Ato em apoio a serviços de aborto legal repudia obscurantismo do CFM
Coletivos feministas reúnem sanitaristas, médicas, enfermeiras e ativistas contra abuso de poder e obstrução da assistência
Coroa de flores com bichinhos de pelúcia marcou o luto pelas mulheres e meninas mortas por falta de assistência ao abortamento, em ato de repúdio ao Conselho Federal de Medicina (CFM), realizado hoje, 23/5, em Brasília. Suspensa liminarmente pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a Resolução CFM 2378, que restringe a assistolia fetal, paralisou a assistência às vítimas de estupro a partir de 22 semanas gestacionais e aterrorizou equipes dos serviços de abortamento legal.
Representando o Médicos em Movimento e o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), a diretora-executiva do Cebes Ana Costa protocolou a carta da manifestação, que não foi recebida pelo CFM. “É um absurdo o Conselho Federal de Medicina negar a entrada das organizações sociais e trancar o portão inclusive para as profissionais do próprio conselho. Barrar as mulheres ao mesmo tempo em que legisla sobre elas é uma situação absurda”, protestou. A entrada de Ana Costa e Brunely Galvão, ginecologista do serviço de aborto legal do Distrito Federal, foi inicialmente barrada.
“Esse ato que a gente está fazendo hoje é um luto mulheres e meninas mortas, impedidas de fazer aborto. É um movimento feminista como um todo, e também foi puxado por médicas e enfermeiras que foram impedidos de realizar o seu trabalho. Elas estão dentro do centro de aborto legal e não conseguem realizar o que o que estão ali para fazer”, afirmou a sanitarista Lina Vilela, do coletivo Juntas.
“A proibição da assistolia fetal atinge sobretudo meninas e mulheres já são muito negligenciadas e vulnerabilizadas em seus direitos e outras políticas públicas no Brasil. Menos de 4% dos municípios brasileiros têm serviços especializados em interrupção gestacional com a composição multiprofissional preconizada pelo Ministério da Saúde”, explicou a enfermeira Lígia Aguiar, do serviço de aborto legal do Distrito Federal.
As crianças menores de 14 anos são as principais usuárias dos serviços de aborto legal tardio, juntamente com mulheres periféricas, moradoras de áreas rurais, indígenas e negras, que enfrentam barreiras adicionais à assistência. “Nós somos, enquanto central sindical, a favor da descriminalização das mulheres, meninas e pessoas que gestam. As mulheres da burguesia e da classe média alta conseguem realizar o aborto em locais seguros, mas e as outras? A minha questão é principalmente com as mulheres e meninas muito jovens que são estupradas e violentadas por seus parentes, ou por vizinhos e eu penso muito nessas crianças”, afirmou Junéia Batista, da Central Única dos Trabalhadores (CUT).
“Mesmo adultas, algumas mulheres vítimas de abuso, de estupro, levam muito tempo até reconhecer a violência e ter coragem de fazer a denúncia. E, no caso das meninas, elas nem sabem muitas vezes que estão grávidas né? Sentem a dor de cabeça, o mal-estar e, até que tudo isso seja identificado, a gravidez avançou”, relatou Jolúzia Batista, do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea).
O Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) também marcou presença no ato, destacando o papel das profissionais no encaminhamento e acompanhamento integral das vítimas de violência. “O que Conselho de Medicina está fazendo é um absurdo, eles estão sobrepujando a legalidade, eles estão sobrepujando as leis brasileiras”, afirmou a representante, Maria Elisa Braga. “Como encaminhar as mulheres se os serviços estavam fechados?”
Terror e suspensão dos serviços – A ginecologista Brunielly Galvão relatou a interrupção total da assistência ao abortamento após 22 semanas no Brasil. “Durante a vigência da resolução, pacientes tiveram que ser atendidas na Argentina, pois mesmo os centros de referência em interrupções tardias, em Uberlândia, Recife e Salvador ficaram impedidos de prestar assistência”, afirma.
As equipes foram aterrorizadas pela abertura de processos éticos-disciplinares pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), com suspensão do exercício profissional de médicas do Hospital Vila Nova Cachoeirinha, e suspeita de devassa de prontuários. Para o professor Dirceu Greco, membro do Comitê Internacional de Bioética da Unesco-Paris e integrante do comitê científico da Sociedade Brasileira de Bioética, o objetivo era aterrorizar as equipes. “Mesmo que os processos não resultem em punição, porque não são éticos nem legais, cumprem um papel intimidatório”, disse Graco, em entrevista ao Cebes.
ADPF 989– A liminar do STF que suspende a resolução CFM 2378 foi concedida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 989), movida pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), da Rede Unida e do Partido Socialismo e Liberdade (Psol). A ADPF busca garantir condições seguras de assistência ao aborto legal, previsto desde 1940 em casos de estupro e risco de vida, e permitido também em casos de anencefalia.
Reportagem: Clara Fagundes/Cebes