Belluzzo: “temos uma chance”

Site Carta Maior – 09/04/2012

O tema da desindustrialização ou da reindustrialização brasileira ocupa espaço crescente no debate acadêmico, mas ainda não galvanizou a agenda política; é premente que isso aconteça. Mas, sobretudo, que se faça a partir do significado abrangente que a industrialização pode ter no processo de desenvolvimento de uma sociedade. Um primeiro cuidado é não ‘tomar a nuvem por Juno’. Industrialização não é galpão fabril. Não é um fetiche ou o anacronismo desenvolvimentista ‘de uma certa esquerda’, como querem alguns denominados ‘economistas de mercado’.

Assim justamente denominados, diga-se. Mesmo depois do que o mercado mostrou ser capaz quando entregue a sua própria lógica, eles continuam firmes no leme: até baixar juro de bancos estatais e expandir o crédito, no seu douto entendimento, seria ‘interferência política’; afrontaria a livre ação dos mercados. Suicidas europeus tem opinião diversa, mas passemos. “Industrialização é a capacidade soberana que tem uma economia de construir um polo irradiador de inovação e produtividade”, explica a voz ecumênica, ponderada e sempre ouvida do economista Luiz Gonzaga Belluzzo.

Dono de um currículo que lhe permitiria pontificar enunciados e ter audiência atenta, Belluzzo não se acomoda a esse papel. A gripe o golpeia, mas lá está o intelectual engajado a se debruçar sobre o século XIX norte-americano, desde as primeiras horas da manhã de segunda-feira. “O que eles fizeram (os EUA) foi isso; foi o mesmo que fez a Alemanha e, mais recentemente, os chineses. Criaram um arcabouço que propiciou a integração do setor financeiro com a indústria, sob indução estatal. Ampliaram a escala das empresas e, desse modo, robusteceram o espaço econômico de um setor estratégico de bens de capital, a mola sistêmica que dissemina inovação e produtividade em múltiplas frentes’.

O longo amanhecer do desenvolvimento brasileiro, um bordão de Celso Furtado, ainda encerra a esperança de um salto nesse sentido? Belluzzo recupera o fio da meada – o significado político da industrialização. Não é uma agenda técnica. É uma escolha histórica. Não está ao alcance de todos os povos. Almejá-la, ao menos na forma de uma iniciativa política soberana requer justamente uma demanda intersetorial que viabilize o florescimento de um complexo produtor de máquinas e inovação. Uma coisa não existe sem a outra: projeto político soberano e salto industrializante.

‘É um equívoco deslocar o debate para uma disjuntiva que contrapõe a manufatura à agricultura. Quando se fala em processo de desenvolvimento, a tecnologia de um e de outro setor, rural ou urbano –ambientalmente sustentável em ambos os casos– virá do segmento de bens de capital; impulsioná-lo pode decidir o rumo de um país, o nosso, por exemplo, nas próximas décadas’, pondera Belluzzo.

As interações entre a decisão de construir uma economia forte e soberana não são estranhas à decisão de se ter ou não uma democracia capaz de estender os princípios equânimes dos direitos civis aos direitos sociais. Um país sem capacidade soberana de estruturar o seu desenvolvimento pode delegar à sociedade, de fato, o escrutínio do seu futuro? Dificilmente. No fundo é essa liberdade essencial, mãe da liberdade individual que efetiva o potencial humano almejado por Marx, que leva também o intelectual Luiz Gonzaga Belluzzo a se debruçar sobre o século XIX norte-americano para vislumbrar o XXI brasileiro.

Não é uma esperança desprovida de materialidade histórica. “O Brasil tem uma chance; uma fronteira que o autoriza a incluir a industrialização, assim entendida, na agenda do nosso tempo: essa fronteira é o pré-sal’, diz ele. Curto e grosso: desdenhar da agenda da industrialização é desdenhar do maior trunfo representado pelo pré-sal –e vice-versa.

Um primeiro passo foi assegurado no governo Lula. O encadeamento virtuoso requeria um lacre de segurança que garantisse a permanência dessa riqueza no metabolismo da economia brasileira. A regulação soberana da exploração do pré-sal construiu essa blindagem que dá a chave de acesso às reservas à Petrobras. Foi uma decisão que evidenciou o antagonismo agudo com interesses contrário ao papel da empresa no país.

Esse antagonismo foi escancarado mais uma vez nas eleições de 2010 pelo assessor do programa de energia de José Serra, David Zylberstajn. Ex-dirigente da Agencia Nacional de Petróleo no governo FHC, Zylberstajn declarou ao Valor, em 06-10-2010, que aconselharia Serra, caso eleito, a reverter o modelo do pré-sal aprovado pelo Congresso. O próprio Serra confidenciaria a representante das petroleiras internacionais que reverteria o modelo que dava o comando da exploração à Petrobras e a prerrogativa de comercialização do óleo à nova estatal criada para esse fim, a Pré-Sal Petróleo SA.

A radicalização das escolhas tem motivações superlativas. Estão em jogo reservas que concentram cerca de 70 bilhões de barris; podem chegar a 100 bilhões.Uma poupança fabulosa guardada no fundo do mar em pleno ciclo de escassez e valorização do combustível. O que Belluzzo está dizendo é que esse trunfo mudou o tamanho do Brasil na geopolítica mundial. Mudou também o horizonte do seu desenvolvimento, credenciando o país a um novo ciclo de industrialização coroada por um setor de bens de capital disseminador de inovação e riqueza.

Toda uma cadeia de equipamentos, máquinas, logística, tecnologia e serviços diretamente ligados e também externos ao ciclo do petróleo poderá ser alavancada nos próximos anos, transformando o Brasil, também, num grande exportador industrial.

Para que essa oportunidade não se perdesse era vital a definição de um “dosador” soberano capaz de coordenar duas variáveis básicas: o ritmo da extração e refino e a sua sintonia com a capacidade brasileira de atender à demanda por plataformas, máquinas, barcos, sondas e centenas de outros equipamentos requeridos no processo. Se o comando estratégico escapar ao controle nacional, a demanda por bens de capital, os empregos inscritos no processo e o multiplicador de renda que ele representa vazarão para o exterior. O custo não é apenas contábil.

Belluzzo reitera: industrialização é soberania econômica. Por trás do tema ‘técnico’ encontra-se talvez o mais importante salto de desenvolvimento e democracia ao alcance do país em nosso tempo. Certas ofertas da história não se repetem. Partidos, sindicatos e movimento sociais tem a responsabilidade de não desperdiçar o bilhete premiado.