Carlos Gadelha: ‘A saúde é uma oportunidade de sairmos da crise’

entrevista de Mônica Tarantino publicada originalmente no portal Medscape com o pesquisador Carlos Gadelha

O impacto da pandemia de covid-19 na economia brasileira é um dos temas da atualidade. Na visão do pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Carlos Gadelha, PhD., o investimento em saúde pode ser um caminho dos mais frutíferos para recuperar a economia. Dr. Carlos é doutor em economia e um dos formuladores das ideias que levaram à criação do conceito de Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS), que considera o setor de saúde um espaço crítico de desenvolvimento produtivo e tecnológico para garantir o acesso universal.

Em sua longa trajetória na Fiocruz, ele ocupou o cargo de vice-presidente de Produção e Inovação em Saúde e coordenou o Mestrado Profissional em Política e Gestão de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública. Em 2011, foi secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde. Atualmente, é coordenador das Ações de Prospecção e coordena o Centro de Estudos Estratégicos da instituição, além de cursos de mestrado e pós-graduação. Nesta entrevista ao Medscape, ele explica por que o regime de patentes está ultrapassado, afirma que há necessidade de políticas que conciliem iniciativa pública e privada e diz que a comunicação e a conectividade são essenciais para a sustentabilidade da saúde no século XXI.

Depois de um ano e meio de pandemia, o Brasil continua enfrentando dificuldades para receber os insumos farmacêuticos ativos (IFAs) para produzir as vacinas anticovídicas, faltam doses e medicamentos para o kit entubação. Quais as lições da pandemia?

Carlos Gadelha: O mundo está seguindo um caminho insustentável para garantir o acesso universal. Faltou produto anestésico básico e sedativo porque o IFA não estava disponível no mercado global e os países ricos estavam fechando as suas fronteiras para a exportação. Os dados são arrebatadores: 95% dos insumos farmacêuticos ativos que o Brasil produz são importados. Nós passamos por isso com mais produtos.

Com a covid-19, os países desenvolvidos fecharam as portas para a exportação – não apenas para o Brasil. Hoje, 40% da produção global de vacinas anticovídicas está sendo comprada por países desenvolvidos, que têm apenas 14% da população mundial. A lição que fica é muito ruim em relação à globalização, de que não é algo bom e que beneficia apenas os países mais fortes.

O Brasil tem um déficit comercial que, somando softwares e outros produtos que não são típicos, mas são usados na saúde, chega a 20 bilhões de dólares, a maioria com os Estados Unidos, China, Índia e alguns poucos países europeus. Isso equivale a um orçamento inteiro do Ministério da Saúde brasileiro. Porém, é um erro acusar agora a China e a Índia, países que apenas consideraram que ter produção industrial era estratégico. O erro foi nosso, que desconsideramos a importância da indústria. Ainda mais uma indústria que tem especificidade para garantir políticas sociais e não só a lucratividade. Isso precisa mudar. Está na hora de chamar uma conversa por uma outra globalização, que é o tema de um livro do geógrafo, cientista e professor, Milton Santos. Autores como ele e Celso Furtado já falavam de ter capacidade tecnológica e produtiva concentradas nas mãos de todos.

Por incrível que pareça, a globalização depende de capacidades nacionais mais bem distribuídas no mundo. Estamos chegando a uma situação global em que precisamos ter uma articulação de agências multilaterais, Estado e setor privado para desconcentrar a produção. Se não houver uma articulação, no Brasil e no mundo, de ciência, tecnologia e inovação com direitos sociais e ambientais, não haverá direito social e nem sustentabilidade.

A discussão sobre as patentes entrou em pauta por causa das vacinas de covid-19. O que precisa mudar?

Carlos Gadelha: Uma ação global de revisão do pacto de propriedade intelectual é absolutamente necessária. O regime de patentes está todo errado. Ele foi concebido na Convenção de Paris, no século XIX. A patente supunha um pacto entre o estímulo à inovação e o conhecimento, que caía em domínio público para beneficiar a sociedade. Só que os tempos mudaram. O equilíbrio entre o estímulo à inovação e o interesse público foi rompido, porque o ritmo de inovação se acelerou tremendamente. Hoje, uma patente de 20 anos representa um monopólio eterno. E esse produto, daqui a 20 anos, não será mais útil. Eu acuso: o pacto da Convenção de Paris foi rompido. Você só tem o incentivo à inovação e não tem mais o benefício social.

Não se pode mais aceitar que 10 países e cerca de 15 empresas concentrem 88% das patentes em saúde. Isso é insustentável, não vai promover equidade. Não se pode falar em sustentabilidade e, ao mesmo tempo, manter uma legislação de propriedade intelectual que impede o acesso à tecnologia e aprofunda as assimetrias. Hoje, um tratamento imunoterápico já custa mais de 1 milhão de dólares. Onde isso vai dar? Rever esse pacto da concentração global da propriedade intelectual é uma visão estratégica para a sobrevivência das empresas da saúde, sob pena de serem crescente e corretamente questionadas pela população, pelos governos, pelos cientistas e inclusive pelos médicos.

O senhor teve um papel central no desenvolvimento da ideia do Complexo Econômico e Industrial da Saúde (CEIS). Pode explicar o conceito do CEIS?

Carlos Gadelha: A origem do conceito do Complexo Econômico e Industrial da Saúde é a própria história da Fiocruz, que se confunde com o nascimento da saúde pública no Brasil. Oswaldo Cruz, fundador e primeiro presidente da Fiocruz, assumiu no início do século um papel que equivale ao de um ministro da Saúde, lidando com as epidemias que assolavam o país, como febre amarela, varíola, peste bubônica. Esse compromisso foi reafirmado por Sérgio Arouca, que presidiu a Fiocruz e buscava derrubar as barreiras entre a saúde pública, as ciências biomédicas, as políticas tecnológicas e de inovação. Ele foi o criador de um núcleo de estudos dedicado ao campo da ciência, tecnologia e inovação dentro da presidência da Fiocruz e da área de planejamento. Aí começou a ser desenvolvido o conceito do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS), no âmbito de uma linha de pesquisa que eu coordenei.

Em 2002, o ex-ministro da Saúde, José Gomes Temporão, e eu criamos uma disciplina na Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz a respeito do tema. Desse encontro emerge o conceito do CEIS, em que tive a coordenação dos primeiros trabalhos científicos, ou seja, a Fiocruz concebe a saúde como um direito a cidadania, o Sistema Único de Saúde (SUS) e, pioneiramente, a saúde como um espaço crítico de desenvolvimento produtivo-tecnológico para garantir o acesso universal. O primeiro trabalho científico com o nome CEIS foi publicado em 2003 na revista da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).

Do ponto de vista global, o que chamamos de Complexo Econômico-Industrial da Saúde talvez seja o sistema produtivo e tecnológico mais dinâmico do mundo, junto com a área de defesa. Hoje, já representa 9% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil. Em escala global, a saúde representa 10% da riqueza do mundo e vai crescer mais. Esta é uma visão muito importante: a saúde no Brasil, em números atualizados, mobiliza 8,0 milhões de empregos – e não apenas 6,5 milhões, como apontam os dados oficiais –, com capacidade de emprego direto e indireto de 20,0 milhões, porque é um multiplicador de empregos, o que é mais do que todo o desemprego brasileiro.

A saúde gera renda, ciência, tecnologia e pode ser a solução para sairmos da crise. Pode ser uma ótima porta de entrada para países menos desenvolvidos, que têm sistemas de saúde e mercado público, como o Brasil, para reduzir a desigualdade global. É preciso mudar os óculos para enxergar essas possibilidades. Em vez de despesa, saúde e tecnologia são investimento no futuro. Em vez de achar que existe um âmbito social descolado do econômico, é preciso entender que esses dois ângulos são compatíveis. Aliás, três dimensões são compatíveis: econômica, social e ambiental. Enfim, na perspectiva do CEIS, tudo o que nos dizem que é um problema, vemos como oportunidade. Costumo dizer que um sistema universal para 200 milhões de pessoas sem base produtiva, tecnológica e de inovação que envolva a indústria farmacêutica, de equipamentos e serviços, é um sistema universal com pés de barro – não tem capacidade de garantir acesso à população.

Essa visão se opõe àquela que considera que o gasto social elevado puxa o PIB para baixo.

É uma falácia dizer que o gasto social não cabe no PIB, é justamente o contrário: o gasto social puxa a inovação, faz o PIB crescer e nos torna uma sociedade melhor, mais solidária e mais digna, onde os ricos não têm que se esconder em condomínios fechados com medo da vulnerabilidade social criada pela sociedade em que vivemos. Posso afirmar que a saúde pode liderar uma visão de sustentabilidade econômica e social, inclusive para as empresas. É preciso parar com essa bobagem de opor Estado a Mercado, e investir na construção de um ambiente institucional que favoreça a inovação, o que sempre envolve a articulação do público e do privado. Não tem empreendedor privado se não houver ambiente público, regulatório e de inovação que permita, por exemplo, uma encomenda tecnológica, como fez a Fiocruz. A vacina que trouxemos para a Fiocruz (desenvolvida pela University of Oxford e pela farmacêutica AstraZeneca) é uma prova de que a articulação pública e privada está na raiz da inovação. É uma prova em dose, em vacina e em vida. Esse movimento é possível não apenas para a saúde, mas para a mudança climática, para o acesso a educação, para uma vida saudável e com as cidades que tenham qualidade de vida. No âmbito internacional, eu destaco a ação da Organização Mundial da Saúde (OMS), um dos organismos multilaterais que atua para que não se crie uma corrida anticivilizatória, que exclua países e pessoas do bem-estar social e da vida.

O quão receptíveis são as empresas e os profissionais da saúde a essas ideias?

Carlos Gadelha: Vou falar com toda franqueza, a pandemia mostrou que a esfera coletiva, social e o papel dos Estados nacionais é incontornável. Não há exemplo de país desenvolvido no mundo em que o Estado não seja forte e onde as empresas não sejam também fortes. Não um Estado velho e burocrático, mas um Estado comprometido com a mobilização da sociedade, se mostrou absolutamente fundamental, até mesmo para aderir à vacina, um bem público, que todos devem tomar.

O conceito do CEIS é um chamamento para a cooperação público-privada. Todas as vacinas que a Fiocruz produz são feitas em cooperação com o setor privado, mas para atender ao mercado público, com preços acessíveis. Quando fui secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, em 2011, nós internalizamos a vacina contra o papilomavírus humano (HPV, sigla do inglês, Human Papilomavirus), do Instituto Butantan. A vacina era adquirida por mil reais, o que equivalia a cerca de 300 dólares, ou seja, apenas para pré-adolescentes muito ricos. Não eram compradas mais do que sete mil doses. Então, fizemos um acordo entre o Instituto Butantan e a farmacêutica Merck, que passou a atender sete milhões de meninas, ampliando depois para meninos. O preço caiu tremendamente. Assim, não é verdade que compra pública aumenta preço. O preço caiu de 300 para 30 dólares por dose. A mágica: o mercado da vacina, que era de sete mil pessoas aumentou para sete milhões de pessoas. Oferecemos escala e acesso universal e obtivemos menor preço. Isso mostra que você utiliza o braço social. As empresas topam.

Nós temos muitas experiências importantes no Brasil de parcerias público-privadas que são reconhecidas no âmbito da OMS e da Bill & Melinda Gates Foundation. O Programa Nacional de Vacinação (PNI) se assenta numa articulação do acesso com a produção nacional em parceria. O programa brasileiro de Aids foi exemplo no acesso universal ao esquema de medicamentos assentado numa parceria público-privada para a produção desses remédios. O programa de transplante do Brasil garante acesso universal, é o mais bem-sucedido do mundo, importante que se diga isso. Qualquer transplantado aqui usa medicamentos do SUS, como o imunossupressor feito pela Fiocruz em parceria com uma empresa de São Paulo, o que garante acesso ao maior programa de transplantes do mundo. Se eu não desse exemplo nenhum, você poderia dizer “são ideias impossíveis, utópicas, além de nossas possibilidades”. Há muitos outros exemplos. Dá certo quando há o casamento do interesse público com o investimento. Você cria situações em que se viabiliza uma lucratividade justa e, ao mesmo tempo, o acesso universal. E esse é um exemplo que nós já demos ao mundo. Eu tive o privilégio de estar na mesa principal de alguns eventos da iniciativa Grand Challenges, com o Bill Gates, mostrando como novos modelos de negócio são possíveis. E a Bill & Melinda Gates Foundation viu a experiência brasileira com muita curiosidade.

Quais são as diferenças entre a encomenda tecnológica fechada pela Fiocruz para transferência de tecnologia da vacina Oxford/AstraZeneca e os contratos feitos anteriormente para produção de outros imunizantes e medicamentos?

Carlos Gadelha: Pela legislação, a compra de qualquer desenvolvimento tecnológico é considerada uma encomenda. Nas minhas apresentações, eu colocava duas famílias de encomendas tecnológicas: a de produtos já existentes e a de novos produtos. A Fiocruz já estava acostumada a fazer parcerias para o desenvolvimento produtivo (PDP), que rigorosamente eram uma encomenda tecnológica de produtos tecnológicos já existentes. A instituição foi precursora nesse modelo e nas parcerias com o setor privado, o que permitiu inclusive a sua entrada em biofármacos. Mas a vacina da AstraZeneca/Oxford foi o primeiro caso de encomenda tecnológica para a saúde em grande escala de um produto ainda em desenvolvimento. Isso foi inédito. Por toda a sua trajetória e pelas negociações com grandes indústrias farmacêuticas, além de ter capacidade tecnológica, a Fiocruz tinha um aprendizado imenso em fazer prospecção e em usar o mercado público brasileiro como poder de negociação para ter acesso à tecnologia. Tinha também a capacidade de saber fazer contratos. Isso normalmente não é considerado, mas os contratos de vacinas são de grande complexidade, com mais de duas mil páginas. O normal é que demorem mais de um ano para serem celebrados. Nós conseguimos fazer esses contratos de encomenda, transferência tecnológica e suprimentos para a vacina em tempo recorde, o que só foi possível porque tínhamos um acúmulo nesse campo. A Fiocruz nunca fez um contrato em que o conhecimento não viesse junto. O conhecimento acumulado, a credibilidade conquistada em 120 anos de história e o respeito junto à sociedade e à própria classe política permitiram que a instituição conseguisse viabilizar esse projeto sem interrupções, mesmo com as trocas de ministros e todas as intempéries e conflitos na política pública.

É importante dizer que toda encomenda tecnológica é um risco, porque encomendar o futuro é inovador. Apostamos em um futuro para a saúde da população. Tinha de ter segurança, eficácia, qualidade e preço acessível. Um país que tem escrito na Constituição que seu sistema de saúde é universal, equânime e integral não poderia fazer uma encomenda tecnológica de uma vacina que só fosse acessível para ricos. Não é à toa que a vacina da AstraZeneca/Oxford, comprada pela Fiocruz, é uma das mais baratas do mundo. A dose vai sair por cerca de três dólares. Tem outras vacinas custando mais de 20 dólares.

Quais são as vacinas produzidas atualmente pela Fiocruz?

Carlos Gadelha: São muitas: DTP e Haemophilus Influenzae tipo B (Hib), febre amarela, meningite A e C, pneumocócica 10-valente, poliomielite oral (VOP), poliomielite inativada (VIP), rotavírus humano, tríplice viral e tetravalente viral.

Em março deste ano, a Fiocruz lançou uma rede, coordenada pelo senhor, que articula 35 pesquisadores para discutir os desafios da saúde 4.0 e do SUS. O que vocês estão debatendo?

Carlos Gadelha: A pesquisa Complexo Econômico-Industrial da Saúde 4.0 aborda a necessidade de uma mudança estrutural na relação entre desenvolvimento e saúde. Ela se insere em um projeto maior, lançado no início de 2019, que aborda os desafios do SUS frente às grandes transformações sociais, econômicas e tecnológicas do século XXI. Desde então, dizemos que o SUS não terá sustentabilidade se não lidar com o contexto nacional e global de transformações científicas e tecnológicas. Afirmamos que a saúde é uma porta de entrada na revolução tecnológica. Hoje, a comunicação e a conectividade estão por trás das vacinas e dos medicamentos, dos equipamentos de proteção individual, da atenção básica, da vigilância assentada em inteligência artificial e das grandes bases de dados. A aplicação de recursos como big data e inteligência artificial pode permitir, por exemplo, que decisões importantes sejam tomadas e que a ação pública do SUS ocorra antes de uma pandemia.

Em uma publicação recente, feita na revista Cadernos do Desenvolvimento, do Centro Internacional Celso Furtado, propusemos uma ampliação da ideia original do CEIS, que envolvia três subsistemas (base química e biológica, base mecânica e eletrônica, e base de serviços). Agora existe um quarto subsistema essencial, que é o de informação e conectividade. É preciso ter conhecimento, tecnologia e inovação para baratear as ações de saúde. Nesse artigo, ressaltamos que se não houver uma ação forte para ciência, tecnologia e inovação no âmbito do complexo da saúde, ficaremos distantes da possibilidade de garantir o acesso universal à saúde para a nossa população e a sustentabilidade ambiental.