Contra a sede do mundo

Correio Braziliense – 13/03/2012

Fórum mundial começa na França em busca de uma solução para a escassez de água. Demanda por recursos hídricos deve crescer 50% até 2050, aponta estudo

Como matar a sede de mais de 7 bilhões de pessoas, promover o uso consciente da água na agricultura e na indústria e ainda melhorar a proteção ambiental? Encontrar soluções concretas para esses desafios é o principal objetivo do 6º Fórum Mundial da Água, que iniciou ontem e segue até sábado em Marselha, na França. Aproximadamente 20 mil participantes de 140 países participarão do evento, cujas edições são realizadas a cada três anos. O Brasil, detentor de 13,7% da água doce do mundo, deverá ser um dos protagonistas do evento, que fará uma prévia de algumas das questões que serão tratadas em junho, durante a Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20.

A expectativa dos organizadores é que o fórum deste ano apresente mais respostas que os eventos anteriores. O último encontro, por exemplo, realizado em 2009, em Istambul (Turquia), não conseguiu incluir em sua declaração final a noção de “direito” ao acesso à água potável e ao saneamento — questão reconhecida no ano seguinte pela Organização das Nações Unidas (ONU). “O Fórum quer pressionar os governos a falarem sobre a água, porque é um assunto pouco discutido nas reuniões dos órgãos da ONU”, disse, à agência France-Presse, Gerard Payen, conselheiro para a Água do secretariado-geral das Nações Unidas.

“Os desafios são imensos. O número de seres humanos que não têm acesso à água salubre é contabilizado em bilhões”, disse na abertura do evento o primeiro-ministro francês François Fillon. De acordo com os últimos dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), no final de 2010, 11% da população mundial — mais de 1 bilhão de pessoas — não tiveram acesso a fontes melhoradas (tratada e entregue em casa por sistemas de abastecimento) de água potável. Além disso, 2,6 bilhões de pessoas ainda não têm acesso a banheiros. E, segundo o Relatório do Desenvolvimento Hídrico Mundial (WWDR, na sigla em inglês), lançado ontem durante o fórum, a falta de água deve se acentuar nas próximas décadas.

As estimativas são de que o consumo por humanos e o uso para a produção agrícola e industrial e para a geração de energia deverão estar 50% acima do patamar atual. A principal razão será um aumento de 70% da demanda por alimentos, que gerará, sozinha, um crescimento de 19% na demanda pelo recurso. O relatório salienta ainda que 70% do consumo global de água em todo o mundo é feito pelo setor agrícola.

Além do crescimento na demanda, secas, inundações e outras consequências das mudanças climáticas vão afetar a oferta de água doce. O WWDR alerta que, já em 2030, algumas regiões do mundo, como o Sul da Ásia e a África do Sul, deverão mergulhar em um processo de seca muito intenso. “As conclusões são claras”, assegurou Irina Bokova, diretora-geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), no prefácio do relatório. “Considerando as necessidades e as demandas, a água potável não está sendo utilizada de forma sustentável. As informações disponíveis permanecem desiguais, e a gestão da água, fragmentada. Nesse contexto, os riscos são cada vez maiores.”

Uso compartilhado
Um tema delicado que os negociadores internacionais discutirão é o uso compartilhado da água. Como cerca de 15% dos países do mundo têm pelo menos metade de sua demanda de água suprida por fontes do exterior, a preservação do recurso se tornou um tema a ser debatido globalmente. A questão é espinhosa, principalmente por envolver a soberania dos países e a responsabilidade de cada um na preservação do líquido. Afinal, como uma nação pode exigir que outra adote determinadas medidas para preservar suas fontes? Ao mesmo tempo, como deixar que um país polua a água da qual dependem milhares de pessoas?

A ideia é criar formas de os países compartilharem os custos, o ônus e a responsabilidade na gestão da água, que será compartilhada por todos. “Esse ponto será fortemente apoiado pela França, mas é um assunto difícil para muitos países”, disse Guy Fradin, vice-presidente do fórum e governador do Conselho Mundial da Água. “Vamos ver o que conseguimos. É necessário avançar nos mecanismos de gestão coletiva.”

Em entrevista ao Correio, o chefe do Comitê Internacional do Fórum, Benedito Braga, explicou que a posição brasileira é a de defender a integração das políticas de gestão da água ao combate à pobreza. “O Brasil enfrenta os mesmos problemas que o restante do mundo: a urbanização acelerada, a dificuldade de gestão, a poluição dos rios urbanos. Queremos mostrar que a solução desses problemas está diretamente ligada às políticas sociais”, disse. “É preciso aproveitar melhor a capacidade de produção de alimentos de maneira irrigada. O Brasil poderia produzir em 30 milhões de hectares irrigados, mas só o faz em 4 milhões. Melhorar essa questão poderá ajudar a produzir mais comida, barateando os preços, gerando renda e promovendo avanço social”, afirmou o especialista, lembrando que o tema da Rio+20 será justamente o desenvolvimento sustentável aliado ao combate à desigualdade.

Braga vê na ampliação dos usos da água uma possibilidade de solução futura. “O transporte aquático de cargas, por exemplo, seria uma alternativa mais barata e menos poluente aos caminhões que transportam a soja do Brasil. Os rios brasileiros, dependendo da região, têm apenas 8% a 10% de sua capacidade (de navegação) aproveitada”, enumera o especialista. “Precisamos mostrar para os chefes de Estado a necessidade de botar em curso projetos de usos múltiplos da água, que incluam não apenas a execução de projetos, mas a sua manutenção e a conservação”, afirma.

Discórdia
Com ceticismo em relação ao evento, uma centena de ONGs irá realizar um “fórum alternativo” no dia 14 com 2 mil representantes da sociedade civil oriundos da Espanha, da Alemanha, dos Estados Unidos e de países da América do Sul e da África. Eles acusam o Conselho da Água de “ser o porta-voz das empresas multinacionais e do Banco Mundial”, e exigem uma gestão “pública, ecológica e cidadã” da água e uma distribuição equitativa.

Elogio ao Brasil
O secretário das Nações Unidas para a Rio +20, Sha Zukang, elogiou a organização brasileira da Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20. Segundo ele, o Brasil apresenta um desempenho melhor que o da maioria dos demais países na organização desse tipo de conferência. Questionado sobre recentes críticas que o Brasil recebeu da Fifa sobre a demora na organização da Copa do Mundo de Futebol, Zukang garantiu que o mesmo não ocorre com a Rio +20. “É natural que um país que sediará três grandes eventos como Olimpíadas, Copa e Rio +20 sofra críticas”, disse.