorecimento descarado às poderosas cooperativas médicas não foi eficaz para revogar a medida. Para disfarçar o vexame, cogita-se estender empréstimos governamentais a todas as empresas. Serão recursos públicos adicionais investidos em caloteiros renitentes que nunca pagaram o ressarcimento ao SUS, nem diversos impostos e contribuições sociais. Tem mais, além de créditos as operadoras de saúde adquiriram, também neste mês, novas isenções tributárias em troca de promessas de garantias de cobertura. Assim, procura-se satisfazer as empresas e seus clientes, os primeiros aumentam seus mercados e os segundos teriam, em tese, menos restrições de coberturas. Já se sabe que, na prática, não será bem assim. Mas fica de bom tamanho para fins políticos imediatos.
Em 2014, “buracos” assistenciais passíveis de fácil dramatização no contexto de contenda eleitoral estarão virtualmente fechados. A lei dos 60 dias para o início do tratamento do câncer e obrigatoriedade do fornecimento de medicamentos antineoplásicos orais pelos planos privados completou a façanha da construção potencial de um bom sistema de saúde. O SUS ficará pronto para a campanha com o desembarque dos médicos cubanos e rapidez no atendimento de pacientes, cujas sobrevidas dependem de intervenção precoce.
Os planos de saúde também estarão repaginados pela obrigatoriedade de coberturas para medicamentos caros e antes indisponíveis e prazos para a marcação de consultas. Ficou faltando apenas combinar com quem toca o dia a dia dos serviços de saúde. As inconformidades entre o que se ouve, o que os governos fazem e o que se sabe e vê é abissal. Os éditos para a saúde emanados do Palácio do Planalto, elaborados por especialistas em generalidades, mas sempre portadores de boas notícias, não têm sido discutidos com o Conselho Nacional de Saúde e estudiosos de diversos campos da saúde. A rarefação de divergências na atmosfera palaciana desfavorece criticas e o exame de projetos alternativos. Está tudo mapeado, exceto os inevitáveis fracassos. A obrigatoriedade de cumprimentos de prazos estimula o não registro de casos muito graves de câncer e concessão de maiores nacos do fundo público para planos de saúde, necessariamente desfinancia o SUS.
Caminhar em ziguezague já provocou retrocessos objetivos. Por mais bem bolada que seja a ideia de nunca comprar briga — até que um dia não sabe quando se consiga purificar incoerências — fica difícil convencer que esse é a único caminho possível para organizar um sistema de saúde efetivamente adequado às necessidades de saúde. Voltar atrás em relação à permissão para a comercialização de agentes comprovadamente causadores de neoplasias como o tabaco com aditivos e aromatizantes e oficializar o uso de terapias diferenciadas para quem tem e não tem plano privado é uma rota incongruente e arriscada. Os apelos à paciência sobre as marchas e contramarchas na saúde tem limite. O diz que vai, mas não vai, admite uma interpretação diversa e singela sobre as políticas de saúde: os fins justificam os meios.