As agências reguladoras e o triângulo da modernidade cínica
Álvaro Nascimento
Entre o primeiro e o segundo turno da eleição deste ano, um diretor da Anvisa participa de evento organizado por fabricantes de medicamentos, setor a ser regulado por ele. Um grande jornal de São Paulo informa que, durante o almoço, teria sido pedida a empresas presentes contribuição financeira para determinado candidato a deputado federal. Informa ainda o jornal que o diretor da Anvisa teria supostamente não só participado do almoço de coleta de fundos, como tinha interesse na eleição do candidato, pois fora seu Secretário de Saúde na Prefeitura de um município paulista.
O diretor da Anvisa, em nota a respeito de suas relações com o candidato, esclareceu que “sempre manifestei de forma pública meu apoio à sua candidatura … por acreditar nas suas qualidades como gestor público”. Disse, ainda, sentir orgulho de ter tido o apoio do mesmo candidato, quando seu nome foi submetido e aprovado pelo Senado, ao ser nomeado diretor da Anvisa. Ressalva, entretanto, que teve a sustentação de “muitas pessoas e segmentos da sociedade”, afirmando que, apesar de ter apoiado a referida candidatura, jamais intermediou “qualquer contato para obtenção de doações para campanhas eleitorais”. Dias depois do almoço recolhedor de fundos, ainda segundo o jornal, empresas presentes ao evento depositaram R$ 279 mil para “ajudar a quitar dívidas de campanha do deputado”, então já eleito.
Independente das dimensões éticas, legais, morais, políticas e até filosóficas que cercam este e outros fatos similares, uma reflexão se impõe em relação à forma de indicação dos nomes de dirigentes das agências reguladoras pelo Executivo e sua posterior aprovação pelo Senado, que traz impacto direto ao funcionamento destas agências, sejam elas dos setores de saúde, aeroviário, de telecomunicações, etc. É preciso indagar: até que ponto o modelo brasileiro de “agencificação” não está geneticamente comprometido com um sistema cuja lógica natural é a instalação de um inaceitável conflito de interesse entre as direções destes órgãos, pretensamente reguladores, e o setor regulado? Este modelo não estaria comprometido por um processo cada vez mais aparente de captura destas agências pelos setores a quem deveriam efetivamente fiscalizar?
Não é necessário ser um arguto analista político para, ao olhar mais de perto este modelo, identificar o que podemos chamar de “triângulo da modernidade cínica”, que ao fim e ao cabo faz com que os interesses dos cidadãos, que deveriam ser os elementos centrais das anunciadas “agendas regulatórias”, tornem-se meras peças de proselitismo regulador.
Imagine-se um triângulo. No primeiro vértice, temos o Senado Federal, com seus 81 membros, responsável por aprovar todos os nomes de dirigentes das agências reguladoras. No segundo vértice temos os dirigentes das agências, já eleitos e responsáveis por regular, fiscalizar e, eventualmente, punir as empresas reguladas. Essas, são o terceiro vértice. Nomodelo brasileiro, este triângulo representaria a “modernidade”, pois asseguraria que a sociedade (por meio do Senado) estaria elegendo dirigentes com autonomia e mandato assegurados por Lei para agirem – teoricamente livres de pressões – em defesa da sociedade.
O cinismo do triângulo reside em um fato que, de tão próximo aos nossos olhos, é difícil enxergar. Entre o setor regulado (terceiro vértice) e os senadores (primeiro vértice) há o mecanismo corruptor e socialmente perverso do financiamento de campanhas eleitorais. Isso transforma em pó a concepção inicial que deu origem e justificou o modelo das agências, baseado em uma pretensa autonomia gerencial de seus dirigentes em relação aos interesses políticos que, habitualmente, refletem os poderosos interesses econômicos dos setores regulados. Ninguém menos autônomo e livre para tomar decisões que um dirigente cujo mandato é instituído (e que a ele pode vir a ser reconduzido ou não) por um fórum pesadamente financiado pelas empresas cuja atuação ele deveria constranger, caso efetivamente fosse atuar em defesa dos interesses dos cidadãos.
O “triângulo da modernidade cínica” desnuda o fato de que – longe de superar o antigo problema das eventuais interferências políticas, que de fato existiam e existem na admninistração direta – o atual modelo de “agencificação” institucionaliza a interferência política (leia-se a dos setores regulados) na gênese de um sistema que demonstra, quase que diariamente, sua incapacidade de defender os interesses da sociedade. Se a autonomia dos dirigentes, tão alardeada, está corrompida, é significativo que se diga que a estabilidade está garantida.
Longe de incorporar conceitos e principalmente práticas modernas, transparentes e socialmente participativas da administração pública, nosso modelo de “agencificação” exibe o atraso, na medida em que incorpora (graças ao financiamento privado de campanhas) evidente conflito de interesses, que traz como consequência um processo de captura pelos setores que deveria regular.
Álvaro Nascimento é tecnologista da Fiocruz; Doutor em Política, Planejamento e Administração em Saúde pelo IMS/Uerj.