Clínicas do Rio pagam propinas para receber pacientes
O Globo
A dor de pessoas doentes no momento de uma internação de emergência pode ser motivo de satisfação e lucros para um grupo de profissionais de saúde no Rio e em municípios vizinhos. Para aumentar a ocupação de seus leitos e engordar os cofres, pelo menos 14 hospitais de pequeno e médio porte pagam propina a técnicos de enfermagem e médicos de firmas de remoção hospitalar para que levem pacientes para internação a seus quartos e CTIs. Os valores pagos por doente variam de R$ 50 a R$ 600, dependendo do plano de saúde e da gravidade do caso.
Um funcionário da empresa Vida Emergências Médicas, sediada em São Cristóvão, que decidiu deixar o esquema revelou que as propinas rendem, em média, R$ 10 mil por mês para os integrantes da máfia das internações que trabalham nas ambulâncias. Segundo ele, cerca de 50 hospitais privados no Rio e na Região Metropolitana mantêm a prática, conhecida como “indicação de vaga” ou “bingo”. O GLOBO conseguiu confirmar a prática em 14 de 20 estabelecimentos.
– Isso acontece há mais de um ano. Saí porque cansei de ver gente sendo jogada em CTI sem precisar, correndo risco de pegar infecção hospitalar. Estão internando muita gente pela propina. Como esses pacientes são levados por ambulância de uma empresa credenciada no plano de saúde, as seguradoras liberam a internação mais rápido – diz o funcionário da Vida Emergências Médicas, mais conhecida como Vida UTI Móvel, que informa em seu site ter 60 UTIs móveis e 300 médicos de emergência.
No Rio, os envolvidos com o pagamento de propina são o Hospital do Amparo, no Rio Comprido; a Clínica São Carlos, no Humaitá; o Hospital Ipanema Plus, em Ipanema; o Hospital de Clínicas da Penha, em Brás de Pina; a Casa de Saúde Pinheiro Machado, em Laranjeiras; o Hospital Clínica Ipanema, em Ipanema; o Hospital Rio de Janeiro, em Vila Valqueire; o Hospital Procor, na Ilha do Governador; a Casa de Saúde Grande Rio, em Cordovil; o Hospital Semiu, em Vila da Penha; e o Hospital Urmed, em Vila Valqueire. Já em cidades vizinhas, o esquema ocorre no Pronil Hospital de Clínicas Antônio Paulino, em Nilópolis; no Hospital e Clínica São Gonçalo, no município homônimo; e no Centro Hospitalar São Lucas, em Niterói.
Com pequenas diferenças entre os hospitais, a máfia das internações segue um padrão. Depois do chamado para um atendimento domiciliar, a empresa de remoção socorre o paciente com um técnico de enfermagem, um médico e um motorista na ambulância. Nos casos mais graves, é preciso decidir para qual hospital o doente será levado, e aí começa a trama que terminará com a propina.
– Em geral, apenas o técnico de enfermagem da equipe sabe do esquema. Às vezes, o médico sabe também. A direção da empresa está por fora. Na hora de levar o paciente, o técnico procura vaga para internação e escolhe um hospital que esteja na lista dos que recebem indicação. Ele faz contato com a pessoa do hospital que está no esquema, identifica-se e pede a vaga. Em outro dia, ele recebe o pagamento, em dinheiro ou na conta – diz o funcionário que saiu do esquema.
Em cada hospital, há funcionários responsáveis pelo esquema nos setores de internação, faturamento ou até na direção, cujos cargos costumam ser ocupados por médicos. O GLOBO conseguiu fazer contato telefônico com as pessoas apontadas como responsáveis em 20 hospitais, simulando o interesse de uma técnica de enfermagem em levar pacientes para internação em troca de dinheiro. Nas conversas, que foram gravadas, os funcionários de 14 hospitais deram detalhes do funcionamento do sistema.
Em outras duas unidades, o Hospital Espanhol, no Centro, e o Hospital Prontocor, com sedes na Lagoa e na Tijuca, foi informado apenas que as casas de saúde não participam mais do esquema. Nos quatro hospitais restantes, funcionários disseram que não poderiam dar informações por telefone ou negaram a participação.
No Centro Hospitalar São Lucas, em Niterói, o responsável trabalha no setor de faturamento. Segundo ele, em caso de internação em CTI, o valor pago aos funcionários das ambulâncias é de até R$ 300, se o paciente ficar mais de dois dias no hospital. A vaga deve ser pedida ao médico que chefia o CTI. Perguntado se os médicos sabem do esquema, ele confirmou:
– Eles sabem que sempre sai um cascalhozinho. Agora, não sabem o valor ao certo. Não interessa ao hospital passar esse valor para eles. Isso é um segredo que todo mundo sabe, mas a gente procura evitar que caia na boca do povo. Só a direção e o faturamento sabem. (…) Se o médico negar a vaga, porque tem muito médico que não quer trabalhar, você fala com a gente e te ponho na fita com o diretor.
Em alguns casos, como no Hospital Urmed, foi avisado que membros da diretoria preferem “pagar (a propina) pessoalmente”. No Hospital Ipanema Plus, membros da direção também participam diretamente do esquema, que rende R$ 600, no caso de internação em CTI, e R$ 200, se for quarto.
No Hospital Clínica Ipanema, uma funcionária do faturamento explicou que não estão recebendo indicação por estar em obras. Mas, daqui a 15 dias, com o fim dos trabalhos, voltarão a receber. Por paciente de CTI, o hospital paga R$ 600; no caso de unidade semi-intensiva, R$ 150; se for quarto, R$ 100.
Já a responsável pelo esquema no Hospital Semiu disse que os valores pagos a quem leva paciente estão sendo redefinidos, porque o sistema foi interrompido em 2009 e está voltando agora. A estimativa é que o valor será de R$ 500 por internação em CTI e, no caso de quarto, R$ 400. Segundo ela, apesar de a unidade normalmente estar cheia, a diretoria mantém as indicações para se prevenir nos períodos em que o movimento cai.
De acordo com o advogado criminalista Breno Melaragno, conselheiro da OAB-RJ em direito penal, se houver comprovação de que alguém foi internado sem precisar, os envolvidos podem ser punidos por estelionato contra os planos de saúde e ainda por crime contra a saúde pública, em que o paciente é a vítima:
– Já se a internação é necessária, não estaria configurado crime, mas uma prática antiética, parte do comércio que é a medicina privada hoje.
O objetivo da máfia de aumentar o movimento nos hospitais ficou claro em vários telefonemas. Perguntados se é comum haver vagas, os responsáveis pelo esquema afirmaram, na maioria dos casos, que sempre há leitos livres. Um funcionário do Hospital e Clínica São Gonçalo, por exemplo, frisou que a rotatividade lá é grande. Ele informou que, pela internação de um paciente em CTI, o pagamento, feito através de depósito, é de R$ 200. Já em quarto, o valor é R$ 150. A propina, porém, só é liberada se a internação do paciente durar mais de 48 horas.
Durante a ligação, esse funcionário avisou que agencia o mesmo esquema no Hospital Icaraí, em Niterói. A mesma oferta foi feita no Hospital de Clínicas da Penha, cujo contato ofereceu também vagas no Hospital Terezinha de Jesus, em São João de Meriti.
O Globo (21/08/2011)