Conflito e ausência de Estado

Eron Bezerra * | Portal Vermelho

Não esperava terminar o ano de 2013 tratando de mais um conflito entre os deserdados da sociedade capitalista, no caso posseiros sem terra que foram levados de várias partes do Brasil para o sul do Amazonas e povos da etnia Tenharin que ali habitam há séculos.

Ambos são vitimas do mesmo fenômeno: a ausência do estado, enquanto ente jurídico, nos 3 níveis de decisão (federal, estadual e municipal). O descaso não é pontual e tampouco restrito as atuais esferas de governo. Trata-se de um fenômeno ideológico de certa monta, já identificado por Karl Marx e Eric Hobsbawn, dentre outros pensadores.

No clássico Dezoito Brumário Marx demonstra que os camponeses são uma classe em si, mas não uma classe para si, em decorrência de sua reduzida consciência de classe, o que faz com que eles precisem ser representados e por isso mesmo nem sempre os seus interesses são adequadamente expressos.

Hobsbawn, em Os camponeses e a política, é ainda mais direto. Demonstra que em decorrência desse perfil sociológico, os camponeses não representam uma preocupação constante para os governantes, os quais, só em raros momentos dedicam alguma atenção as demandas e problemas desses homens e mulheres do campo.
É o retrato acabado do que ocorre no sul do Amazonas.

Na década de 70 milhares de posseiros sem terra foram recrutados em diferentes estados brasileiros com elevada tensão social no campo e, mobilizados pelo apelo de que era preciso “levar homens sem terra a uma terra sem homens”, como sustentava a ditadura de então, foram levados para a BR 230 – a famosa Transamazônica – para ocuparem o “vazio demográfico” da imensidão amazônica. Concepção, aliás, inspirada na pregação do naturalista Luis Agassiz, que já em 1865 defendia a ocupação da Amazônia por imigrantes europeus, sob o mesmo argumento de “vazio demográfico”.

Aos posseiros encantados com o novo eldorado que se abria diante de seus olhos os governantes de então prometeram o paraíso: terra em abundancia, infraestrutura, crédito, assistência técnica e social, logística produtiva e a eminente riqueza. Não lhes avisaram que na região viviam milhares de “índios”, alguns dos quais com longa tradição beligerante. Muitos desses posseiros não acreditavam nessas fantasias, mas não tinham para onde ir e, portanto, não lhes restava outra alternativa a não ser partir, seguir adiante em busca de uma nova aventura, de uma nova esperança.

Aos índios não prometeram nada e talvez nem julgassem necessário, pois, a julgar por certas teorias, eles eram simplesmente um estorvo a ser removido e cuja missão era agora confiada a esses posseiros, sem que os mesmos tivessem aquiescência ou mesmo conhecimento. E assim foi, até os choques inevitáveis e previsíveis.

Uma leitura mais cuidadosa em clássicos como Viagem pelo Brasil, de Spix & Martius, no qual eles relatam a saga e o comportamento dos “índios” brasileiros talvez tivesse permitido, se é que havia algum interesse nisso, se evitar tragédias anunciadas.

Spix & Martius dizem literalmente: “digno de nota é que os índios das costas, que ficaram entre os europeus, primitivamente se dedicavam à navegação e a pesca, nas suas pequenas, igaras e ubás, ao passo que as tribos caçadoras do interior do continente permaneceram no seu estado selvagem e sempre vão recuando para mais longe”. Os Tenharin são, como se percebe, índios do interior, que foram entrando, entrando, até não mais poderem entrar. E mesmo assim foram alcançados. Vão reagir, é natural!

Se aos posseiros, que já tinham um mínimo de organização social e capacidade de pressão, faltou o prometido, até mesmo a terra – de fato abundante – o que dizer dos índios, cuja ausência de compromissos era agravada pela carga de preconceitos.
Assim, enquanto os posseiros eram amontoados em lotes da “terra prometida”, os “índios” eram contidos em áreas demarcadas, ambas sem qualquer infraestrutura. Tanto posseiros quanto índios tiveram que demonstrar, na prática, que “viver é destino dos fortes, assim nos ensina, lutando, a floresta”, como ensina o hino do amazonas.

Não era uma empreitada fácil, mas inegociável, sem o que jamais poderiam sobreviver. Pois, por absoluta falta de compromisso ideológico dos governos para com a reforma agrária, até hoje, nem mesmo os lotes dos posseiros estão regularizados; as terras indígenas demarcadas são para mero usufruto, com impedimento de uso para atividade econômica de escala e restrições até mesmo para atividade de subsistência. Junte-se a isso a absoluta ausência do poder público, cuja presença só é percebida em ações repressivas, e facilmente se compreenderá que a região é um caldeirão de tensão, onde a morte é o pretexto vil para acertos de contas entre as partes conflagradas.

Nos dois últimos anos perdemos ali, assassinados por pistoleiros, os camaradas Dinho e Nardélio, duas lideranças de trabalhadores rurais que lutavam pela organização dos trabalhadores rurais e a busca de alternativas econômicas para a região.

Alternativas essas que passam, de imediato, pela regularização fundiária da região, infraestrutura material e social adequada, política ambiental educativa e não repressiva, no que diz respeito a pauta dos trabalhadores rurais. E no que diz respeito a pauta indígena a situação é mais complexa: exige que se comece a trabalhar a plena emancipação dos índios, sem que essa situação de tensão jamais desaparecera. É preciso criar o Movimento de Emancipação Indígena (MEI) e exigir profunda alteração na política da Funai que hoje é de tutela e não de emancipação dos índios.

* Secretário de Produção Rural do Amazonas, Membro do CC do PCdoB, Secretário Nacional da Questão Amazônica e Indígena e doutorando em “Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia”.