Conversa para boi dormir
Por César Benjamin*
Milhões de famílias norte-americanas foram convencidas de que suas residências não deviam ser consideradas lares, lugares de abrigo e convivência, mas sim ativos financeiros. Essa patologia sustentou mais uma pirâmide de operações especulativas que desabou. Nesse contexto, todos voltamos a defender a intervenção do Estado e a regulamentação. É um recomeço. Mas não se deve imaginar que seja um caminho fácil.
Há mais de 20 anos, Hyman Minsky, ganhador de um Nobel, advertia que os EUA haviam transitado para o que ele denominou “capitalismo administrador de dinheiro”. À frente do sistema não mais estavam capitães de indústria, mas gestores de ativos líquidos. Imersos em um ambiente muito competitivo, avaliados trimestralmente por sua capacidade de valorizar as carteiras que administram, esses gestores são intrinsecamente agressivos, inventivos e, no limite, inescrupulosos. Se não forem predadores competentes, acabam sendo caçados.
A composição das carteiras se altera diariamente. Apostam em tudo -no valor relativo das moedas, nos preços de commodities, nas ações em Bolsa, em variações infinitesimais das taxas de juros-, sempre operando em mercados futuros, inexistentes. Criam sem parar novos “produtos” financeiros, cada vez mais complexos e opacos. Realizam transações que movimentam bilhões, mas que se concluem sem que haja entrega física de nenhum bem.
Fazem muitas contas, mas que não têm nada a ver com o cálculo econômico, em sentido tradicional, pois vivem em um mundo de soma zero. Mesmo assim, têm lucros extraordinários. No Brasil, são conhecidos pelo eufemismo de “investidores internacionais”. Voltaire dizia que o Sacro Império Romano não era sacro nem império nem romano. Os neoliberais nos dizem que um descuido gerou uma bolha especulativa que será corrigida com algumas resoluções do Banco Central. É uma piada. No andar de cima desse sistema não há propriamente bolhas especulativas em um fluxo de investimentos.
Há bolhas de investimento em um fluxo de especulação. Especuladores não são um corpo estranho na sociedade norte-americana. Fundos de pensão, fundos mútuos e outros investidores institucionais predominam, representando milhões de pessoas e alargando a base social da atividade rentista. Todos vivem muito acima de seus próprios recursos.
A imposição, ao mundo, dessa forma de gestão da riqueza ganhou um nome de fantasia: globalização. Exigiu a construção de espaço financeiro homogêneo para além das fronteiras dos EUA. A finança tornou-se global, mas a moeda continuou nacional, o dólar. Os países que se atrelaram a esse sistema volátil precisam proteger-se acumulando reservas, ou seja, esterilizando seus próprios recursos em títulos do Tesouro dos EUA. Financiados assim pelo mundo, puderam os EUA nesta década, ao mesmo tempo, manter déficits estratosféricos, generalizar endividamentos, fazer guerras, cortar tributos e aumentar o consumo, tudo isso com um desempenho econômico rastejante – o menor avanço desde a Segunda Guerra. Essa incrível combinação só é possível porque a dívida “externa” do país e os produtos que importa estão expressos na moeda que ele mesmo fabrica.
O capitalismo administrador de dinheiro é um sistema complexo, que criou raízes fundas na sociedade americana e está associado à geopolítica do Estado. Está se tornando completamente disfuncional para o mundo, mas não temos instituições capazes de produzir uma transição ordenada. Esse é o dilema. O resto é conversa para boi dormir.
(*) César Benjamin é editor da Editora Contraponto, doutor honoris causa da Universidade Bicentenária de Aragua (Venezuela) e autor de “Bom Combate” (Contraponto, 2006). Artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo, na edição do dia 04/10/08.