Crack, desinformação e sensacionalismo

André Antunes – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio

Escassez de dados sobre consumo de crack no território nacional coloca em xeque estratégias de enfrentamento do problema

“Nós temos que dar para esse problema do crack um tratamento de surto epidêmico. Todo agravo à saúde que apresenta uma variação no número de casos que supera a série histórica, que muda o seu perfil regional, de localização dessa ocorrência e que ultrapassa grupos tradicionais e começa a acometer outros grupos [é considerado uma] epidemia. E esse é conceito que o Ministério da Saúde, o conjunto do governo e a sociedade assumem”.

A frase foi dita pelo ministro da Saúde, Alexandre Padilha, em uma coletiva de imprensa no final de 2011, durante o lançamento do programa ‘Crack: é possível vencer’, do governo federal. A ideia de que o Brasil vive uma epidemia de crack serviu de alicerce para a implantação do programa, para o qual foram destinados R$ 4 bilhões, e que trouxe algumas medidas polêmicas para frear o avanço do consumo desta droga pelo país, como a internação compulsória e o apoio às chamadas comunidades terapêuticas (a revista Poli N° 22 , de março e abril de 2012, dedicou uma matéria ao programa e seus pontos polêmicos).

Mas não são apenas nas palavras de Padilha que a preocupação com a dita ‘epidemia de crack’ se expressa. Basta, por exemplo, abrir o jornal, de onde brotam manchetes como: ‘Consumo médio de crack é de 1 tonelada por dia e sistema de saúde atende 250 mil usuários por mês’; ‘Epidemia de crack no Brasil lembra os EUA em 1980′; ‘Consumo de crack avança na capital federal’; ‘Usuários de crack na cidade podem chegar a 6 mil’; ‘Crack já chega ao interior do estado’; ‘Avanço do crack: pontos de consumo aumentam’; ‘Brasil é o maior consumidor mundial de crack’; ‘Rascunhos do futuro: epidemia de crack já provoca evasão escolar e até morte de alunos’; ‘Crack ajuda a elevar estatísticas de homicídios no país’; ‘Consumo de crack cresce sem controle no Brasil’. Vale lembrar que todas as matérias foram publicadas nos últimos seis meses.

Mas quanto disso tem embasamento em dados concretos e pesquisas confiáveis e quanto pode ser considerado alarmismo e sensacionalismo, frutos do desconhecimento a respeito da droga? Quem e quantos são realmente os usuários de crack hoje no país? Pesquisadores da área ouvidos pela Poli alertam para o fato de que os dados com abrangência nacional são esparsos e mesmo os que existem são muitas vezes negligenciados na hora de planejar políticas efetivas para dar conta do problema. Além disso, especialistas veem no pânico social causado pela enxurrada de notícias e informações desencontradas sobre o crack uma maneira de garantir apoio para medidas que ferem princípios constitucionais e de direitos humanos.

Epidemia?
Sergio Alarcon, psiquiatra e doutor em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz), explica que pesquisas de abrangência nacional acerca do consumo de crack existem, mas ressalta: “o problema não é exatamente a inexistência de pesquisas, mas que as pesquisas sobre drogas são antigas ou parciais – como, por exemplo, as baseadas em inquéritos domiciliares – ou então têm metodologias discutíveis – como as que avaliam o crescimento da circulação de uma droga a partir do número de apreensões realizadas pelos aparelhos repressivos”, complementando em seguida: “Falar que estamos vivendo uma epidemia do crack baseado nesses dados é no mínimo leviano – para não dizer absurdo – do ponto de vista científico”.

Além disso, como aponta Marco Aurélio Soares Jorge, professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), o emprego do termo ‘epidemia’ para falar do abuso de crack no país – além de referendar uma imprecisão estatística – traz para o debate público um preconceito a respeito dos usuários. “A palavra epidemia é péssima, perigosa inclusive, porque dá a ideia de uma coisa contagiosa. Vamos imaginar que eu seja usuário de crack e estou junto de você. Você vai se contagiar e começar a fumar crack? Óbvio que não, mas epidemia é assim. Acredito que falar em epidemia de crack serve até para colocar uma questão que é social como uma doença. E aí os usuários de crack passam a ser vistos como perigosos, pessoas que podem contaminar a sociedade”, critica.

Expansão do crack
Ainda que os levantamentos já realizados sejam parciais e antigos, como apontou Alarcon, a análise de alguns dados presentes neles mostra que, de fato, o consumo de crack vem se expandindo pelo território nacional. Circunscrito inicialmente a São Paulo, onde já no início da década de 1990 foram identificadas cenas de consumo da droga, o crack espalhou-se pelo Brasil, e hoje já é possível encontrá-lo em todo o país. É o que aponta o ‘II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil’, de 2005, pesquisa do Centro Brasileiro de Informações Sobre Drogas Psicotrópicas da Universidade Federal de São Paulo (Cebrid/Unifesp). Com base em cerca de 8 mil entrevistas realizadas nas 108 cidades do país com mais de 200 mil habitantes, o levantamento levou em conta tanto as drogas lícitas, como o álcool e o tabaco, quanto as ilícitas, como o crack, a maconha e a cocaína, apresentando uma estimativa do número de pessoas que já haviam feito uso na vida e as que eram dependentes de cada uma destas substâncias, como também um perfil parcial dessas pessoas. Além disso, o levantamento também traz alguns dados sobre a percepção das pessoas a respeito da facilidade de se obterem drogas e de sua periculosidade.

O estudo apontou que 0,7% dos entrevistados – o que corresponde a uma população estimada de 381 mil pessoas – já havia feito uso de crack na vida. Os maiores índices foram observados entre homens na faixa etária de 25 a 34 anos (3,2%) e de 18 a 24 anos (1,1%). No primeiro levantamento do tipo realizado pelo Cebrid, em 2001, o índice de entrevistados que havia feito uso de crack foi 0,4% – uma população estimada de 189 mil pessoas. A maior prevalência também era encontrada entre os homens adultos, mas o índice era menor do que o encontrado em 2005: 1,2% na faixa etária de 25 a 34 anos e 0,9% na faixa de
18 a 24 anos.

De acordo com o levantamento de 2005, a região Sul foi a que teve a maior porcentagem de entrevistados que afirmaram ter consumido crack na vida, 1,1%, seguida pela região Sudeste, com 0,9%, pelo Nordeste, com 0,7% e pelo Centro-Oeste, com 0,3%. Embora não tenha sido identificado consumo de crack na região Norte, o estudo apontou 0,8% de entrevistados que relataram ter feito uso da merla, que, assim como o crack, é derivada da pasta de cocaína, consumida em pedras que são fumadas. O consumo de merla também foi identificado no Centro-Oeste (0,3% dos entrevistados relataram ter feito uso), no Nordeste (0,2%), no Sul (0,2%) e no Sudeste (0,1%).

Para efeito de comparação, a pesquisa de 2005 apontou que a prevalência do consumo na vida de álcool foi de 74,6% dos entrevistados e a de tabaco foi de 44%. O estudo também apontou que 12,3% dos entrevistados eram dependentes de álcool, e, 10,1%, do tabaco. Com exceção do álcool e do tabaco, as drogas lícitas mais consumidas foram os solventes, que tiveram índice de uso na vida de 6,1% e de 0,3% de dependentes; seguidos pelos ansiolíticos, com 5,6% de uso e 0,5% de dependentes, e as drogas estimulantes do apetite, com 4,1% de uso. Entre as drogas ilícitas, a primeira em termos de consumo foi a maconha: 8,8% dos entrevistados afirmaram já ter consumido durante a vida e o índice de dependentes foi de 1,2%. Já a cocaína foi consumida por 2,9% dos entrevistados.

Com base nos dados disponíveis, o professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Tarcísio Andrade, questiona o excesso de atenção que o crack vem recebendo do poder público e da grande mídia em detrimento de outras drogas. “O uso de cocaína cheirada ainda é superior ao uso do crack, e maconha então é bastante superior. Mas nós temos falado de crack como se ele fosse prevalente sobre todas as outras drogas”, critica. Em sua opinião, a droga vem sendo usada politicamente como forma de as prefeituras garantirem recursos do programa federal de combate ao crack apoiadas na escassez de dados sobre seu consumo. “Quando o governo anunciou R$ 4 bilhões para o crack, logo em seguida saiu uma pesquisa dizendo que a grande maioria dos municípios tinha problema com seu uso. Da maneira como a nossa política funciona, se a pessoa sabe que tem recurso disponível e você chega à cidade e pergunta se tem problema com o crack, é claro que ele vai dizer que tem”, aponta Tarcisio, fazendo referência a uma pesquisa da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) que apontava que o crack era um problema em 98% dos 3.950 municípios ouvidos pela pesquisa. O levantamento foi feito com base em um questionário em que os gestores municipais tinham que responder se a cidade enfrentava ou não problemas relacionados ao consumo de drogas e, em caso de resposta afirmativa, tinham que dizer com qual droga; as únicas alternativas possíveis eram ‘crack’, e ‘outras drogas’. Tarcisio arremata: “Temos um problema com o uso de crack? Temos, mas ele não tem a dimensão que está posta. Por consequência dessa amplificação, desse pânico social, acaba-se fazendo um diagnóstico errado e tomam-se medidas supostamente terapêuticas também equivocadas”.

Crack e pânico social
A pesquisa do Cebrid também oferece alguns indícios dos efeitos na população dessa amplificação do problema. De acordo com o levantamento, 77,1% dos entrevistados consideraram que utilizar cocaína ou crack uma ou duas vezes na vida oferecia um risco grave, enquanto para a maconha esse índice foi de 48,1%. Já a ingestão de uma ou duas doses de álcool por semana oferecia risco grave para 20,8% dos entrevistados. Os dados a respeito do crack vão ao encontro de noções que se tornaram senso comum entre os brasileiros: a de que a droga ‘vicia na primeira tragada’, que ela causa rápida degradação física e moral, é causadora da desestruturação familiar, mata muito rapidamente, etc.

Sergio Alarcon afirma que muitas vezes se confunde causa e efeito quando o assunto é crack. “O crack não é uma droga distinta da cocaína: é a própria cocaína transformada em um composto disponível para o consumo através do fumo. Seu sucesso está relacionado aos baixos custos para a sua produção e aquisição. O crack se tornou a cocaína dos estratos economicamente mais baixos da população. Ele apenas substituiu como droga de preferência outras drogas que sempre foram utilizadas contra a dor física e moral produzida pela miséria. O crack desnuda a miséria humana para muitos daqueles que certamente prefeririam mantê-la na invisibilidade”, coloca. Tarcisio Andrade complementa, afirmando que a droga cai como uma luva em contextos sociais marcados pela miséria. “Quando se diz que a pessoa que usa crack vai ficar na rua, na sarjeta, esquece-se que já existia rua e sarjeta antes do crack. E provavelmente, para essas pessoas vivendo nas ruas em condições extremamente desfavoráveis, o crack dá um suporte, ao melhorar o estado de ânimo diante de uma realidade terrível. Ele é um estimulante, um antidepressivo, tira a fome do indivíduo mal alimentado. Há um ciclo vicioso mas que não começou com a droga, ela chega em um segundo momento”, conclui.
A maior dificuldade que o crack coloca, segundo Alarcon, não é tratar os usuários compulsivos, e sim dar conta de acabar com a miséria que leva muitas pessoas a consumirem a droga. “Todos os que entendem minimamente de Saúde Mental e Saúde Pública sabem o que fazer e como fazer, e por isso queremos a implantação dos equipamentos públicos preconizados pelo SUS. O problema é como cuidar para retirar da miséria essas pessoas, e como evitar a fábrica de miseráveis, de crianças e adolescentes abandonados que, uma vez nas ruas, encontrarão outras drogas muito mais devastadoras que o crack, como a exploração sexual, as doenças infectocontagiosas e a violência extrema – inclusive a violência do Estado”, diz.

No artigo ‘Causa mortis em usuários de crack’, publicado em 2006, pesquisadores do Departamento de Psiquiatria da Unifesp apontaram indícios de que a mortalidade destas pessoas estava muito mais relacionada à violência e à vulnerabilidade às doenças infectocontagiosas do que propriamente ao consumo da substância. O estudo acompanhou, por cinco anos, 131 usuários de crack da cidade de São Paulo que se internaram em um serviço de desintoxicação. Ao final de cinco anos, dos 124 pacientes localizados, 23 deles haviam morrido, sendo 13 assassinados. Outros seis pacientes morreram em decorrência da AIDS e um morreu de hepatite B. Outros dois pacientes morreram de overdose e um por afogamento. Metade dos pacientes que morreram tinha menos de 25 anos. O estudo apontou que a probabilidade de um usuário de crack morrer era sete vezes maior do que a da população geral no período estudado na cidade de São Paulo. “Muitos usuários de crack usam a droga porque ela dá mais energia e eles têm que passar mais tempo acordados, porque moram em condições de altíssimo risco de vida. É uma ilusão isso que se veicula em relação ao crack, como uma coisa avassaladora que mata rapidamente. Na verdade, essas pessoas têm uma vida muito frágil, mas não necessariamente só pelo crack”, aponta Marco Aurélio.

Os pesquisadores da Unifesp Ligia Bonacim Duailibi, Marcelo Ribeiro e Ronaldo Laranjeira, no artigo ‘Perfil dos usuários de cocaína e crack no Brasil’, fazem uma revisão de artigos acadêmicos disponíveis sobre o tema em bases de dados e no Banco de Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Segundo o levantamento, o usuário de crack tem um perfil jovem, desempregado, com baixa escolaridade, baixo poder aquisitivo, proveniente de famílias desestruturadas, com antecedentes de drogas injetáveis e comportamento sexual de risco. Esses fatores, diz o artigo, o tornam um indivíduo “de difícil adesão ao tratamento, com necessidades de abordagens mais intensivas e apropriadas a cada fase de seu tratamento”. Além disso, outras dificuldades para a manutenção do tratamento apontadas pelo artigo são “o não reconhecimento do consumo como um problema, passando pelo status ilegal e a criminalidade relacionada a estas drogas, pela estigmatização e preconceitos, pela falta de acesso ou não aceitação dos tipos de serviços existentes”. Já entre os fatores que promovem melhor adesão estão a farmacoterapia, encaminhamento a grupos de ajuda mútua, atendimento às mães e a família e atendimento médico geral. Os pesquisadores concluem afirmando que as informações relacionadas ao consumo de cocaína e crack no Brasil “ainda estão aquém do desejável, especialmente quando se vislumbram ações de política pública orientadas por evidências científicas e capazes de atender a todas as particularidades relacionadas à prevenção e tratamento dessas substâncias. Por outro lado, observou-se nos últimos vinte anos uma produção crescente de conhecimento acerca do tema […]Novos estudos epidemiológicos e levantamentos são necessários em todos os campos levantados”.

A reportagem da Poli entrou em contato com a assessoria de imprensa do Ministério da Saúde para agendar uma entrevista, mas foi infor-mada de que a pasta não falaria sobre o assunto.

Novas pesquisas prometem suprir lacunas
Atualmente estão em andamento algumas iniciativas no sentido de ampliar o conhecimento acerca do número, localização e perfil dos usuários de crack no país. Uma delas é uma pesquisa conduzida pela Fiocruz em parceria com a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), do Ministério da Justiça, coordenada pelo pesquisador Francisco Inácio Bastos, do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz). A pesquisa, explica Francisco, “é inteiramente diversa dos trabalhos anteriores, invariavelmente tributários de inquéritos domiciliares clássicos e estudos com escolares. Ambos têm imensos méritos, mas, por uma questão lógica, eles não podem e não devem ser extrapolados para uma população que justamente chamou a atenção de todos no Brasil por estar em cenas abertas de uso, e não nos domicílios ou nas escolas. Seria ótimo se estivessem, pois isso se traduziria em mais gente frequentando escolas e inseridas na vida familiar, mas, infelizmente, não é isso que ocorre”. Ele explica que a pesquisa da Fiocruz se baseia em inquéritos realizados nas próprias cenas de uso do crack, precedidos por um mapeamento dessas cenas em todo o Brasil e uma estimativa do número de usuários em cada capital brasileira através de um método desenvolvido nos Estados Unidos chamado scale-up. “Esse método procura estimar os fenômenos a partir das redes sociais dos entrevistados, ou seja, você pode não achar, por exemplo, um usuário de drogas atemorizado por uma incursão ou um traficante que não deseja, obviamente, ser identificado, mas seja lá quem for a pessoa, ela tem mãe, pai, marido, mulher, filhos, amigos, conhecidos. Portanto, se você for às redes sociais, de alguma forma as pessoas entrevistadas da população em geral terão alguma interação com os indivíduos que você deseja saber quantos são”, explica.

Ainda que as cenas de uso abertas nas chamadas ‘cracolândias’ das grandes cidades seja o fator que mais causa comoção em relação ao crack, Francisco aponta que a pesquisa – cujos resultados já estão prontos, mas aguardam definição do governo para serem divulgados – já tira algumas conclusões contrárias ao que vem sendo veiculado a respeito do consumo de crack. “Há a ideia de que tudo está concentrado nas macrocenas, as chamadas ‘cracolândias’, quando na verdade o que predomina são pequenas cenas, pouco visíveis, e extremamente móveis e dinâmicas. O segundo erro é não conseguir compreender as marcantes heterogeneidades regionais e sociais. Por exemplo, nas fronteiras do Brasil, o mercado é basicamente de pasta base e atacadista, não existem cenas nos moldes das paulistas ou cariocas”, revela o pesquisador, concluindo: “É hora de retirar o país da camisa de força da homogeneidade simplificadora. Um país que é diverso em tudo, seria homogêneo apenas em relação ao crack?”.

Segundo Tarcisio Andrade, a predominância das pequenas cenas de consumo de crack identificadas pela pesquisa coordenada por Francisco Inácio ratifica uma observação do cotidiano das pessoas que trabalham com uso de crack em uma grande cidade. “A não ser os que trabalham exclusivamente no centro da cidade, os profissionais sabem que os grandes problemas não estão nos lugares que concentram a grande população visível de usuários, que é o que chama atenção e é o que está alimentando a mídia e as políticas públicas, sobretudo por esse viés da higienização social, da repressão. Se você conhece um pouco mais os bairros, vê que ali também há um grande problema de uso de drogas e que há uma falta muito grande de perspectivas para essa população jovem, que vai muito além do que é visível no centro da cidade nas chamadas ‘cracolândias'”.

Tarcisio integrou uma equipe de pesquisadores que conduziu um estudo com usuários de crack nas cidades do Rio de Janeiro e Salvador, financiado pelo Ministério da Saúde e dirigido pelo coordenador do Programa de Estudos e Assistência ao Uso Indevido de Drogas (Projad) do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Marcelo Santos Cruz. De acordo com Marcelo, o objetivo do estudo era conhecer o perfil desses usuários de crack com vistas a fornecer subsídios para elaboração de políticas de saúde e assistência social nesses locais. Segundo ele, o estudo apontou que nestas duas cidades predominam os usuários de crack do sexo masculino, com baixa escolaridade e excluídos do mercado formal de trabalho. “São pessoas que em sua maioria até têm algum trabalho, mas que são trabalhos informais. Muitos têm envolvimento no trabalho sexual, trocam sexo por dinheiro ou drogas, e são pessoas que viviam na rua ou que até têm moradia, mas que passam muito tempo na rua em uma situação de instabilidade grande”, enumera. Outro ponto importante detectado pela pesquisa, segundo Marcelo, foi em relação ao acesso aos serviços de assistência social e de saúde. “Embora essa população relate muitos problemas de saúde, tanto físicos quanto mentais, eles acessam pouquíssimos serviços, procuram somente quando tem algum ferimento, dor e, quando procuram, de uma forma geral se sentem muito mal atendidos”, aponta, complementando: “Em geral eles procuram Unidades de Pronto Atendimento e reclamam de coisas que vão desde a burocracia – como, por exemplo, quando têm de apresentar documentos comprovando que moram na região – até a maneira como são tratados, com preconceito por estarem sujos, serem moradores de rua”. Segundo Marcelo, essa população tende a procurar mais os serviços de assistência social e locais que oferecem alimentação gratuita e abrigo, como órgãos ligados a instituições religiosas e das secretarias municipais de assistência social. Muitos deles, diz, também manifestam o desejo de parar de usar a droga. “Aí tem uma coisa que parece uma contradição: eles manifestam desejo de parar de usar a droga, mas procuram pouco esses serviços. Teríamos que entender por que, se é uma questão de não ter serviços na área, desconhecimento, isso teria que ser investigado”.

Uma diferença entre o Rio de Janeiro e Salvador refere-se à forma como o crack é consumido, segundo o coordenador do Projad. “No Rio é mais comum o uso de copos descartáveis, enquanto em Salvador é mais comum o cachimbo e também o que eles chamam de ‘pitilho’, que é o crack misturado à maconha”, diz Marcelo, que explica que esses dados são importantes na hora de planejar maneiras de lidar com essa população. “Existe uma tese de que o uso com a maconha seria uma estratégia para diminuir os efeitos negativos do crack, e até se levanta a hipótese de que isso diminuiria as lesões na boca do sujeito, que não usa o crack diretamente na lata ou no cachimbo. Com essas informações, fica mais fácil propor estratégias”.