Classes?e?ideologias?cruzadas

O junho brasileiro também produziu um tremor de terra, porém não chegaria a qualificá?lo de terremoto, uma vez que o travejamento fundamental da ordem não foi questionado. As relações de classe e propriedade não estiveram diretamente no centro das manifestações e as regras do jogo político foram visadas de maneira difusa.

André Singer | Novos Estudos

Se a memória não me falha, por volta da quinta?feira, 20, comecei a ouvir referências às manifestações que vinham ocorrendo como as “Jornadas de Junho”. Lembro?me de colegas, nos cor?redores da universidade, usando a expressão em caráter entre sério e brincalhão. Depois, eu próprio cheguei a utilizá?la em artigo de jornal. Algum tempo passado, no entanto, hesito em repetir a fórmula.

As jornadas originais constam de O 18 Brumário de Luís Bonaparte como nada menos que “o mais colossal acontecimento na história das guerras civis europeias”. Trata?se do momento em que, na conjuntura aberta pela revolução de 1848, o proletariado de Paris lança?se a uma tentativa insurrecional, sendo esmagado pela repressão à bala comandada pelo general Cavaignac. Apesar da derrota armada, Marx empenha?se em registrar que os insurretos sucumbiram com todas as honras, tendo feito a Europa tremer “frente ao terremoto de junho”.

O junho brasileiro também produziu um tremor de terra, porém não chegaria a qualificá?lo de terremoto, uma vez que o travejamento fundamental da ordem não foi questionado. As relações de classe e propriedade não estiveram diretamente no centro das manifestações e as regras do jogo político foram visadas de maneira difusa. Prova disso é que as propostas de Constituinte exclusiva e plebiscito para a reforma política caíram no vazio, tendo sido esquecidas quase logo depois que o mês acabou.

Por que falar em abalo sísmico, então? Porque em certo momento os protestos adquiriram tal dimensão e energia que ficou claro estar ocorrendo algo nas entranhas da sociedade, algo que podia sair do controle. Mas nunca restou nítido o que estava acontecendo. Ainda penso que, como escrevi à época, tendo se espalhado por mais de 350 municípios, mobilizado milhões de pessoas, obrigado à revogação do preço das passagens e ameaçado a Copa das Confederações, os movimentos de fato moveram uma placa tectônica quando começaram a se espalhar para as vastas periferias metropolitanas.

Foi então que as autoridades, encabeçadas pela presidente Dilma Roussef, ativaram as alavancas de emergência, demonstrando que a trinca tinha sido devidamente detectada na cabine de comando. Diferentemente do caso francês, entretanto, não houve aqui um desenho insurrecional. Ninguém seriamente imaginou estar em curso uma tentativa de revolução. Os acontecimentos se dividiram em três fases, as quais duraram cerca de uma semana cada uma.

A ebulição foi iniciada por fração pe?quena, embora valorosa, da classe média, com mobilizações praticamente circunscritas à cidade de São Paulo nos dias 6, 10, 11 e 13 de junho5. Nessa primeira etapa havia um objetivo específico: a redução do preço das passagens do transporte público. As iniciativas seguiram o modelo adotado pelo Movimento Passe Livre (mpl) em anos anteriores.

Convocados pelas redes sociais, os manifestantes percorriam e paralisavam grandes vias públicas por horas a fio, ao final havendo escaramuças com a polícia. Foi isso que aconteceu na primeira (avenida Paulista) e na segunda (zona oeste paulistana) jornada, com a cifra de presentes subindo, ao que parece, de 2 mil para 5 mil pessoas.

Na terceira convocação do mpl, para a terça, 11, outra vez reuniram?se 5 mil pessoas, mas houve verdadeira batalha campal com as legiões da ordem. Muitas cenas de violência policial e destruição do patrimônio por grupos de jovens foram reportadas pelos jornais. A repetição e intensificação dos embates levaram o governador paulista, Geraldo Alckmin, a anunciar um endurecimento para a quarta demonstração (na quinta, 13), quando um número indefinido de pessoas — a Polícia Militar (pm) calculou 5 mil, segundo os organizadores havia 20 mil — marchou pacificamente do centro da cidade até a rua da Consolação, sendo impedidas de prosseguir em direção à avenida Paulista.

A partir daí inicia?se repressão violentíssima, que se espalha por ampla região da pauliceia, tendo a pm atuado sem controle por horas, atingindo transeuntes e jornalistas de maneira indiscriminada. Depoimentos de partícipes e observadores deram conta de policiais “enlouquecidos” e “cenas de guerra” a céu aberto. O uso desmedido da força atraiu a atenção e a simpatia do grande público. Inicia?se, então, a segunda etapa do movimento, com as manifestações de 17, 18, 19 e 20 de junho, quando alcança o auge. Agora outras frações da sociedade entram espontaneamente em cena, multiplicando por mil a potência dos protestos, mas simultaneamente tornando vagas as suas demandas. De milhares, as contas de gente na rua passam a centenas de milhares.

Na segunda, 17, quando o mpl chama a quarta jornada, que juntou em São Paulo 75 mil pessoas7, ela é replicada nas maiores capitais do país da maneira espontânea. Surge quase um cartaz por manifestante, o que leva a uma profusão de dizeres e pautas: “Copa do Mundo eu abro mão, quero dinheiro pra saúde e educação”, “Queremos hospitais padrão Fifa”, “O gigante acordou”, “Ia ixcrever augu legal, maix fautô edukssão”, “Não é mole, não. Tem dinheiro pra estádio e cadê a educação”, “Era um país muito engraçado, não tinha escola, só tinha estádio”, “Todos contra a corrupção”, “Fora Dilma! Fora Cabral! pt = Pilantragem e traição”, “Fora Alckmin”, “Zé Dirceu, pode esperar, tua hora vai chegar”, foram algumas das inúmeras frases vistas nas cartolinas.

Diversos outros temas também compareceram, como a atuação do deputado Feliciano (psc?sp) na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, a Proposta de Emenda Constitucional 37, vetando a possibilidade de o ministério público fazer investigações independentes, o voto distrital e o repúdio aos partidos. Um pouco daquele “que se vayan todos” argentino de 2001 apareceu no ambiente. A depredação de edifícios públicos (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, Congresso Nacional, Itamaraty) pareceu ser expressão de um clima de repúdio aos políticos em conjunto.

Com o início da Copa das Confederações (16 de junho), São Paulo perde centralidade, com o protagonismo passando às praças onde haveria jogos (Brasília, Fortaleza, Salvador, Belo Horizonte e Rio de Janeiro). No Rio, em particular, as manifestações adquirem certo sabor de sublevação popular, com mobilizações se estendendo na terça, 18, para a Baixada Fluminense (Duque de Caxias, São Gonçalo, etc.). Na quarta (19), 10 mil estudantes e membros dos movimentos sociais em Fortaleza entram em confronto com a polícia antes e depois da partida entre Brasil e México. Nessa mesma quarta, assustados, a prefeitura do município e o governo do estado de São Paulo atendem à reivindicação e revogam o aumento da tarifa.

Na quinta, 20, em suposta comemoração, a onda atinge o ponto máximo, com demonstrações em mais de 100 cidades, algumas delas gigantescas, alcançando, no conjunto, cerca de 1,5 milhão de participantes. Quatro dias depois, em resposta, a presidente Dilma Rousseff propunha a Constituinte exclusiva para a reforma política, a qual seria, de acordo com o projeto, depois submetida a plebiscito popular. Na terceira e última etapa, que vai do dia 21 até o final do mês, o movimento se fragmenta em mobilizações parciais com objetivos específicos (redução de pedágios, derrubada da pec 37, protesto contra o Programa Mais Médicos, etc.).

Por exemplo, em São Paulo, uma passeata contra o Projeto de Emenda Constitucional 37 reuniu cerca de 30 mil pessoas no sábado, 22. Na mesma tarde, em Belo Horizonte, perto de 70 mil pessoas protestaram contra os gastos para a Copa diante do jogo entre Japão e México. Ainda sob o impulso da força liberada na segunda fase, mas já separadas por inclinações diferentes, as manifestações começam a se dividir, como um rio que se abrisse em múltiplos braços no descenso da montanha.Sem retirar a óbvia importância das demonstrações, em nenhum momento elas foram insurrecionais. Talvez chamá?las de “Jornadas de Junho”, portanto, leve a engano.

Porém como denominá?las? Diz?se que, anos depois de 1968, o filósofo Jean?Paul Sartre afirmava ainda estar tentando entender o que havia acontecido. Desconfio que o mesmo vá ocorrer conosco. Por muito tempo ficaremos a nos perguntar tanto sobre a gênese quanto sobre o significado desses acontecimentos de junho, como, segundo o filósofo Paulo Arantes, os franceses tratam o famoso maio soixante?huitard10. Sem nenhuma pretensão, portanto, de deitar cátedra sobre tema que deverá ser alvo ainda de muita pesquisa, as hipóteses que seguem, elaboradas quase no calor da hora, pretendem nada mais que contribuir para a reflexão coletiva.

Consciente das lacunas da visão que disponho, ocupo?me aqui apenas de discutir, de maneira preliminar, duas dimensões que julgo importantes para o debate: a composição social e as ideologias que se cruzaram nas ruas. Quanto ao nome, sendo a França a pátria, desde 1789, das mobilizações de massa, farei como os franceses, usando “acontecimentos de junho”.

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