Como a ANS e Conselhos podem e devem se comportar em relação ao ‘caso Prevent Senior’
Integrante do Cebes, o advogado Matheus Falcão, pesquisador do Núcleo de Direito Sanitário da USP e assessor jurídico do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), conversou com a jornalista Renata Lo Prete para o podcast O Assunto sobre o papel da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e o caso Prevent Senior. Acesso o episódio nesse link ou na sua plataforma de podcasts.
A seguir, o texto de introdução ao episódio:
A sequência estarrecedora de revelações deixa no ar a pergunta: como foi possível a operadora ir tão longe no desrespeito à vida de seus clientes e na prestação de serviços ao Palácio do Planalto? Parte da resposta está nas revelações da CPI da Covid, atualizadas neste episódio por Octavio Guedes, colunista do G1 e comentarista da GloboNews. Ele destaca a convicção da Prevent Senior -relatada no depoimento da advogada de médicos da empresa- de que jamais seria incomodada por órgãos de fiscalização, dado seu relacionamento estreito com o “gabinete paralelo” de assessoramento do presidente na pandemia. Com as costas quentes, a Prevent se sentiu à vontade para conduzir um “campo de experimentos anticientíficos”, diz Guedes. Outro depoimento, o do empresário Luciano Hang, desnudou o empenho dos governistas em boicotar qualquer tipo de lockdown em nome de “salvar a economia”. “Mas nunca foi a economia”, lembra Guedes. “Sempre foi a reeleição de Bolsonaro”.
A segunda parte da resposta Renata Lo Prete foi buscar em entrevista com o advogado Matheus Falcão, pesquisador do Núcleo de Direito Sanitário da USP e assessor jurídico do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). Ele mostra como funciona a Agência Nacional de Saúde Suplementar, órgão regulador que apenas nesta semana, quando a pilha de denúncias graves já transbordava, emitiu a primeira autuação contra a Prevent. A ANS, explica Falcão, tem corpo técnico qualificado, formado por servidores públicos concursados, mas suas decisões finais ficam a cargo de uma diretoria composta por cinco indicados pela Presidência da República. Ele fala também do Conselho Federal de Medicina, que até aqui fez cara de paisagem diante das pressões para que profissionais da Prevent empurrassem aos pacientes remédios ineficazes contra a doença. Matheus conclui como esta situação “chegou ao limite” e demanda ação do Estado.
Em nota enviada ao g1, a ANS diz que a agência tomou conhecimento das denúncias pela imprensa e pela CPI da Covid. E afirma que a diretoria da agência vai se reunir nesta quinta-feira (30) com dirigentes da Prevent Senior para esclarecer a conduta da operadora.
Veja a seguir a Matheus com a jornalista Renata Lo Prete:
Renata Lo Prete: Mateus, são tantas denúncias e tão graves, agora nem mais somente contra a previcênio, tem pelo menos mais um plano, o ato e vida também sob investigação por pressionar os seus funcionários a receitar cloroquina que muita gente se pergunta, como é que foi possível chegar até aqui? Então, eu te sugiro que a gente comece olhando para o órgão regulador, ANS. O que no funcionamento dela ajuda a explicar tanta demora pra acontecer alguma coisa?
O caso é bastante grave e nos preocupa bastante. A ANS é uma entidade central pra resolver o problema. Ela é uma agência reguladora responsável por regular o setor de saúde suplementar (os planos de saúde) e tem a competência inclusive de intervir nesses planos quando encontra uma falha assistencial, que é o caso que nós identificamos na operadora Prevent Senior. Na nossa visão, a melhor solução pro caso da operadora Prevent Senior, seria a ANS usar uma das suas prerrogativas legais, que se chama inclusive Regime de Direção Técnica. Ela intervém no operadora por meio desse regime e pode corrigir eventuais falhas, como, por exemplo, um protocolo de medicamentos comprovadamente ineficazes. E acompanhar muito de perto o que tá acontecendo.
Nós sabemos que a ANS já foi provocada há alguns meses em relação a esse caso. Sabemos que tem um processo investigativo sobre esse caso. Mas nosso entendimento, no momento, é que a Agência deve uma resposta pra sociedade sobre o que ela vai fazer em relação a isso. Nesse momento nós estamos aguardando com grande expectativa, inclusive lançamos uma campanha, para que a ANS se posicione.
Agora talvez seja uma boa hora pra gente explicar que a ANS tem um corpo técnico mas tem também uma diretoria que é indicada.
A ANS, como toda agência reguladora, tem uma certa autonomia, com funcionários concursados e servidores públicos que exercem o papel mais técnico. Mas as decisões finais de última instância ficam à cargo da sua diretoria colegiada, que é formada por cinco pessoas indicadas pra Presidente da República e sabatinadas pelo Senado.
Nós entendemos, inclusive, que muitas das decisões que a ANS deveria tomar – vou citar aqui um exemplo a regulação de reajuste de bancos coletivos que são muito elevadas – não são tomadas justamente porque a diretoria colegiada tem essa indicação política. Não toma às vezes até contradizendo algumas opiniões do corpo técnico.
Olhando especificamente para a Prevent, você pode explicar quais são as particularidades desse plano e porque ele exigiria ainda mais controle e fiscalização?
Prevent Senior, assim como outras operadoras, é o que a gente chama de operadora de plano de saúde verticalizada. Por que isso? Porque ela tem a parte financeira, que faz a gestão do seguro de saúde, e tem na própria empresa a rede assistencial.
Em outras palavras, posso dizer que existe uma rede assistencial hospitalar que é administrada pela empresa. Por isso que a gente fala que é verticalizada: ela executa as duas funções. Isso dá à gestão da empresa mais poder, por exemplo, de definir um protocolo de prescrição de medicamentos sem eficácia comprovada ou até comprovadamente ineficaz.
Como é o caso…
Exatamente. Então, justamente por esse poder da empresa é mais importante ainda que os órgãos de regulação – Conselho Regional de Medicina e ANS – atuem pra entender o que tá acontecendo e, apurada a irregularidade, tomar medida pra proteger o usuário que é o interesse primário aqui.
Voltando a questão do porquê só agora. A Prevent é notícia desde o início da pandemia e muito especialmente a vários dias já com as revelações do repórter Guilherme Balza da Globo News e também descobertas da CPI da covid. No entanto, somente nesta semana a ANS autuou a Prevent e mesmo assim apenas por ter deixado de comunicar os beneficiários informações estabelecidas em lei. Só que são muitas outras denúncias que vão desde a coação, da intimidação dos médicos, à alteração no registro dos pacientes para que eles aparecessem como tendo outra doença que não covid, que é o que eles tinham. Essas outras condutas não passam pela ANS também?
Exatamente, Renata. A pergunta é muito boa. É uma pergunta que nós do IDEC também fazemos. O IDEC tá acompanhando esse caso desde abril de 2020, ou seja, há mais de um ano. E realmente as suspeitas ali, a começar pela questão do direito à informação que deveria ser passada, são muito graves e elas vão se agravando conforme mais relatos vão surgindo.
Tanto esses relatos que se apresentam de uma forma formal, entregues à CPI, como também relatos em mídias sociais. Isso talvez levante uma uma questão importante: será que os órgãos de fiscalização, como a própria ANS não deveriam e não poderiam ter agido antes? Na nossa opinião, sem a menor dúvida. Seria importante acompanhar sempre que surgem essas suspeitas. Não é a toa que o IDEC acompanhe, e tem atuado, inclusive, cobrando explicações das empresas há mais de um ano.
O que nós vemos dentro do regramento institucional da ANS é essa figura da direção técnica. E essa direção pode acontecer quando se identificam o que se chama de anormalidades assistenciais. São falhas existenciais muito graves, que seria o caso aqui: uma operadora verticalizada que define um protocolo que não está conforme, ou que deveria ser definido, não informa os seus usuários, a suspeita de testes clínicos mal conduzidos, e essa denúncia gravíssima de coação do profissional de saúde. Ou seja, a gestão não técnica passando por cima da decisão técnica. Quem deve definir é o médico e não a administração da empresa – especialmente se essa decisão da empresa for palpada por uma redução de custo, uma questão financeira.
Então tudo isso já é um quadro muito preocupante porque nós entendemos que agora a situação chegou a um limite e demanda urgentemente uma medida do Estado.
E por fim, essa nossa conversa tem que passar por um ator muito importante que é o Conselho Federal de Medicina (CFM), que tem desde o início do governo Bolsonaro indícios de proximidade com o Governo. Até agora nada disse sobre as denúncias de que apresente sobre médicos a prescrever remédios sem eficácia para os doentes. A CPI inclusive aprovou requerimentos pra que o CFM, o seu braço paulista e a ANS sejam investigados pela PGR, por omissão. Você pode explicar qual é o papel dos conselhos e que atitudes eles poderiam ter tomado desde o começo?
Os conselhos são entidades públicas e tem uma função de defesa do interesse público e eles atuam ali na regulação da profissão médica. Então definem, por exemplo, escopo de prática do médico, o que o médico pode fazer, quais são as regras médicas a que o profissional de medicina deve se associar e se filiar para exercer a prática médica da forma adequada. A própria questão do respeito à autonomia médica também nos parece uma questão que despertaria o interesse do Conselho Superior de Medicina ou do Conselho Regional de Medicina – entidades bastante vinculadas. Então é aí que o Conselho poderia atuar, especialmente nessa relação médico-paciente, mas também chamando atenção para casos que os médicos foram coagidos pela operadora pra adotar uma determinada conduta.
É aí que esses conselhos poderiam atuar. Vale destacar que, nos últimos dias, o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (CREMESP) se manifestou no sentido de estar acompanhando essa questão. Imaginamos que nos próximos dias também vai produzir algum comunicado acerca do que as investigações estão levando.