Edição especial: Cebes 40 anos – Democracia, crise política e saúde

Este número especial da revista Saúde em Debate comemora os 40 anos do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e da sua primeira edição. Foi em 1976 que um grupo de jovens profissionais da saúde, que fazia o I Curso de Especialização em Saúde Pública de nível local – da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), criou o Cebes e a revista. Eram militantes ou simpatizantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) ou da Ação Popular, mas em vez de distribuir panfletos, resolveram divulgar o pensamento crítico marxista na área da saúde por meio de um periódico. A situação política era propícia: o País estava no começo de um processo de transição política, ainda que se cogitasse muito longo, inspirava expectativas de novas políticas públicas, especialmente na área da saúde, pois haviam-se iniciado programas comunitários de saúde e programas de extensão de cobertura.

 

A criação do Cebes foi amplamente discutida na XXVIII Reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SPBC), em julho de 1976, em Brasília. Nesse período, as reuniões anuais da SPBC tornaram-se uma caixa de ressonância para a oposição crescente ao governo burocrático-autoritário dos militares no meio acadêmico. O anúncio do Cebes e da revista ‘Saúde em Debate’ contou com presença significativa de estudantes e de jovens docentes e pesquisadores, particularmente da área de medicina social e preventiva, mas também de outras áreas como a de ciências humanas. A partir de novembro de 1976, multiplicaram-se reuniões de lançamento da revista ‘Saúde em Debate’ em várias regiões e cidades do País, como: São Paulo, Brasília, Sorocaba, Campinas, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Vitória, Salvador, Londrina e muitas outras. Esses encontros estimularam a criação de núcleos da entidade, que além de organizar debates acerca de questões da saúde, divulgaram a revista e fizeram campanhas para conseguir sócios, cujas contribuições foram indispensáveis para assegurar a circulação da ‘Saúde em Debate’.

 

Comemoramos 40 anos do Cebes e da ‘Saúde em Debate’! Na tradição judaico-cristã e islâmica, inspirada pela Bíblia, o número 40 tem um valor simbólico especial: refere-se a um tempo de preparação e provação anterior a algo novo – o dilúvio durou 40 dias e 40 noites; o povo judeu passou 40 anos do deserto antes de chegar à terra prometida; Jesus jejuou 40 dias antes de iniciar sua missão… No caso do Cebes e da ‘Saúde em Debate’, porém, aparentemente ocorreu uma inversão: o novo, a Reforma Sanitária, iniciada pelo Cebes e expressa no reconhecimento da saúde como direito social e na criação do Sistema Único de Saúde (SUS), está culminando agora em um tempo de provação com a Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016, promulgada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, instituindo o Novo Regime Fiscal, com vigência de 20 anos e que acarretará graves consequências na garantia do direito à saúde, pelo qual o Cebes se empenha há 40 anos. Entretanto, talvez as aparências enganem, e o retrocesso desnude que o novo ainda não chegou.

 

Desde a sua criação, o Cebes denuncia as iniquidades e perversidades do sistema de saúde e apela à necessidade de reformas. Isso conformou uma ‘coalização em defesa da Reforma Sanitária’ que foi se ampliando na década de 1980 com a participação de sanitaristas que estavam atuando em programas de saúde comunitária e de extensão de cobertura de serviços públicos de saúde e, principalmente, com a participação da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), contando ainda com o apoio de movimentos e entidades de profissionais de saúde. Nesse contexto de ‘transição política’, essa ‘coalização’, ou seja, o Movimento Sanitário, moveu-se e inspirou-se pelo sonho e pela utopia do direito social à saúde e de um novo sistema de saúde, único, ‘controlado permanentemente pela população’. Esse sonho e essa utopia foram asseverados no documento ‘Democratização e saúde’ apresentado pelo Cebes, em 1979, no I Simpósio sobre a Política Nacional de Saúde da Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados. O documento foi amplamente divulgado na ‘Saúde em Debate’ sob o título ‘A questão democrática na área da saúde’. Há de se realçar que a referência à democracia ia muito além do discurso dominante da ‘transição política’, pois expressava uma concepção muito cara ao Movimento Sanitário: somente com o avanço da democracia e da cidadania, o direito social à saúde e um sistema de saúde público e universal poderiam consolidar-se.

 

Políticas públicas tendem a apresentar relativa constância em que mudanças se dão sob forma de incrementos, mas podem ser interrompidas por mudanças relativamente bruscas.

 

Os programas de extensão de cobertura na década de 1970 e as Ações Integradas de Saúde (AIS) na década de 1980 apontaram para a crescente instituição de uma rede pública de atenção primária e para a integração entre o Ministério de Saúde, as secretarias estaduais e municipais de saúde e o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps). O documento ‘Questão democrática na área da saúde’ e o movimento pela Reforma Sanitária contribuíram, porém, para mudanças mais bruscas: as propostas aprovadas na VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986, e a consagração do direito social à saúde e a criação do SUS pela Constituição Federal de 1988.

 

Essa conquista foi obtida pela grande mobilização dos militantes do Movimento Sanitário, favorecida pela forte presença destes nos aparelhos do Estado, pelo conhecimento técnico que tinham quanto à organização de sistemas e serviços de saúde e pela expectativa de novas políticas públicas, além do apoio de movimentos e entidades de profissionais de saúde e de alguns outros setores: Comunidades Eclesiais de Base (CEB) e Movimento Popular pela Saúde (MOPS). Entretanto, o texto da saúde na Constituição não refletiu uma aspiração ou um clamor de setores populares ou da sociedade em geral. Um indicador sugestivo disso é o número de subscritores da emenda popular da saúde, 54.133 versus mais de 3 milhões da emenda da Reforma Agrária.

 

Mesmo assim, o novo texto a respeito da saúde não deixou de ter expressiva repercussão.

 

Produziu uma nova política de saúde: o Inamps foi extinto, e organizou-se em um prazo relativamente curto o SUS com avanços muito além do que se fosse apenas um sistema pobre para pobres. O seu grande problema seria o subfinanciamento. Entretanto, esse problema está além de ser financeiro. É ‘analisador’, ou seja, revelador do fato de que a sociedade hierárquica – as elites políticas e econômicas, as classes médias, os grandes empresários e os trabalhadores organizados –, além do setor privado e contingentes importantes de trabalhadores de saúde, não tem aderido ao SUS e à defesa do direito à saúde para todos. Essa relação tem se espelhado na atuação dos sucessivos governos que têm subsidiado direta ou indiretamente os planos de saúde e os serviços privados de saúde.

 

Enquanto a ‘coalização’ em defesa da Reforma Sanitária teve um refluxo, mas continuou lutando por meio de seu núcleo, o Movimento Sanitário, e na década passada pelo Fórum da Reforma Sanitária Brasileira, a ‘coalização em defesa do setor privado’, que já na Constituinte 1987-1988 garantiu sua atuação pelo artigo 199, continuou se intensificando por meio de uma política de internacionalização e financeirização. Enquanto os sanitaristas sonhavam com um welfare state social democrático, baseado no reconhecimento de direitos sociais universais, o sistema de seguridade sub-repticiamente estava se encaminhando a um welfare state liberal em que o Estado presta apenas benefícios mínimos para a população de baixa renda e estimula planos privados de seguro e de atenção à saúde para a população de maior renda. Essa opção foi desnudada, de modo prepotente e cruel, quando o governo ilegítimo que se instalou com a destituição da presidente Dilma Rousseff, em 2016, instituiu pela Emenda Constitucional nº 95 a prática de congelamento e redução de gastos na saúde, educação e desenvolvimento social e propôs a redução da aposentadoria e de benefícios sociais por intermédio da Proposta de Emenda Constitucional nº 287, apresentada na Câmara dos Deputados em 5 de dezembro de 2016, neste momento aguardando criação de Comissão Temporária pela Mesa.

 

Está se dilacerando a Constituição Cidadã de 1988 ou está ficando cada vez mais nítida a distância entre o Brasil legal e o Brasil real? De qualquer modo, depois de 40 anos, colocam -se novos obstáculos a serem superados pelo Cebes, pois a luta pela democratização há de continuar, mas não mais poderá se restringir a âmbitos institucionais e acadêmicos. Há de se privilegiar a participação popular e espaços populares, direção que se mostra neste número comemorativo quando se discute a participação deliberativa e popular. Nessa perspectiva, as questões colocam-se antes de tudo para os núcleos do Cebes. Estes estão sendo chamados para construir meios para assessorar e intensificar movimentos e entidades populares e apoiar projetos de educação popular ou de base.

 

O atual contexto golpista tem tudo para nos desanimar. No momento, recorrer aos clássicos que discutiram a formação do País não faz mal, a despeito de seus equívocos. Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951) e Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) assinalaram a distância entre o Brasil legal e o real, mas enquanto o primeiro estava convencido de que apenas um Estado forte poderia superar esta distância, o segundo situou no próprio Brasil real a possibilidade de mudanças. A convicção de Oliveira Vianna já foi por mais que desqualificada pelo desenrolar da nossa história. Ficamos, então, com a convicção de Sérgio Buarque de Holanda e continuemos a luta sem perder nunca a esperança.

 

O Cebes é o que faz e faz o que é!

 

Cornelis Johannes van Stralen
Presidente do Cebes (2015-2017)

 

José Ruben de Alcântara Bonfim
Diretor do Cebes (2015-2017)
Presidente do Cebes (1976-1978 e 1978-1979)