Câmara aprova PL que retoma lógica manicomial

Pessoas com transtorno mental ou deficiência que cometam crimes poderão ter penalidade superior aos criminosos com plena compreensão de seus atos

A Câmara dos Deputados aprovou ontem, 12/12, o Projeto de Lei 1637/19, que aumenta o tempo de mínimo de internação compulsória de pessoas que, em razão de transtorno mental ou deficiência, são inimputáveis ao cometerem um crime. O PL pode levar a penalidade superior à prevista para o próprio ato criminal. Foram apensados ao projeto outros de similar teor, incluindo o PL 551/2024 .

“A identificação dos deputados que elaboraram e aprovaram o projeto revela o que há de mais reacionário na sociedade brasileira. São setores ligados à militância conservadora, que lucram com os retrocessos, do sentido econômico ao político-cultural. É prenúncio do que está por vir, um ataque contra Reforma Psiquiátrica, contra outras leis que garantam direitos a populações em vulnerabilidade”, avalia o psiquiatra Paulo Amarante, pesquisador da Fiocruz e ex-presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde Cebes (Cebes)

Para o psiquiatra, doutor em Saúde Pública e um das principais lideranças da Reforma Sanitária, o PL “não tem qualquer fundamento”. “O que se defende atualmente na psiquiatria é a revogação dessas ideias sobre a loucura, sobre as pessoas em sofrimento psiquico. A ideia de periculosidade visa dar fim a uma população para qual o Estado não tem política pública de cuidado e proteção “, afirma Amarante.

O PL também aumenta de 1 para 3 anos o intervalo das avaliações do internado. “É uma retomada da lógica manicomial. O encarceramento por tempo indeterminado não cura, agrava o problema”, reforça o professor Itamar Lages, mestre em Saúde Mental e diretor-executivo do Cebes. “A doença e o sofrimento psíquico são socialmente determinados, são produzidos e organizados política e economicamente”, afirma.

“Criar uma legislação que discrimina pessoas segundo um critério mítico e objetivamente inverificável de “periculosidade”, obrigando sua internação em serviços de saúde de características carcerárias e excludentes, é, por conseguinte, inconstitucional”, afirma Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila), em aberta aberta subscrita pelo Cebes e mais de 500 entidades e coletivos.  A Associação Brasileira de Saúde Mental publicou nota técnica contra o PL 551, apensado ao projeto.

“Estamos discutindo mudança no Código Penal de pessoas que não têm discernimento do ato que cometeram. E aqui se está estabelecendo praticamente uma prisão perpétua, porque aqui se está estabelecendo que essas pessoas têm que ficar, no mínimo, de 3 a 20 anos, e apenas de 3 em 3 anos elas terão avaliação multidisciplinar para ver a cessação ou não da periculosidade”, afirmou, na Câmara a deputada Érika Kolkay (PT-DF).

Reforma Psiquiátrica – A reforma psiquiátrica remonta às ideias do italiano Franco Basaglia, que revolucionou, a partir da década de 1960, as abordagens e terapias no tratamento de pessoas com transtornos mentais. Em 1978, denúncias de profissionais da Divisão Nacional de Saúde Mental (Dinsam/MS) sobre graves violações humanitárias em instituições psiquiátricas levou à demissão da maioria dos denunciantes.

Em 1987, foi fundado o movimento antimanicomial, trazendo o protagonismo dos usuários à luta pela Reforma Psiquiátrica, então encampada por profissionais da Saúde. A intensão pressão social levou à aprovação, em 2001, da Lei da Reforma Psiquiatra, que organiza a assistência em Saúde Mental no Brasil.

Reportagem: Cebes/Clara Fagundes

(Hospital de Custódia de Belém-PA — Foto: Luiz Silveira/Agência CNJ)