Conferência termina com carta aberta e relatório contra privatização

A 14ª Conferência Nacional de Saúde terminou nesse domingo, 4 de dezembro de 2011, com seu relatório final e uma carta, ambos aprovados antes das cinco da tarde pelos mais de quatro quatro mil participantes, entre delegados e convidados.

A agilidade da aprovação se deveu a dois fatores principalmente. Uma nova metodologia proposta pela relatoria e a presença do ministro Alexandre Padilha, que impediu, elevando o tom de voz, a interrupção da plenária por delegados insatisfeitos com a aparição de uma proposta de carta no último dia da conferência.

O relatório final aprovado pela plenária foi votado com dezenas de destaques em bloco, o que agilizou o processo e teve baixa oposição. Nos GTs, apesar da presença de alguns delegados que interrompiam com frequência a votação para repetir suas opiniões, o tom geral era de celeridade e objetividade, com a maioria dos delegados manifestando a intenção de adiantar os trabalhos.

Houve alguns problemas com as mesas. Em alguns grupos a coordenação foi considerada frágil, sendo pouco consistente na organização das falas e do ordenamento das questões. Apesar disso, os grupos encerraram seus trabalhos e, em alguns casos, trocaram os membros da mesa.

No caso da carta, a idéia era oferecer um texto mais conciso, com uma narrativa mais clara e resumida para a sociedade do que o relatório da conferência, menos atrativo para a ampla leitura, explica Pedro Carneiro, diretor do Cebes e membro da relatoria.

Alguns grupos porém, ficaram irritados com o surgimento de um documento que não constava nas discussões anteriores das conferências municipais e estaduais e na própria conferência nacional. Houve muito barulho e gritaria quando a carta foi apresentada.

O ministro se posicionou fortemente em relação ao grupo opositor alegando “que ninguém vai ganhar no grito, todos temos crachás” e pediu uma votação antes de ler a carta. Ficou visualmente claro que a maioria da plenária aprovava a idéia de uma carta. Após a leitura da mesma por Jurema Werneck, coordenadora-geral da Conferência, a grande maioria dos delegados aplaudiu seu conteúdo. “A Carta de Brasília foi construída pela comissão organizadora da conferência, junto com diversas outras entidades”, explica um dos relatores e vice-presidente do Cebes, Alcides Miranda. Como a carta não passou por todo o processo de destaques e discussões do relatório, mesmo entidades que foram favoráveis a ela levaram de Brasília algumas insatisfações em relação ao texto.

“O Cebes participou do processo de negociação e elaboração da carta mas o consenso entre os diversos atores que participaram nao incluiu significativas análises e propostas que foram apresentadas na Tese: “Renovar a Politica preservando o interesses público na Saúde”.  No nosso entendimento a carta traduz o nível dos debates da conferência: fragmentado sob o ponto de vista da prevalência de propostas pontuais originadas de grupos de pacientes, regiões ou profissionais de saúde diluindo o que representa os problemas estruturantes que hoje impedem ou dificultam a consolidação do direito à saúde. Não se trata de debater a legitimidade desse tipo de proposta mas afirmar que uma conferência nacional deve ocupar o lugar de analisar políticas de governo que facilitam ou impedem a concretização do direito à saúde de toda a população em todo o país. Estas demandas particulares talvez estivessem afetas às conferências municipais ou estaduais, mas a expectativa da maioria dos delegados é maior na etapa nacional. Se a Politica é a defesa dos interesses coletivos, da polis, então, mais uma vez este processo de conferências  que culminou na etapa nacional foi pobre em Política, avalia a presidente do Cebes, Ana Costa.

“Pelo espírito democrático, mesmo com estas ressalvas, o Cebes apoiou a carta em respeito ao conjunto das entidades e delegações que contribuíram na sua construção. Seguiremos nosso trabalho não apenas como “guardiões da Reforma Sanitária”, como se referiu o ministro em entrevista ao Cebes, mas especialmente ajudando a construir junto aos movimentos sociais a consciência sanitária para a  retomada do papel de instituintes no processo político de garantia do direito à saúde”, complementou Ana.

Entre as críticas que membros da diretoria do Cebes colocam está a avaliação mais realista do SUS. Apesar de entender ser necessária a repetição das conquistas do SUS, eles acreditam que é importante fazer uma avaliação também das forças e processos que impedem a efetivação da saúde e de outros direitos constitucionais.

“O Sistema de Seguridade Social criado pela Constituição não foi efetivado,  os direitos sociais não constituem prioridade do Estado e o SUS sobrevive com muitas conquistas mas com inúmeros problemas que comprometem  o sentido para o qual foi concebido. O Brasil mudou sim, com disse bem o Ministro Padilha em seu depoimento ao Cebes. Mas mudou atrelando cada vez mais o seu processo de desenvolvimento ao capital e ao mercado. A sociedade deve tensionar para mudar os rumos do Estado, se quisermos instituir um outro modelo de desenvolvimento que tenha as pessoas, a população, os direitos sociais no centro de seus objetivos. Só assim a saúde passa a ter chance de se consolidar como política universal. Esta diretriz precede qualquer outra na garantia do direito à saúde” defende Ana.

Confira o texto da Carta de Brasília abaixo e o depoimento da presidente nacional do Cebes.

CARTA DA 14ª CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE À SOCIEDADE BRASILEIRA

Todos usam o SUS: SUS na Seguridade Social! Política Pública, Patrimônio do Povo Brasileiro

Acesso e Acolhimento com Qualidade: um desafio para o sus

Nestes cinco dias da etapa nacional da 14ª Conferência Nacional de Saúde reunimos 2.937 delegados e 491 convidados, representantes de 4.375 Conferências Municipais e 27 Conferências Estaduais.

Somos aqueles que defendem o Sistema Único de Saúde como patrimônio do povo brasileiro.

Punhos cerrados e palmas! Cenhos franzidos e sorrisos.

Nossos mais fortes sentimentos se expressam em defesa do Sistema Único de Saúde.

Defendemos intransigentemente um SUS Universal, integral, equânime, descentralizado e estruturado no controle social.

Os compromissos dessa Conferência foram traçados para garantir a qualidade de vida de todos e todas.

A Saúde é constitucionalmente assegurada ao povo brasileiro como direito de todos e dever do Estado. A Saúde integra as políticas de Seguridade Social, conforme estabelecido na Constituição Brasileira, e necessita ser fortalecida como política de proteção social no País.

Os princípios e as diretrizes do SUS – de descentralização, atenção integral e participação da comunidade – continuam a mobilizar cada ação de usuários, trabalhadores, gestores e prestadores do SUS.

Construímos o SUS tendo como orientação a universalidade, a integralidade, a igualdade e a equidade no acesso às ações e aos serviços de saúde.

O SUS, como previsto na Constituição e na legislação vigente é um modelo de reforma democrática do Estado brasileiro. É necessário transformarmos o SUS previsto na Constituição em um SUS real.

São os princípios da solidariedade e do respeito aos direitos humanos fundamentais que garantirão esse percurso que já é nosso curso nos últimos 30 anos em que atores sociais militantes do SUS, como os usuários, os trabalhadores, os gestores e os prestadores, exercem papel fundamental na construção do SUS.

A ordenação das ações políticas e econômicas deve garantir os direitos sociais, a universalização das políticas sociais e o respeito às diversidades etnicorracial, geracional, de gênero e regional. Defendemos, assim, o desenvolvimento sustentável e um projeto de Nação baseado na soberania, no crescimento sustentado da economia e no fortalecimento da base produtiva e tecnológica para diminuir a dependência externa.

A valorização do trabalho, a redistribuição da renda e a consolidação da democracia caminham em consonância com este projeto de desenvolvimento, garantindo os direitos constitucionais à alimentação adequada, ao emprego, à moradia, à educação, ao acesso à terra, ao saneamento, ao esporte e lazer, à cultura, à segurança pública, à segurança alimentar e nutricional integradas às políticas de saúde.

Queremos implantar e ampliar as Políticas de Promoção da Equidade para reduzir as condições desiguais a que são submetidas as mulheres, crianças, idosos, a população negra e a população indígena, as comunidades quilombolas, as populações do campo e da floresta, ribeirinha, a população LGBT, a população cigana, as pessoas em situação de rua, as pessoas com deficiência e patologias e necessidades alimentares especiais.

As políticas de promoção da saúde devem ser organizadas com base no território com participação inter-setorial articulando a vigilância em saúde com a Atenção Básica e devem ser financiadas de forma tripartite pelas três esferas de governo para que sejam superadas as iniqüidades e as especificidades regionais do País.

Defendemos que a Atenção Básica seja ordenadora da rede de saúde, caracterizando-se pela resolutividade e pelo acesso e acolhimento com qualidade em tempo adequado e com civilidade.

A importância da efetivação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, a garantia dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos, além da garantia de atenção à mulher em situação de violência, contribuirão para a redução da mortalidade materna e neonatal, o combate ao câncer de colo uterino e de mama e uma vida com dignidade e saúde em todas as fases de vida.

A implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra deve estar voltada para o entendimento de que o racismo é um dos determinantes das condições de saúde. Que as Políticas de Atenção Integral à Saúde das Populações do Campo e da Floresta e da População LGBT, recentemente pactuadas e formalizadas, se tornem instrumentos que contribuam para a garantia do direito, da promoção da igualdade e da qualidade de vida dessas populações, superando todas as formas de discriminação e exclusão da cidadania, e transformando o campo e a cidade em lugar de produção da saúde. Para garantir o acesso às ações e serviços de saúde, com qualidade e respeito às populações indígenas, defendemos o fortalecimento do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena. A Vigilância em Saúde do Trabalhador deve se viabilizar por meio da integração entre a Rede Nacional de Saúde do Trabalhador e as Vigilâncias em Saúde Estaduais e Municipais. Buscamos o desenvolvimento de um indicador universal de acidentes de trabalho que se incorpore aos sistemas de informação do SUS. Defendemos o fortalecimento da Política Nacional de Saúde Mental e Álcool e outras drogas, alinhados aos preceitos da Reforma Psiquiátrica antimanicomial brasileira e coerente com as deliberações da IV Conferência Nacional de Saúde Mental.

Em relação ao financiamento do SUS é preciso aprovar a regulamentação da Emenda Constitucional 29. A União deve destinar 10% da sua receita corrente bruta para a saúde, sem incidência da Desvinculação de Recursos da União (DRU), que permita ao Governo Federal a redistribuição de 20% de suas receitas para outras despesas. Defendemos a eliminação de todas as formas de subsídios públicos à comercialização de planos e seguros privados de saúde e de insumos, bem como o aprimoramento de mecanismos, normas e/ou portarias para o ressarcimento imediato ao SUS por serviços a usuários da saúde suplementar. Além disso, é necessário manter a redução da taxa de juros, criar novas fontes de recursos, aumentar o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) para a saúde, tributar as grandes riquezas, fortunas e latifúndios, tributar o tabaco e as bebidas alcoólicas, taxar a movimentação interbancária, instituir um percentual dos royalties do petróleo e da mineração para a saúde e garantir um percentual do lucro das empresas automobilísticas.

Defendemos a gestão 100% SUS, sem privatização: sistema único e comando único, sem “dupla-porta”, contra a terceirização da gestão e com controle social amplo. A gestão deve ser pública e a regulação de suas ações e serviços deve ser 100% estatal, para qualquer prestador de serviços ou parceiros. Precisamos contribuir para a construção do marco legal para as relações do Estado com o terceiro setor. Defendemos a profissionalização das direções, assegurando autonomia administrativa aos hospitais vinculados ao SUS, contratualizando metas para as equipes e unidades de saúde. Defendemos a exclusão dos gastos com a folha de pessoal da Saúde e da Educação do limite estabelecido para as Prefeituras, Estados, Distrito Federal e União pela Lei de Responsabilidade Fiscal e lutamos pela aprovação da Lei de Responsabilidade Sanitária.

Para fortalecer a Política de Gestão do Trabalho e Educação em Saúde é estratégico promover a valorização dos trabalhadores e trabalhadoras em saúde, investir na educação permanente e formação profissional de acordo com as necessidades de saúde da população, garantir salários dignos e carreira definida de acordo com as diretrizes da Mesa Nacional de Negociação Permanente do SUS, assim como, realizar concurso ou seleção pública com vínculos que respeitem a legislação trabalhista. e assegurem condições adequadas de trabalho, implantando a Política de Promoção da Saúde do Trabalhador do SUS.

Visando fortalecer a política de democratização das relações de trabalho e fixação de profissionais, defendemos a implantação das Mesas Municipais e Estaduais de Negociação do SUS, assim como os protocolos da Mesa Nacional de Negociação Permanente em especial o de Diretrizes Nacionais da Carreira Multiprofissional da Saúde e o da Política de Desprecarização. O Plano de Cargos, Carreiras e Salários no âmbito municipal/regional deve ter como base as necessidades loco-regionais, com contrapartida dos Estados e da União.

Defendemos a adoção da carga horária máxima de 30 horas semanais para a enfermagem e para todas as categorias profissionais que compõem o SUS, sem redução de salário, visando cuidados mais seguros e de qualidade aos usuários. Apoiamos ainda a regulamentação do piso salarial dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), Agentes de Controle de Endemias (ACE), Agentes Indígenas de Saúde (AIS) e Agentes Indígenas de Saneamento (AISAN) com financiamento tripartite.

Para ampliar a atuação dos profissionais de saúde no SUS, em especial na Atenção Básica, buscamos a valorização das Residências Médicas e Multiprofissionais, assim como implementar o Serviço Civil para os profissionais da área da saúde. A revisão e reestruturação curricular das profissões da área da saúde devem estar articuladas com a regulação, a fiscalização da qualidade e a criação de novos cursos, de acordo com as necessidades sociais da população e do SUS no território.

O esforço de garantir e ampliar a participação da sociedade brasileira, sobretudo dos segmentos mais excluídos, foi determinante para dar maior legitimidade à 14ª Conferência Nacional de Saúde. Este esforço deve ser estendido de forma permanente, pois ainda há desigualdades de acesso e de participação de importantes segmentos populacionais no SUS.

Há ainda a incompreensão entre alguns gestores para com a participação da comunidade garantida na Constituição Cidadã e o papel deliberativo dos conselhos traduzidos na Lei nº 8.142/90. Superar esse impasse é uma tarefa, mais do que um desafio.

A garantia do direito à saúde é, aqui, reafirmada com o compromisso pela implantação de todas as deliberações da 14ª Conferência Nacional de Saúde que orientará nossas ações nos próximos quatro anos reconhecendo a legitimidade daqueles que compõe os conselhos de saúde, fortalecendo o caráter deliberativo dos conselhos já conquistado em lei e que precisa ser assumido com precisão e compromisso na prática em todas as esferas de governo, pelos gestores e prestadores, pelos trabalhadores e pelos usuários.

Somos cidadãs e cidadãos que não deixam para o dia seguinte o que é necessário fazer no dia de hoje. Somos fortes, somos SUS.

COMISSÃO ORGANIZADORA DA 14ª CNS

Brasília, DF, 04/12/11