Comissão da Verdade agora para a Saúde
Grupo vai apurar casos de violência e perseguição a profissionais do setor durante a ditadura militar
ALESSANDRA DUARTE | O Globo
Prisão, tortura, exílio — e também fim de pesquisas médicas e perseguição a quem defendia um modelo de Saúde universalizado e gratuito, que só viria com a redemocratização. No ano em que o golpe que levou o Brasil à ditadura militar completa meio século, mais uma sombra desse período começará a aparecer: no 1º semestre deste ano acontecem os primeiros depoimentos da recém-instalada Comissão da Verdade da Reforma Sanitária, que vai apurar casos de violação de direitos humanos pela ditadura especificamente contra médicos e trabalhadores da Saúde no país.
Lançada no Rio no fim de 2013, em congresso da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a Comissão é organizada pela Abrasco e pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes). A coordenação é da médica Anamaria Tambellini, professora aposentada da UFRJ e da Fiocruz.
— Além de realizar audiências e tomar depoimentos, vamos buscar documentos e arquivos. Todo o material que produzirmos vamos enviar à Comissão Nacional da Verdade — diz Anamaria, destacando que a Comissão não tem prazo para concluir os trabalhos, que contarão com núcleos já formados em São Paulo, Bahia, Pernambuco, Paraná, Distrito Federal e Mato Grosso.
Além de investigar violações, a Comissão também terá como alvo profissionais da área que colaboraram com o regime, em sessões de tortura ou em expedição de atestados, por exemplo.
Um dos casos de perseguição a serem apurados, talvez o mais simbólico, foi contra pesquisadores da Fiocruz, no Rio, episódio que acabou conhecido como “massacre de Manguinhos”.
Carreiras interrompidas
Outro caso de perseguição foi o de José Ruben Bonfim. Primeiro presidente do Cebes e hoje médico sanitarista na prefeitura e no governo de São Paulo, o pernambucano estava, em 1973, no 6º ano de Medicina da UFPE. “Ainda não tinha 24 anos” quando quase foi sequestrado, conta — e seu quase sequestro incluiu até esconderijo em convento.
— Eu tinha ligação com a Ação Popular. Atendia, como médico, muitos de seus integrantes, por exemplo, o dirigente José Carlos da Matta Machado — lembra Bonfim, que na época trabalhava no Hospital Pedro II, então o hospital universitário da UFPE. — Um dia, em setembro, quando muitos da Ação Popular foram mortos em Pernambuco, dois homens bem-vestidos surgiram no hospital e vieram perguntar logo a mim se eu sabia onde o José Ruben estava. Eles não sabiam como eu era. Eu disse “Deixa eu ver se ele está ali” e fingi que ia procurar. Fui esperto, né?
Bonfim foi direto até um professor, que tentou sair do hospital com ele escondido no carro, mas já tinham fechado as saídas do Pedro II. O então estudante de Medicina acabaria escapando a pé mesmo, pela Favela dos Coelhos, no entorno do hospital:
— Liguei para outro professor, muito meu amigo. Ele tinha uma irmã freira. Foi me buscar na favela e me levou até o convento onde ela ficava, em Olinda. Fiquei escondido lá por três meses, com conhecimento da madre superiora. Depois, fui de ônibus até João Pessoa (PB); de lá, para o Rio; e, então, para São Paulo. Soube depois que até detiveram meu irmão achando que era eu.
Participante da fundação do Comitê Brasileiro pela Anistia e hoje, aos 64 anos, integrante da Comissão da Verdade da Reforma Sanitária, Bonfim conta ter tido vários colegas de faculdade torturados; alguns ficaram com perturbações psicológicas:
— Muitas possibilidades de carreiras foram interrompidas. Essa Comissão, além de revelar a verdade, vai ter o mérito de ser pedagógica, pois muita gente das novas gerações não conhece a perseguição sofrida pelo movimento da reforma sanitária, responsável, com orgulho, por construir na Constituição os artigos que criaram o SUS. A perseguição ao nosso movimento ocorreu porque só na democracia se podia ter um sistema de Saúde equânime — resume Bonfim.
Outro caso foi o da prisão e da tortura do médico Irun Sant’Anna, falecido em 2012.
— Foi preso várias vezes, e muito torturado. Onde mais sofreu foi no Dops. Chegou a me dizer depois que, lá, se tivesse tido a chance, teria se matado — conta o advogado Modesto da Silveira, homenageado no lançamento da Comissão e que defendeu San’Anna, integrante do PCB e fundador da UNE.
A perseguição à Saúde no país não era apenas contra os profissionais. Pesquisas e projetos também foram vítimas do regime.
— Questionávamos o sistema oferecido, baseado nos Inamps, onde só era atendido quem tinha carteira assinada. Questionávamos os chamados determinantes sociais da Saúde, ligados à pobreza da população. Incomodávamos a ordem. Foi um movimento contra-hegemônico que se desenhou nos anos 70, período mais duro do regime — diz Ana Costa, presidente atual do Cebes.
A fundação do próprio Cebes em 76 foi uma forma de criar um espaço de debate num período em que reuniões eram malvistas. Criaram um “grupo de estudos”, mas que também fazia debate político: por exemplo, nos lançamentos das edições da revista “Saúde em Debate”, criada pelo Cebes também em 76 e até hoje referência no setor.
— Algumas vezes, pessoas foram impedidas de ceder espaços para os nossos lançamentos. Uma vez, chegamos a um lugar onde estava marcado o evento, e a pessoa avisou: “Vão embora, que vai dar polícia” — diz Ana, elencando integrantes do movimento da reforma sanitária perseguidos pelo regime: — Eu, a Anamaria, Sergio Arouca, Eleuterio Rodrigues Neto, David Capistrano Filho.
Anamaria Tambellini lembra que não foi presa por causa de David, que havia passado recomendações de que, caso fosse preso — como ocorreu —, “cinco pessoas deveriam ser avisadas”. Anamaria estava entre elas.
Ela própria também teve dois estudos interrompidos. E que ilustram o tipo de pesquisa que incomodava na época:
— Eu fazia parte de um projeto sobre saúde do trabalhador, na Fiocruz, nos anos 70. A gente começou a ir pesquisar, na Delegacia Regional do Trabalho, documentos sobre acidentes de trabalho. Na 4ª vez, não nos deixaram mais entrar. Usaram a palavra mágica: aquele assunto era de “segurança nacional” — lembra.
Também nos anos 70, ela e outro pesquisador da Fiocruz, Eduardo Costa, faziam um estudo sobre meningite:
— Havia epidemia em áreas do Estado do Rio — diz Anamaria. — Não conseguimos nem submeter a pesquisa a financiamento. Não era interessante que se falasse em epidemias por aí.
— Todos esses casos não representaram uma violência apenas contra pessoas — completa Ana Costa. — Foi uma violência contra o próprio desenvolvimento da Saúde no país.
No Rio, perseguição levou ao ‘massacre de Manguinhos’ mesmo não tendo resultado em mortes, o nome como o episódio ficou conhecido já dá o tom: massacre de Manguinhos. Foi a cassação de direitos, o afastamento do trabalho e o exílio de pesquisadores da Fiocruz em 1970, num caso símbolo do que será apurado pela Comissão da Verdade da Reforma Sanitária.
Em 1º de abril de 70, por um decreto baseado no AI-5, Haity Moussatché, Herman Lent, Moacyr Vaz de Andrade, Augusto Cid Mello Perissé, Hugo de Souza Lopes, Sebastião José de Oliveira, Fernando Braga Ubatuba e Tito Cavalcanti tiveram os direitos políticos cassados. Como o decreto só cassava os direitos, mas não afastava os pesquisadores do seu trabalho, novo decreto viria mais tarde para aposentá-los “compulsoriamente”, juntamente com Domingos Arthur Machado Filho e Masao Goto.
No total, dez foram afastados. Mas quase foram 11 — outro dos perseguidos foi Walter Oswaldo Cruz, filho de quem dava nome à própria instituição, diz a pesquisadora da Fiocruz Wanda Hamilton, que escreveu sobre o caso:
— Seriam 11 se Walter não tivesse morrido em 67. Isso porque ele sofreu uma perseguição tremenda depois de 64, quando Francisco da Rocha Lagoa assumiu a direção do IOC (Instituto Oswaldo Cruz).
A direção do instituto, conta Wanda, passou a enviar ofícios a entidades internacionais e universidades pedindo que os auxílios financeiros passassem “pelo seu crivo”. Com isso, o laboratório da seção de hematologia, dirigida por Walter — acusado de propaganda subversiva e práticas de proselitismo político —, perdeu auxílios da Fundação Ford e teve de devolver material científico.
Já quem teve os direitos políticos cassados soube da cassação pelo rádio. “Era dia 1º de abril. Uma moça que trabalhava com o Herman Lent chegou toda assustada e disse: ‘Dr. Sebastião, telefonaram para cá dizendo que vocês foram cassados’. Eu disse: ‘Você esquece que hoje é 1º de abril?’. Daqui a pouco, alguém telefonou: ‘Olha, está dando na Rádio Globo que vocês foram cassados’. Aí liguei meu rádio e ouvi a notícia”, contou Sebastião José de Oliveira no depoimento que deu em 86 à Casa de Oswaldo Cruz, setor da Fiocruz cujo acervo contém depoimentos e imagens dos perseguidos.
Nem todos foram exilados, e apenas um, Fernando Ubatuba, foi preso, em 68: ficou 14 dias incomunicável no paiol de pólvora do Exército, em Paracambi. O grupo só seria reintegrado à Fiocruz em 86, em ato público durante a presidência de Sergio Arouca na fundação.
— O governo militar não deu explicação oficial sobre os motivos da cassação. Muitas possibilidades foram levantadas, pelos próprios pesquisadores. Alguns ressaltam aspectos pessoais, outros, inimizades na instituição, ou chamam a atenção para divergências sobre a política científico-institucional — diz Wanda, sublinhando o que significou a perseguição para o país: — A instituição estava na ponta do conhecimento científico brasileiro em entomologia, micologia, fisiologia. Todos os cassados e aposentados eram líderes de projetos, e seus laboratórios foram praticamente desmontados.