Carta de proposições da Frente pela Vida para a reconstrução do Rio Grande do Sul após a catástrofe climática de maio de 2024

A Frente pela Vida se formou na luta para enfrentar as decorrências da pandemia de Covid-19, a necropolítica e o negacionismo do então governo federal, ao lado do SUS, para proteção e cuidado à população brasileira. Neste momento crítico vivido no Rio Grande do Sul, queremos contribuir com a formulação de políticas de saúde e de mitigação da catástrofe climática para delinear um modelo para a reconstrução do Estado. Apresentamos aqui análises e propostas ao Fórum de Participação Social do RS, vinculado à Secretaria Geral da Presidência da República, destacando a centralidade da saúde, o papel fundamental do SUS e sua associação direta à participação e ao controle social para uma plena democracia.

O desastre ambiental de maio de 2024 aprofundou uma crise sanitária que já vinha se agravando desde antes da pandemia, devido ao desfinanciamento da saúde pública, ao não atendimento das necessidades de reestruturação do Sistema Único de Saúde/SUS, onde foi naturalizada a oferta insuficiente na atenção à saúde através de uma desassistência programada. Esse desastre natural trouxe à tona a vulnerabilidade dos modelos de saúde adotados pelo governo do estado e municípios afetados, como Porto Alegre. A terceirização das redes de saúde, em especial a atenção primária, que não dialoga com o território e com a comunidade local, assim como a falta de implementação de ações efetivas que garantam também a média complexidade, evidenciaram uma Rede de atenção frágil e pouco potente. 

Cidades inteiras foram destruídas, muitas pessoas perderam suas moradias e a insegurança alimentar aflige um grande número de vítimas da tragédia mostrando a necessidade urgente de ações intersetoriais a serem produzidas em diálogo com movimentos sociais, entidades científicas e comunidades locais, superando a lógica de fragmentação das políticas e dos recursos públicos. É imperativo garantir, com celeridade, o acesso de direitos básicos à população. A emergência climática deu visibilidade às pessoas em situação de vulnerabilidade, anteriormente invisíveis aos olhos da sociedade e até mesmo do Estado. Populações vulnerabilizadas, como as pessoas com deficiência, população em situação de rua, ciganos, indígenas, população negra, quilombolas, migrantes e LGBTQIAPN+, são revitimizadas, destacando falhas sistêmicas que precisam ser corrigidas. Sendo urgente o fortalecimento das políticas publicas intersetoriais que promovam o direito à saúde como um direito humano básico. Além disso, a contaminação ambiental, causada pelo descarte inadequado de resíduos e pela localização de áreas industriais próximas a zonas residenciais, agrava problemas respiratórios e outras doenças já conhecidas em consequência das enchentes.

Diante da emergência sanitária, é urgente reafirmar os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) e transformá-los em propostas concretas para a reconstrução do Estado do Rio Grande do Sul – superando as insuficiências e vazios assistenciais. A saúde é um direito de todos e uma responsabilidade do Estado, entendido nas suas três esferas: federal, estadual e municipal. A Frente pela Vida, no intuito de contribuir para a formulação e efetivação das ações de reconstrução do Rio Grande do Sul, no âmbito da saúde, propõe:

  • Criação de um Centro Estadual de Operações de Emergência em Saúde, com o objetivo de promover respostas coordenadas baseadas em análises de dados e informações. Este Centro deve ser constituído por profissionais de diversas secretarias e órgãos públicos estaduais e federais como: GHC, HCPA, universidades, institutos federais, vigilância em saúde, Escola de Saúde Pública, Conselho Estadual de Saúde. Além disso, sugerimos a criação de uma Força Estadual do SUS, nos moldes da Força Nacional do SUS, para atuação rápida em situações de emergência e formação contínua de trabalhadores e gestores da saúde. Com planos de contingência e planos de prevenção elaborados.
  • Elaboração de diagnóstico e planejamento realistas para construir uma rede de cuidados em saúde que atenda às necessidades da população. Este planejamento deve ser feito com a participação ativa da sociedade civil, assegurando que os recursos sejam aplicados de maneira eficiente e transparente. As unidades básicas de saúde e a vigilância em saúde precisam ser fortalecidas. A prevenção de doenças, a organização das cidades, e a gestão de resíduos são fundamentais para evitar contaminações ambientais e respiratórias. A Atenção Básica não pode ser desqualificada, rompendo os vínculos com as comunidades e transferindo suas atribuições para as unidades de pronto atendimento/UPAs, onde as pessoas ficam dias internadas devido ao gargalo da média complexidade.
  • Queremos um modelo de saúde que fortaleça o SUS, com especial ênfase na integração da Atenção Primária com a Atenção Especializada, através do uso das tecnologias para aumentar a qualidade e diminuir o tempo de espera no atendimento, diagnóstico e tratamento das pessoas, que resulta em mortes ou complicações evitáveis e da interoperabilidade dos sistemas de informação dos pacientes. É essencial ampliar significativamente a aplicação dos recursos públicos no setor público, evitando investimentos no setor privado da saúde e a terceirização na oferta de serviços. A Atenção Primária deve ser qualificada com ampliação das equipes da Estratégia de Saúde da Família e a reversão gradativada terceirização dos serviços das unidades básicas de saúde. Lembrando sempre dos princípios do SUS, devemos garantir o acesso aos usuários; estimular que o E-SUS e o SPNI sejam devidamente atualizados; que os sistemas do Governo Federal conversem com os sistemas estaduais e municipais e estudar a volta do PMAQ.
  • Pensamos que se abre a oportunidade de fortalecer o controle social, vinculando o recebimento de verbas para a reconstrução à existência efetiva dos Conselhos Municipais, Distritais e Conselhos Locais de Saúde nos municípios, em cumprimento à Constituição Federal, resoluções e recomendações dos Conselhos Nacional e Estadual de Saúde. Entendemos que fragilizar o controle social é um projeto político antidemocrático, que alimenta o ascenso mundial da extrema direita, com suas consequências de superexploração da força de trabalho, crise climática no planeta e desumanidades. O Controle Social deve ter sua composição como um “retrato” da sociedade civil, sendo espaço de construção de políticas públicas de saúde, fiscalização e deliberações que assegurem seu papel previsto na legislação.
  • É necessário disponibilizar acesso público e unificado aos recursos financeiros disponibilizados pelo Governo Federal e pelo Governo Estadual, de forma que seja possível fazer o acompanhamento da distribuição e da execução destes recursos pelos municípios e a fiscalização pelo Conselho Estadual e pelos conselhos municipais.
  • Reforçar a rede de fiscalização do Ministério Público e do Judiciário, tornando-os mais eficientes e proativos na garantia dos direitos fundamentais durante a reestruturação do estado do Rio Grande do Sul. Isso pode ser feito através de protocolos de colaboração, compartilhamento de informações, consultas públicas, audiências e mecanismos de feedback.
  • Promover ações integradas com a assistência social e o meio ambiente. Ampliação da Rede de Cras, Creas e Centros Pop, considerando as demandas dos territórios e a revisão do financiamento do SUAS, considerando que o SUAS sofreu um desfinanciamento importante.
  • A catástrofe climática que atingiu mais da metade do Rio Grande do Sul exige a antecipação de programas e recurso já previstos pelo Ministério da Saúde para os próximos anos e para o enfrentamento dos impactos das emergências sanitárias sobre a saúde das pessoas:
  1. A rede de saúde mental deve ser ampliada, com mais Centros de Atenção Psicossocial/CAPS, dos Centros de Convivência e Cultura e dos leitos de retaguarda de psiquiatria em hospitais gerais para além das emergências, assegurando uma abordagem humanizada, contínua, de cuidado em liberdade.
  2. Fortalecer o Complexo Econômico-Industrial da Saúde, como estruturante do desenvolvimento econômico do País e para enfrentamento das emergências sanitárias em curso.
  3. Elaborar um Plano de Acolhimento e Cuidados à Pessoa com Deficiência no enfrentamento de emergências climáticas, garantindo diferentes níveis de respostas conforme a complexidade das necessidades da população a ser atendida.
  4. Ampliar a cobertura do Brasil Sorridente e das Unidades Odontológicas Móveis.
  5. Na Vigilância, implantar o Sistema Nacional de Laboratórios de Saúde Pública e as Unidades de Resposta Rápida Laboratorial para investigação de surtos, contenção de patógenos e para o adequado tratamento das Doenças Tropicais Negligenciadas/DTNs, recomendação da Organização Mundial da Saúde/OMS ao país.
  6. Reforçar a Vigilância Alimentar e Nutricional.
  7. Acelerar os processos de imunização para ampliar a cobertura das vacinas.
  8. Estimular que todos os municípios tenham efetivamente Vigilância de Saúde do Trabalhador.
  9. Avaliar para além do SINAN a inserção do SIM (Sistema de Informação de mortalidade) aliada à vigilância do óbito, pois também contribuem para o controle epidemiológico e a construção de políticas públicas que diminuam determinadas doenças e agravos. Que as diversas notificações no SINAM sejam fidedignas, superando as subnotificações que prejudicam o controle epidemiológico.
  10. Plano de Expansão da Radioterapia para acelerar o tratamento contra o câncer.
  11. Rever o cálculo para recuperar a cobertura do SAMU. Calcular quanto e quais serviços são necessários, o número de ambulâncias, de profissionais, serviços 24 horas, como se distribuem os hospitais no território, reconstruindo e aperfeiçoando o sistema de proteção social capaz de ofertar e integrar serviços e benefícios em resposta às necessidades da população e das desigualdades.
  12. Prioridade para as regiões mais vulneráveis e populações vulnerabilizadas – ribeirinhas, quilombolas, rurais, de difícil acesso. Atendimento especial direcionado aos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs).
  13. Fortalecer os serviços de referência territorial, para além da APS, com oferta de “cuidados intermediários” através da rede hospitalar de pequeno porte.
  14. Revisar a previsão de construção de 262 novas UBSs para 215 municípios atualizando com as novas necessidades. Sempre que uma nova Unidade de Saúde for construída, submeter a aprovação do Relatório de Impacto Ambiental a uma discussão no Conselho Municipal de Saúde, ou no Conselho Estadual de Saúde, dependendo do âmbito da construção.

É importante ressaltar que a ação dos voluntários foi necessária e fundamental no primeiro momento devido à amplitude da emergência, mas não substituiu e não substituirá o Estado como responsável pela oferta do cuidado e efetivação das políticas de saúde, através de profissionais contratados e que sigam as diretrizes do SUS. 

Um aspecto que precisa ser revisto é que o Brasil é o país cujo gasto público definido pelo Congresso é o maior do mundo. Isso é insustentável, pois além de diminuir os recursos, fragiliza o planejamento das políticas públicas e a oferta de programas e serviços de qualidade à população. No Brasil, 20% do orçamento é definido pelos parlamentares, enquanto que em outros países esses recursos são muito menores: 12,1% na Estônia, 2,4% nos EUA e 0,5% em Portugal. (O Globo, 2024)

Outra revisão indispensável é a do Código Ambiental do Estado, cujas alterações promovidas pelo governador Eduardo Leite e aprovadas pela ALERGS estão na contramão das necessidades de interromper a velocidade das mudanças climáticas.

A tragédia das enchentes deve ser um ponto de partida para resignificar o SUS no Rio Grande do Sul, a partir de uma resposta efetiva às necessidades sociais em saúde para a população, desnaturalizando a escassez, fazendo dele uma referência nacional. Precisamos de um sistema de saúde que atenda a todos de maneira justa e eficiente, com controle social forte e participação ativa da sociedade civil organizada. Podemos construir um futuro com outro modelo de sociedade, reafirmando o caráter ético de defesa da vida e a função social da política de saúde, realizando uma mobilização pelos direitos humanos para desbanalizar o sofrimento da população, fazendo do SUS um sistema do tamanho do povo brasileiro e garantindo o princípio da universalidade de acesso, do respeito à diversidade e do direito à integralidade dos serviços e produtos de saúde a todas as pessoas.

Coletivo do Rio Grande do Sul – Porto Alegre, junho de 2024

Veja o documento no formato PDF: