Essa gestão do CFM é cúmplice da mercantilização do ensino médico no Brasil

Em artigo, a Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares enumera casos de ação do Conselho Federal de Medicina em prol da mercantilização do ensino médico no Brasil e faz demandas de ações ao CFM, como: contra a abertura indiscriminada de escolas médicas, a retomada da pauta de universalização de vagas de acesso direto à residência médica, que seja revogado o acesso de grandes grupos de capital aberto na educação superior brasileira de medicina, dentre outras pautas. Veja o artigo a seguir.

Somos um país com muitas escolas médicas e poucos estudantes por curso.

Desde o período militar, com a contra-reforma universitária de 1968, construimos esse modelo de implantação de cursos de Medicina, onde apesar do alto investimento para o funcionamento de um curso, persistem diversas barreiras históricas ao acesso adequado a formação medica.

Quando analisamos a quantidade de vagas nos cursos de medicina a cada 100 mil habitantes, é notória a discrepância entre quantidade de cursos e vagas disponíveis.

No âmbito geral, observando a demanda social, essas vagas insuficientes no ensino superior não conseguem incluir diversos jovens com talento e vocação para uma futura profissão médica, especialmente se são provenientes do meio popular.

Esse déficit histórico na formação de médicos, década após década, gerou um passivo enorme em nosso país.

As necessidades sociais de saúde se ampliaram porque nossa população aumentou e vem envelhecendo, porque temos ainda importante impacto de doenças infecciosas na morbimortalidade de nossa população, além de outros fatores como as causas externas, caracterizado aquilo que chamamos de tripla carga de doenças.

Diante desse quadro, a omissão do Estado em relação a ampliar a formação de médicos, impulsionada pelos interesses restritivos da corporação da Medicina, em seu segmento mais conservador, levou a um novo “player” entrar no jogo, uma corporação muitíssimo mais poderosa do que a tradicional corporação médica, que é o setor privado da Educação.

Esse setor ocupou esse vazio deixado pelo Estado, e a partir desse modelo de “muitas escolas com poucas vagas por escola“, pulverizou a implantação de novas escolas de Medicina, com um modelo de negócios baseado em mensalidades caríssimas e aviltantes.

Sem uma melhor regulação pelo Estado de onde implantar esses novos cursos e quais seus compromissos sociais, amplia-se o componente mercantil da Medicina. Vale destacar que uma das primeiras medidas do Governo Temer (sem nenhuma oposição das entidades médicas) foi retirar os mecanismos de regulação específicos que se havia para implantação de novos cursos de Medicina, que considerava critérios de orientação sanitária para guiar editais e o modelo de funcionamento dos cursos.

Em vez de uma aliança com o Estado para gerar vagas em cursos de Medicina que atendessem nossa população, equilibrando qualidade com inclusão, e cumprindo o imperativo constitucional de que o SUS deve ordenar a formação de profissionais da saúde, a corporação médica, liderada por esse grupo que está há mais de 20 anos à frente do CFM (que inclusive hoje sofre oposição de antigos parceiros de décadas atrás) a partir do final dos anos 90 vem se dedicado a pautas de auto-promoção, sem nenhum efeito prático, como Ato Médico, Exame de Ordem (Proficiência), sendo atropelado pela necessidade de saúde do povo de nosso país, que quer e demanda mais médicos.

A ausência do poder público e a inépcia das entidades médicas tradicionais, foi captada e capturada pelo setor privado da Educação, que apesar de levar a uma ampliação de vagas em cursos de Medicina, mantém a nossa profissão no Brasil elitista em sua composição predominante.

O auge dessa atitude desastrada é o apoio das entidades médicas a movimentos reacionários, que levaram ao Golpe Institucional de 2015/2016; e sua colaboração com o governo autoritário de Jair Bolsonaro.

Inclusive temos que rememorar que foi esse grupo a frente do CFM que acobertou medidas ineficazes no combate a pandemia, sem validação científica, que retiraram o foco do que era o mais importante para enfrentar a pandemia por COVID-19: vacinação com agilidade, medidas de saúde coletiva e medidas de proteção social eficazes no auge da pandemia.

Assim o discurso “contra a abertura de novas escolas de Medicina dessa gestão do CFM” é mera bravata.

Seu aliado, o ministro da Economia Paulo Guedes, um dos donos do Grupo Afya, em verdadeiro lobby junto ao Ministério da Educação, levou quase todas as vagas dos últimos editais de abertura de cursos de Medicina previstos na Lei 12.871/2013.

Sem abrir nenhuma vaga nessas novas escolas de Medicina, em 2019, o Grupo Afya e o Sr Paulo Guedes faturaram só na Bolsa de Valores NASDAQ capitalização em torno de 02 bilhões de dólares, em pura especulação.

Ou seja, se o CFM quer ser coerente com sua posição, deve desde já denunciar esse verdadeiro escândalo, e se colocar contra o governo que não evitou a morte de mais de 400 mil brasileiras e brasileiros, e que impulsiona a expansão do setor privado da educação médica.

Essa mesma Afya, em associação com a rede Hapvida vem aproveitou-de das medidas desse governo, que teve a cumplicidade do CFM na redução de vagas de residência médica em nosso país, fora a revogação do dispositivo legal que obrigava a universalização de vagas de residência. A Lei 13.958/2019 mutilou a legislação anterior.

Afya e Hapvida estão propondo um modelo substitutivo que eles chamam “especialização com padrão de Residência Médica“, que na prática é um modelo que torna o médico refém do setor privado da assistência médica caso queira ter a possibilidade de se titular em especialidades médicas.

Não vimos até o momento nenhuma manifestação do CFM… talvez porque não queira confrontar o seu aliado, Paulo Guedes, e o chefe dele, Jair Bolsonaro.

A Rede Nacional de Medicas e Médicos Populares traz assim as seguintes posições:

  1. Contra a abertura indiscriminada de escolas médicas, e defende que para aferir a qualidade dos cursos se retome os mecanismos previstos na Lei 12.871/2013, como a Avaliação Seriada do Ensino Médico (ANASEM) e do SINAES;
  2. Que se retome a pauta da UNIVERSALIZACAO DE VAGAS DE ACESSO DIRETO A RESIDÊNCIA MÉDICA, para os egressos de graduação em Medicina no Brasil;
  3. Que seja revogado que grandes grupos com capital aberto possam se estabelecer na educação superior brasileira, e que os cursos de Medicina sem condições de funcionamento devem ser fechados, e ter seus estudantes transferidos a partir de medidas de supervisão do MEC.

Exames de Proficiência (Ordem) na Medicina, propostos por conselhos de Medicina, não são a solução, pois penalizam estudantes, e não as escolas que se aproveitaram desse ocaso do ensino médico brasileiro, que reforçamos, tem a contribuição do CFM para que ocorra da forma que está aí (vale ressaltar que a partir do sistema SAEME o CFM cobra elevado recurso para na prática disponibilizar/vender acreditação para as escolas médicas privadas).

Além disso, precisamos considerar milhares de brasileiras e brasileiros que estudam no exterior, pela falta de oportunidades diante do caríssimo ensino superior brasileiro e as parcas vagas nas universidades públicas. Esses merecem a possibilidade de um processo de revalidação de diplomas justo, bem estruturados em sua proposta de avaliação pedagógica, e sem enfrentar movimentos xenofóbicos e de desqualificação, como é feito por dirigentes atuais do CFM, ou seus aliados.

Os programas de provimento nacional de médicas e médicos precisam valorizar especialmente os brasileiros formados no Brasil, mas também possibilitar, mediante regras específicas que limitam o exercício profissional pleno da Medicina (limitando a prática médica ao âmbito exclusivo do programa de provimento) a contribuição de formados no exterior, em escolas reconhecidas pelas autoridades educacionais desses países onde estudaram, que queiram atuar em áreas como Distritos Sanitários Indígenas, Fronteiras, Áreas de Altíssimo Gradiente de Vulnerabilidade Social… aqueles lugares que não só por questões trabalhistas, mas pela complexidade social de nosso país, formados no Brasil, em regra, não desejam trabalhar.

Atenciosamente,
Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares.