Benício Schmidt analisa atual conjuntura internacional

“Uma integração monetária sempre procurou garantir os direitos sociais, como marca e herança dos avanços da socialdemocracia no continente europeu. Tudo isso parece estar sob pressão regressiva; tanto a integração e segurança com base em moeda única, como a decorrência avassaladora da austeridade fiscal sobre direitos sociais e trabalhistas”.

Matéria de consenso é o fortalecimento do eixo China- Estados Unidos, como protagonistas centrais nas próximas décadas. Após as bolhas e a crise financeira deflagrada a partir do desregulamentado sistema econômico-financeiro norte-americano, devido à centralidade da moeda norte-americana, como moeda de curso mundial, a capacidade de gerar moeda por meio dos Títulos do Tesouro atraindo – paradoxalmente- investimentos de todos portadores de excedentes, e aproveitando a desvalorização do dólar, os Estados Unidos provavelmente sairão deste inferno astral antes do esperado, inclusive pela reativação de seu parque produtivo com exportações de mais baixo custo do que até a pouco tempo atrás. Estes fatores, é bom ressaltar, dão ao país uma maior autonomia na execução da política monetária, fiscal e cambial; assim favorecendo os recursos para a saída da crise conjuntural. Há um complicador político no horizonte imediato, as eleições presidenciais, que poderão causar novos alinhamentos militares e novas ondas de protecionismo.

Mas, também a China passará por redefinições políticas, com as tensões entre as duas correntes no interior do Estado: mais liberalismo, assédio ao capital estrangeiro, uso estratégico das enormes reservas internacionais para o fortalecimento do mercado interno e urbanização massiva do país-continente ou mais dirigismo, regulando as relações financeiras entre os grandes investidores e empresas estatais, com notável desempenho no desenho da China contemporânea.

Ou seja, decisões de natureza política, tanto nos Estados Unidos quanto na China, podem complicar ainda mais o cenário internacional e produzir abalos em todo o mundo. Coincidências políticas presentes em regimes econômicos opostos, mas cada vez mais mutuamente dependentes um do outro.

Neste particular, é sobre a região asiática, na Bacia do Oceano Pacífico que, desde agora, vão sendo feitos novos arranjos. Os Estados Unidos, dono de um poder naval quase-monopólico, sua Marinha desloca cerca de três milhões de toneladas, quase a totalidade mundial, contra 280 mil toneladas da China, vai cercando a região por um cinturão de segurança; enquanto esta procura novas alianças estratégicas na mesma região, para evitar situações sem saída, seja quanto às rotas internacionais de comércio, seja quanto à segurança militar propriamente dita. O deslocamento político e econômico para a Ásia altera a natureza de desafios estratégicos, que passam a ser primariamente marítimos.

A Europa, comandada pelo eixo Alemanha-França, enfrenta drama enorme. Novamente, em uma recorrência histórica, a Alemanha tende a assumir as maiores responsabilidades sobre a persistência do euro, ou seu desaparecimento como moeda comum. O debate sobre a sobrevivência fiscal de países como Grécia, Espanha e Portugal, tende a sombrear o debate sobre a sobrevivência do euro enquanto tal. Em uma perspectiva econômica dificílima, a porção política e integracionista do euro como moeda não pode ser posta em plano secundário. Há razões para defender, novamente, a integração européia como necessidade estratégica. O euro tornou-se a segunda moeda mais importante da economia mundial, mais estável que o dólar americano e mais estável do que o marco foi nos seus últimos dez anos.  Além disso, uma integração monetária sempre procurou garantir os direitos sociais, como marca e herança dos avanços da socialdemocracia no continente europeu. Tudo isso parece estar sob pressão regressiva; tanto a integração e segurança com base em moeda única, como a decorrência avassaladora da austeridade fiscal sobre direitos sociais e trabalhistas, além do desemprego estrutural e deslocamentos populacionais que a crise tem provocado.

A situação atual da União Européia exige energia. A atual crise da capacidade da União Européia não pode continuar. Com a exceção do BCE, todos os órgãos – Parlamento Europeu, Conselho Europeu, Comissão Européia e Conselho de Ministros – todos eles, desde a superação da aguda crise dos bancos de 2008 e especialmente da conseqüente crise da dívida soberana, contribuíram pouco para uma solução eficaz.

Um contexto mais próximo ao Brasil também se apresenta confuso, com difíceis previsões quanto ao comportamento futuro. Trata-se do Mercosul e sua fraquezas. Com dois parceiros longe das condições econômicas e possibilidades de protagonismo político dos demais, Brasil e Argentina estão às turras. Terceiro destino das exportações brasileiras, depois da China e dos Estados Unidos, a Argentina retoma políticas de natureza protecionista que visam destronar a importância brasileira no seu comércio internacional. Uma das medidas tomada em fevereiro deste ano prevê a autorização prévia estatal para importações. Há dois componentes determinantes desta posição: a natureza ideológica do governo Kirchner que visa enfrentar os impasses da instabilidade jurídica e econômica do país por laivos nacionalistas, ainda que sem uma base produtiva que possa alavancar políticas desta natureza, bem como a crescente presença da China, especialmente com a instalação de indústria maquiadoras, visando isenções e outros benefícios fiscais. Aliás, esta tem sido a estratégia chinesa na América Latina, que já afeta definitivamente ao México, por exemplo, que perde gradativamente sua importância de exportador aos Estados Unidos, apesar do NAFTA. Na verdade, querelas sobre exportações brasileiras para a Argentina, cerca de 30% do seu total, além de cruciais para nosso país, passam por conflitos comerciais com a China, como já ocorre em destacados setores da produção de aço que historicamente tem sido forte setor brasileiro.

A China vem aumentando sua influência comercial na América Latina, devido ao cenário econômico incerto nos Estados Unidos e na Europa, devendo impulsionar ainda mais os esforços chineses junto aos mercados da América Latina em 2012. Um dos efeitos já presentes é a redução da presença do Brasil e Argentina no comércio com os vizinhos latino-americanos. Especialistas da Confederação Nacional da Indústria (CNI) apontam que o Brasil deixou de exportar 2,5 bilhões de dólares para países da América Latina entre 2005 e 2009 devido à concorrência chinesa. A Argentina foi o segundo local mais atingido, com 730 milhões de dólares de exportação a menos no mesmo período. Ambos perderam mercado no setor de químicos, informática, telecomunicações e máquinas e equipamentos, principalmente.
A China replica no continente, a estratégia utilizada na Ásia e no Pacífico com base em acordos de livre comércio bilaterais para impulsionar sua relação com outros países. Segundo  The Economist, a América Latina hoje é o segundo destino mais importante de investimentos para negócios chineses, com mais de 30 bilhões de dólares por ano, ou 12,5% de todo o aporte da nação asiática fora de seu território.

De outro lado, a participação brasileira na corrente de comércio da América do Sul está estagnada há mais de uma década em 11%; sendo que os chineses detinham 2,5% de participação e em 2010, esse número  saltou para 12,5%. Note-se que em relação ao Peru a expectativa de comércio com a China para 2012 é de 15 bilhões de dólares; sendo que em 2011 o Brasil exportou apenas 2,2 bilhões de dólares para o Peru. O Brasil precisa, pois, de um grande esforço no relacionamento com países vizinhos, celebrando acordos visando complementação industrial e exportação de manufaturados com alto valor agregado. Especialmente frente a Argentina, cuja praça importadora tem sido ocupada por produtos chineses, segundo parceiro comercial da Argentina, depois do Brasil, notadamente por meio de investimentos em energia, petroquímicos, transportes e agronegócios.

China e América Latina realizaram transações de mais de 183 bilhões de dólares em 2010, um aumento de 28,4% sobre 2009; enquanto as exportações do Brasil para América Latina e Caribe foram de 57,1 bilhões em 2011. Há um terreno enorme a conquistar, que não depende diretamente dos efeitos da crise financeira que abala Estados Unidos e Europa. Uma questão de estratégia e planejamento. Poderia ser acrescido o debate sobre a aparente desindustrialização brasileira e o êxito pela exportação das commodities, com graves efeitos sobre a crescente população urbana com a tecnificação da agricultura, por exemplo. Mas é tema polêmico e extenso.

Mundo em rápida mudança, com altos desequilíbrios econômicos e sociais, fortalecimento do eixo hegemônico Estados Unidos-China, tentativas de salvação do euro como moeda integradora, entrada agressiva da China em mercados cativos do Brasil e da Argentina na América Latina, falta de uma política de industrialização e dependência de commodities com altos níveis de fluxos de capitais externos. São matérias de reflexão para a geopolítica internacional, em período de realinhamento.

 

Benicio Schmidt- sociólogo, professor aposentado da UNB, editor-chefe da Editora Francis e da Verbena Editora.