‘Arriscando impressões para o futuro’ por Ana Costa
A diretora do Cebes, Ana Maria Costa, fez uma análise do cenário da política brasileira na semana imediatamente após a vitória de Lula em 2022 para um inédito 3o mandato presidencial e arrisca impressões para o futuro. A sanitarista pontua o péssimo enfrentamento à pandemia pelo governo Bolsonaro, o crescimento da extrema-direita no parlamento federal e nos Estados – mas algumas conquistas, como a eleição de Boulos e integrantes de movimentos sociais como o MST. “Para a esquerda brasileira resta reconstruir e fortalecer suas bases sociais com ampliação da consciência política do povo pautando a valorização dos princípios da solidariedade social e da democracia”, frisou. Veja o artigo na íntegra a seguir.
Há 6 anos vivemos em luta contra o fascismo que se instalou e vem convivendo com as graves crises política, econômica, sanitária, cultural e social. A pandemia assolou o país matando mais de 680 mil pessoas, proporcionalmente a maior mortalidade do planeta. Nunca será demais lembrar que o governo realizou uma péssima gestão sanitária: omissa, equivocada, corrupta na qual a compra e aplicação de vacina somente ocorreu mediante uma ampla mobilização da sociedade incluindo o apoio dos poderes Legislativo e Judiciário. Análises epidemiológicas mostram que metade dessas mortes poderiam ter sido evitadas por meio da ação pronta e eficaz do governo adotando orientações e medidas fundamentadas no conhecimento científico e adquirido as vacinas em tempo oportuno. Na vigência de uma pandemia dessa natureza a variável tempo é fundamental.
O país está terminando um sofrido processo eleitoral do qual sai vitorioso o Presidente Lula do Partido dos Trabalhadores (PT), em ampla aliança de democratas de diversas matizes políticas, contra o atual presidente Jair Bolsonaro que tentou, a todo custo, manter-se no poder. Nesse processo eleitoral que também elegeu um novo parlamento federal e estadual, o destaque deve ser dado aos movimentos sociais que elegeram lideranças populares expressivas ao Congresso Nacional, como é o caso de Guilherme Boulos do MTST eleito pelo PSOL-SP, e diversos parlamentares federais ou estaduais eleitos em muitos estados e que são oriundos do MST. Entretanto, no seu conjunto, as forças de esquerda e centro esquerda não conquistaram numericamente uma bancada com maioria suficiente para tranquilizar e garantir a governabilidade de Lula.
Lula venceu as eleições a despeito de tudo e todos que golpearam a democracia e tentaram melar o processo eleitoral. No campo político é mister assinalar o seu grande crescimento como líder político para muito além do Brasil: sua imagem é a de um estadista que barrou a sobrevivência no poder de um dos esteios da ultradireita no mundo e, por outro lado, submerge como redentor de um país destruído pelo fascismo, depois de ser injustamente preso, retornando agora ao seu terceiro mandato.
Mas o Brasil herda desse período a presença real da ultradireita fascista com lideranças eleitas para governos estaduais e diversos cargos nos Legislativos estaduais e federal. Pode-se dizer que desta forma, Bolsonaro cresceu para dentro da política nacional, de forma orgânica já que não há dúvidas de que a extrema direita hoje encontra-se organizada no país.
Mais preocupante que essa constatação é a presença de uma base coesa, fanática e organizada que se apresentou inconformada depois dos resultados das urnas, e, sob comando, vem realizando bloqueios de rodovias em quase todos os Estados brasileiros. Essa disposição está em franco descompasso com a própria organização da base de esquerda nacional apesar do ensaio feito na disputa eleitoral, que cria milhares de comitês populares de luta para eleger Lula.
A movimentação política que Lula e seus aliados deverão operar e por certo o farão com a maestria necessária para garantir a governabilidade é parte da rotina virtuosa da política.
Entra e sai governo e sucessivas legislaturas, o país convive com um conjunto de partidos sem base ideológica que agrega um volume significativo de parlamentares que pendem a um lado ou outro de acordo ao atendimento de suas demandas e exigências, nem sempre inócuas para o governo. Este grupo conhecido como “centrão” esteve na base política de Bolsonaro, mas outrora também apoiou os governos populares em negociações de alto custo político para o PT, incluindo o impeachment de Dilma Roussef.
A enorme e persistente campanha midiática de destruição de Lula e do PT se agrega ao desgaste destas relações e são responsáveis importantes – não exclusivas – pela rejeição ao partido e ao próprio Lula, o antipetismo e o antilulismo.
Certamente que nos próximos meses e anos Bolsonaro tratará de manter essa liderança da ultradireita e esse capital político acumulado e para isso escolherá o caminho do caos que lhe conferirá maior visibilidade. Mas os crimes que cometeu no exercício de seu mandato precisam ser investigados e o ex-presidente julgado. A saber se estas medidas serão adotadas e o povo não pode estar desatento a isso.
As eleições ocorreram sob um mar de corrupção, compra de votos e uso de recursos e da máquina pública sem precedentes no Brasil e esta foi certamente a causa da pequena diferença de votos entre os dois candidatos. O uso abusivo das redes sociais espalhou fake news absurdas marcando a realidade paralela que está na base da desconstrução da Política enquanto prática de debates acerca dos interesses comuns da sociedade.
No contexto de uma sociedade dividida e inundada pelo ódio, a grande tarefa para Lula será reconstruir o país, a democracia, a unidade e a esperança implementando, ao mesmo tempo, políticas sociais que reduzam as enormes desigualdades herdadas, particularmente a fome que hoje atinge 33 milhões de brasileiros.
Para a esquerda brasileira resta reconstruir e fortalecer suas bases sociais com ampliação da consciência política do povo pautando a valorização dos princípios da solidariedade social e da democracia.
Essa tarefa envolve o desafio de incluir todos os territórios em redes de comitês locais que não apenas informem e forme cidadãos, mas que mobilizem e organizem essa base. A garantia de atendimento às demandas populares nunca constitui uma hegemonia para os governos, sempre enredados com a ganância do mercado e do capital. Em particular, é importante lembrar que a ampla aliança de democratas que garantiu a vitória do Lula traz no seu bojo a provável postergação e dificuldades para que os interesses populares sejam plenamente atendidos, caso o povo não esteja nas ruas exercendo o seu direito de organizar e mobilizar para reivindicar e garantir seus direitos.