Como o SUS inspira a Reforma da Saúde colombiana

Estudiosa ligada à Associação Latino-Americana de Medicina Social conta, no Cebes Debate, em que bases está sendo construído o novo sistema de saúde na Colômbia. Atenção Primária tem papel decisivo, para reverter modelo hospitalocêntrico

Surge um projeto que tem o SUS como inspiração. Acontece na Colômbia, onde o governo de Gustavo Petro conduz o país sob uma tênue coalizão de partidos por meio da qual busca garantir maioria legislativa. Dessa forma, ainda que sob fortes pressões, consegue apresentar reformas outrora impensáveis a este país atravessado por quase um século de conflito armado. Claudia Naranjo, doutoranda em Saúde Coletiva, Ambiente e Sociedade pela Universidade Nacional da Colômbia e também membro da Associação Latino-Americana de Medicina Social (Alames), foi uma das convidadas do Cebes Debate da semana passada, e falou sobre a experiência.

O exemplo do Brasil nos inspira muito. A saúde é centro das decisões do Estado e influencia decisões políticas importantes no território, com participação social cidadã na definição de políticas, como vimos na Conferência Nacional de Saúde, onde estivemos. Na Colômbia a representação não tem capacidade de incidência, não há mecanismos de participação. A saúde é representativa da lógica de democracia restringida que ordena nosso país”, afirmou.

Naranjo fez importantes considerações a respeito do processo político e histórico colombiano ao participar do debate virtual “Construindo sistemas de saúde democráticos na América Latina”, promovido pelo Centro Brasileiro de Estudos em Saúde. Pois, como em qualquer país, a condição de saúde de um povo é perpassada pelos determinantes sociais, que no país vizinho são marcados por um contexto dramático de violência estrutural e terrorismo de Estado.  

Somos uma democracia restrita, com 75 anos de conflito. Não há participação livre, aqui quem opina morre. Quem contesta o Estado para exercer livre associação ou pensamento, como na constituição, tem medo. É estigmatizado, colocado como inimigo público. Aqui não se fala em dissenso, há inimigos que devem ser aniquilados. Aqui a vice-presidente [Francia Márquez] é alvo de atentados a bombas. Ser liderança social na Colômbia é assim. Democracia é determinante social da cultura política. E não temos isso. Precisamos conquistar.

De toda forma, há um florescimento democrático no país e pautas de bem-estar social avançaram no debate público. A Colômbia foi sacudida por uma greve de massas de clara viés antineoliberal, em 2019 – um movimento de grandes similaridades com o estallido chileno do mesmo ano, de maior repercussão internacional. O movimento colombiano, organizado em torno do chamado Pacto Histórico, sugestivo nome da legenda partidária que elegeu Petro, colocou o direito à saúde em posição inédita de destaque.

Neste duro contexto socioeconômico, os colombianos colocam o SUS como o modelo a ser seguido. Até os termos usados para definir as políticas públicas são similares. “Apresentamos um novo modelo de política de saúde, chamado por Petro de ‘preditivo, preventivo e resolutivo’. Um modelo ligado aos determinantes sociais, com a intersetorialidade, atenção primária, atenção familiar e comunitária, para criar um sistema de caráter preventivo e com dispositivos de respostas integrais, com maiores cuidados gerais para gerar saúde. O Brasil, claramente, nos dá uma experiência”, explicou Naranjo.

Tal como no Chile, o modelo de saúde colombiano é altamente mercantilizado. Basicamente, acessa o sistema quem pode pagar. As associações médicas têm grande influência e o estado paga por serviços prestados. Mesmo com subsídios públicos, o usuário do serviço paga uma parte da conta quando o acessa. Dessa forma, a “Colômbia profunda” mal tem contato com o sistema, uma vez que os serviços de maior complexidade e concentrados nas grandes cidades são mais lucrativos à classe médica e as empresas privadas. Enquanto isso, cerca de metade da população, das zonas rurais e dos interiores, não têm cuidados básicos. Como fica cada vez mais claro mundo afora, um modelo mais caro e menos eficiente de promoção da saúde.

Para as empresas, é mais lucrativo a população adoecer e depois ela receber do estado por serviços prestados, o que influi o perfil epidemiológico da população, tornada mais vulnerável. Não sabemos dos contratos, não há auditoria, não sabemos quanto recebem e como usam os recursos, enfim, não há mecanismos de prestação de contas. O sistema de saúde consome 8% do PIB e antes da legislação atual não superava 3%. E as empresas dizem que não têm recursos suficientes. Mas é evidente que nosso modelo de saúde gasta muito dinheiro tratando doenças preveníveis”, ilustra Naranjo.

Agora, a ideia é colocar em cena um modelo de atenção primária com inserção territorial. Para isso, valorizar os trabalhadores do setor é indispensável, uma vez que o modelo neoliberal aqui descrito também é uma máquina de moer sua própria força de trabalho. Não há vínculos fixos entre empresas e profissionais, o que explica parte da força do projeto do “SUS colombiano”, agora assumido pelo presidente Gustavo Petro, que o apresenta na forma de projeto de lei da chamada Reforma da Saúde. Ao lado disso, reformas trabalhista e previdenciária formam todo o caldo de transformação de um país fraturado por décadas de guerra civil e violência social.

Colômbia – 08/07/2023 – O presidente Lula, chega a Colômbia para encontro com o Presidente da República da Colômbia, Gustavo Petro, onde na sequência tem a sessão de encerramento da Reunião Técnico-Científica da Amazônia. Foto: Cláudio Kbene/PR

Quase 87% da mão de obra está contratada por ‘ordens de prestação de serviço’, sem nenhum vínculo de trabalho. Na pandemia, isso foi uma vergonha, chamaram os profissionais de heróis, mas quando ficavam doentes tinham seus contratos suspensos e ficavam sem salário ou proteção. É uma situação muito crítica. Muitos querem manter a lógica de contratação por prestação de serviço, mas a maior parte da mão de obra da saúde quer mudar, porque sua condição de trabalho requer reconhecimento de vínculo. Queremos formação pública em ciências e tecnologias de saúde mais próximos dos territórios e capaz de reconhecer culturas locais, a exemplo da indígena”, sintetizou.

A matéria de Gabriel Brito foi publicada originalmente no portal Outra Saúde. Assista o programa no link ou a seguir: