Brasil desenvolve vacina contra a esquistossomose

Correio Braziliense – 13/06/2012

Após testes promissores em humanos, pesquisadores preveem imunizar a população em até cinco anos. Se fabricada em escala comercial, a fórmula será a primeira do mundo voltada para o combate de uma doença parasitária.

A primeira vacina contra a esquistossomose foi aprovada em sua primeira fase de testes clínicos. O exame inédito com pessoas também reserva uma situação histórica para o Brasil — o país nunca havia iniciado o desenvolvimento de uma tecnologia de vacina antes. O resultado dos experimentos comprova que a substância Sm14 é segura para o uso humano e abre caminhos para novos testes cerca de 15 anos depois da comprovação de sua eficácia em animais. O Instituto Oswaldo Cruz (IOC), responsável pela criação da substância, espera incorporá-la ao calendário de vacinação infantil das áreas endêmicas e imunizar populações ameaçadas pela doença em no máximo cinco anos.

Na época dos testes em bovinos e ovinos, a eficácia da vacina atingiu índices de 75% a 90%, e também foi capaz de proteger os bichos da fasciolose, doença causada por outro tipo verme. Já o teste em humanos começou em maio do ano passado. A vacina foi administrada em três doses, em 20 pessoas do Rio de Janeiro. “Essa foi a primeira fase de segurança, feita em indivíduos sadios. Não houve nenhum efeito colateral além da dor local, que já era esperada para uma vacina intramuscular”, explicou Tania Araújo Jorge, diretora do IOC. Para chegar a essa etapa, foi necessária a aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), análise que levou mais de um ano.

A segunda fase de testes será feita no início de 2013, sob a coordenação da Organização Mundial da Saúde (OMS). Essa etapa de segurança endêmica será de cooperação internacional e vai incluir entre voluntários crianças em idade pré-escolar do Brasil e da África. Cerca de 200 indivíduos vão receber a fórmula e serão acompanhados por três meses para garantir que o imunizante não lhes causou efeitos colaterais.

A etapa final vai atestar a eficácia da vacina em milhares de moradores de áreas endêmicas. Durante cinco anos, a saúde dessas pessoas será comparada aos índices da doença registrados nas regiões em que vivem. “Marcamos um encontro para 2015 para anunciar os resultados dessas fases. Calculamos não menos que quatro anos para iniciar a perspectiva de produção, se tudo der certo. Estamos muito confiantes”, animou-se Tania.

O imunizante está em desenvolvimento há mais de 30 anos. A substância é produzida por meio de um método comum na criação de vacinas: usa-se parte do organismo causador da doença (um antígeno) como ferramenta para estimular a produção de anticorpos contra um vírus ou bactéria. Uma vez injetado no corpo de uma pessoa, o antígeno prepara o organismo para combater o corpo estranho. Essa fórmula, no entanto, é a primeira baseada no antígeno de um parasita. Ela é feita da proteína Sm14, isolada do Schistossoma mansoni na década de 1990.

A molécula foi clonada em laboratório e recombinada por meio de engenharia genética para ser sintetizada em uma levedura de grande escala. A versão recombinante da molécula é mais pura e segura que a proteína encontrada na sua larva de origem, e pode ser eficaz também contra outros helmintos. “Eles não têm a capacidade de sintetizar lipídios, gorduras que são a principal forma de energia do metabolismo. Então, eles precisam pegar isso do hospedeiro. E esse transporte é feito por essas moléculas”, explicou Miriam Tendler, coordenadora do projeto. “É bom lembrar que a vacina é o único método que é biologicamente lícito, ou seja, prepara o organismo para se defender do parasita. Não atua eliminando vetores nem espécies”, resumiu a pesquisadora.

Ineditismo
Caso a fórmula seja aprovada para fabricação, será a primeira contra helmintos, isto é, a única vacina criada até hoje contra uma doença parasitária. De acordo com os criadores da vacina e com especialistas, a consolidação dessa descoberta pode abrir portas para o combate a outras doenças do gênero, como a malária, a leishmaniose e a teníase. “Se alguém descobrir uma vacina eficaz e segura contra um parasita do tamanho do Schistossoma, poderá ser agraciado com um prêmio Nobel, porque é uma evolução muito grande na medicina. Até hoje, só conseguimos no máximo criar vacinas contra vírus ou bactérias”, explica Pedro Tuil, professor do Núcleo de Medicina Tropical da Universidade de Brasília (UnB).

Para o médico, o desenvolvimento da vacina ainda pode demorar muitos anos. Ele ressalta que, até que a fase de testes esteja completa, o ideal é investir no combate à esquistossomose, como as melhorias das condições de saneamento. “O ser humano é o único animal de importância epidêmica no ciclo do parasita. Se houver saneamento básico mínimo para que as fezes humanas não contaminem as coleções de água com caramujos, não haverá transmissão da esquistossomose”, resumiu.
A prevenção, no entanto, ainda não apresentou resultados no combate ao parasita. Como a consolidação de um sistema sanitário universal pode levar décadas, principalmente em áreas de pobreza extrema como o continente africano, a vacina se mostra uma alternativa promissora. “Tem remédio para a esquistossomose, mas, normalmente, a doença passa despercebida. A maioria a descobre somente quando os órgãos já desenvolveram a fibrose, uma espécie de cicatriz em volta do parasita”, explica o infectologista Jaime Rocha, do laboratório Exame.

Mesmo com o diagnóstico seguro e tratamento, algumas pessoas acabam contraindo a doença mais de uma vez. A famosa barriga-d”água, causada pelo parasita, pode ser um sinal da falhas do fígado, que acaba por liberar o excesso de líquido no abdome. “A pessoa pode desenvolver cirrose sem nunca ter ingerido álcool e, em casos mais raros, ter complicações neurológicas”, exemplificou Jaime. Caso seja possível a imunização de toda a população ainda na infância, todas sequelas seriam evitadas e o problema da dificuldade de diagnóstico seria superado.