CRACK, O PESADELO DA MATERNIDADE
FUTURO COMPROMETIDO
Correio Braziliense – 05/03/2012
Entre as mulheres, os danos causados pela dependência de crack afetam seriamente uma segunda vida: a do feto. Pesquisas indicam o alto índide de gravidez não planejada entre as usuárias da droga, muitas vezes fruto da prostituição. A situação é de tal gravidade que autoridades de saúde discutem a oferta de contraceptivos, nos casos mais urgentes, a fim de impedir a gestação por até dois anos. Aos 30 anos, Laura (foto, nome fictício) está há quatro meses em tratamento numa comunidade terapêutica de Ceilândia.
Ao consumir o crack, muitas dependentes se prostituem e acabam por engravidar de desconhecidos. A droga prejudica a saúde dos bebês, criando uma geração órfã e cheia de sequelas
Lugar de proteção, o útero é o primeiro lar na jornada da existência. Mulheres sadias acolhem, alimentam, confortam seus filhos. As que esculpem suas alegrias, medos, frustrações e fantasias nas pedras do crack se tornam uma ameaça às suas crias. São recorrentes as histórias de viciadas que não suspendem o uso da droga durante a gestação. O veneno que entorpece os sentidos da mãe ultrapassa a placenta e circula pelo corpo em formação. Os fetos são as primeiras vítimas de almas escravizadas pela química.
Os que sobrevivem a abortos induzidos pela substância podem nascer com síndrome de abstinência, insônia, agitação. Alguns terão anemia, retardo mental, má formação. Na infância, enfrentarão dificuldade de aprender. Há chances de crises nervosas, dislexia, distúrbios do sono, hiperatividade. Consequências que filhos do crack herdarão sem escolha.
Quando, aos 27 anos, Laura(*) fumou a primeira pedra, assumiu o risco de comprometer para sempre o futuro de alguém que ainda estava para nascer. Começou com a maconha, mas em poucos meses evoluiu para a cocaína, a merla e chegou ao crack. Desceu o mais fundo que podia. Conheceu a solidão, a violência, o crime, a prostituição, a doença. Dessa mulher, depende o pequeno Victor, o filho que Laura teve sem querer, fruto de uma relação sexual para sustentar seu vício. Até os seis meses de gestação, ela não sabia que estava grávida. Descobriu depois de um acidente, quando, sob o efeito da droga, foi atropelada e socorrida em um hospital.
Laura desejou abortar. Batia com a barriga na parede, continuou a fazer programas e não parou, nem por um dia, de fumar a pedra. Um dos efeitos da mistura da cocaína com solventes é a vasoconstrição, um processo de contração dos vasos sanguíneos que compromete a passagem de nutrientes e de oxigênio para o bebê, o que pode causar hemorragia intracraniana, redução do perímetro cefálico, diminuição do ritmo do crescimento, pressão alta, deficiência visual, auditiva, do coração, no esqueleto, no intestino. Outro sintoma comum entre as usuárias é a falta de apetite. Mesmo grávidas, dependentes do crack são capazes de passar dias sem se alimentar.
Na tese de graduação pelo Centro Universitário de Brasília (Uniceub) chamada “Caracterização da cultura do crack no Distrito Federal”, que observou usuários atendidos pelos Centros de Atenção Psicossocial de Álcool e Drogas (CapsAD), 96% dos entrevistados relataram que o apetite diminui com o consumo do crack. Outros 84% disseram que sentem insônia. Sete a cada 10 dependentes relataram desconforto gastrointestinal. Sintomas da droga que comprometem a gestação. Além disso, nos primeiros meses da gravidez, o feto ainda não tem a pele queratinizada, o que funciona como espécie de uma capa protetora formada de proteína. Assim, fica vulnerável a substâncias tóxicas que se acumulam no líquido amniótico e podem se tornar um reservatório da droga.
Sobrevivente
O pequeno Victor superou a falta de nutrientes, de oxigênio, a contaminação tóxica. Sobreviveu mesmo recebendo doses diárias da cocaína em pedra, via placenta. Ele nasceu abaixo do peso, sofre crises de refluxo e tem sífilis, uma doença sexualmente transmissível, que o contaminou ainda no útero. A enfermidade compromete o sistema nervoso central, o coração e, se não for corretamente tratada, pode matar. A poucos dias do parto, Laura pediu ajuda. Chegou vestida em farrapos, descalça, bateu na porta da casa de uma irmã mais velha, que lhe deu R$ 3 para chegar ao CapsAD do Guará. Lá, foi atendida e encaminhada para a comunidade terapêutica das Mulheres de Deus, em Ceilândia, onde está há quatro meses. Em abstinência desde a internação, conseguiu o direito de amamentar.
Laura conheceu as drogas por influência de amigos. Ela conta que teve pais amorosos. Na casa onde passou a infância, em Samambaia, as desavenças eram resolvidas com conversa. Mas as boas recordações não foram a principal referência da menina, que ficou órfã aos 17 anos. O pai morreu de enfizema. A mãe, de cirrose. Os dois bebiam e fumavam muito. Entregaram-se ao vício. Perderam uma firma de limpeza, o apartamento e o carro no jogo do bingo. Laura foi espelho do exemplo de destempero que viu em casa. Chegou a ter marido e um filho, hoje com 11 anos. Mas optou por viver uma aventura. E cortou o caminho com as drogas, que lhe encorajaram para a prostituição.
As viciadas costumam ter muitos parceiros, porque vendem o corpo para conseguir a pedra. Alucinadas com os efeitos da droga, não se preocupam em se proteger de doenças. O “Perfil dos usuários de cocaína e crack no Brasil”, de 2008, mostrou que a maioria das dependentes faz sexo diariamente com até cinco parceiros para manter o vício. Laura não sabe quem é o pai da criança em quem hoje deposita a própria salvação. Chegou a ter dezenas de companheiros em apenas uma noite. “Já fiz mais de R$ 1 mil em algumas horas.” Ela cobrava entre R$ 20 e R$ 50 pelo programa.
Todo o dinheiro que conseguiu com o corpo, empregou no crack. Desenvolveu compulsividade pela pedra. Passou a roubar os parceiros. “Uma mulher sabe como seduzir. Eu pegava o celular, o boné, até tênis eu já levei”, conta. Laura tem os cabelos pretos, ondulados, quase até a cintura. Os olhos castanhos, puxados, seios fartos e coxas grossas. É uma mulher bonita. Mesmo maltratada pelo desgaste que o crack provoca no corpo, atraiu advogados, professores e até dois juízes para encontros íntimos. Chegou a passar uma semana trancada com um magistrado, também viciado em crack, em um motel de Ceilândia.
Foi a mulher e a mãe do juiz que foram buscá-lo. “Elas que me pagaram o programa e o motel. Ele saiu de lá direto para uma clínica. Mas ninguém me perguntou se eu precisava de ajuda, se queria tratamento”, diz a mulher, que voltou para a rua, por onde perambulou três meses sem voltar para casa. “Um dia fui comprar pão, desviei do caminho, passei na boca de fumo e não voltei mais. Já estava viciada.”
Recomeço
Laura, que ficou viúva do primeiro marido, perdeu a guarda do filho mais velho. O menino mora com o padrasto em Samambaia. “Eu fiz os dois sofrerem demais. Quando fumava, meu filho ligava para o pai de criação e dizia: “A mãe está fumando na latinha”. Eu batia muito nele. Várias vezes meu ex-marido foi me pegar na rua, pagar as minhas dívidas. Ele não usa droga. Era apaixonado por mim, mas um dia não me procurou mais. Ninguém aguenta.”
Depois que se internou, Laura, hoje com 30 anos, tem recebido a visita do filho mais velho a cada três semanas. “Ele nunca ficou tão feliz comigo. Diz sempre que eu vou melhorar. Eu sei que vou. Quando Victor nasceu, tudo mudou, eu me senti forte, vou superar e voltar a ser uma mulher de verdade”, diz. Ela não está curada. Ainda sofre crises de abstinência. É vigiada sempre. Mas os profissionais do CapsAD e da comunidade terapêutica que dão atendimento médico e psicológico a Laura avaliam que o contato com o bebê pode ajudá-la a largar o vício no crack. Após dois meses de internação, a mulher foi liberada para amamentar. Agora são as mãos minúsculas de Victor, que nasceu de oito meses, com apenas dois 2kg, que sustentam a mãe.