De clínica e saúde pública: lições de David Capistrano
Por Ricardo Menezes* | Publicado originalmente na revista Página 13
Pertenço a uma geração que, quando iniciou os estudos no ensino superior, ainda ecoava na memória a movimentação de parcela importante da sociedade brasileira em torno de um conjunto de ideias generosas, tais como: a importância de caminharmos rumo a um Brasil soberano, próspero economicamente e socialmente justo. A instauração do Regime Militar, em 1964, veio a interromper essa dinâmica e um dos seus subprodutos foi o eco mais intenso que, naquela quadra de tempo, ouvíamos: o das lutas dos estudantes universitários e secundaristas por mais vagas nas universidades públicas e pela democratização do país. Ao menos no meu caso, a compreensão das bandeiras do movimento estudantil deu-se pela síntese de dois fortes sentimentos, ou seja, a igualdade social está umbilicalmente ligada à relação entre a organização da vida socioeconômica e às liberdades conquistadas pela sociedade.
Durante seis anos me preparei, inabalavelmente, para me especializar em neurologia clínica. Ou melhor, não tão inabalável assim, pois no segundo ano de curso, após o começo da disciplina de Higiene, o professor português Mendes Monteiro, incitou a inquietação e a reflexão individual e coletiva. Dizia ele: “eu só não sou comunista porque sou católico”, ao passo que comparava a pífia situação de saúde da maioria da população brasileira com indicadores que assinalavam a exclusão e a profunda desigualdade econômica, social e cultural vigente no país.
Graduei-me com convicção sobre a minha opção de seguir umas das mais belas e difíceis especialidades da medicina interna, a neurologia clínica. Meses depois fui aprovado em concurso público para residência médica em Medicina Interna – Neurologia Clínica, na Rede de Hospitais do Instituto Nacional de Assistência Médica e Social (INAMPS) do Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS), no Estado do Rio de Janeiro.
Mas, a dificuldade de inserção no mercado de trabalho médico existente na ocasião no Rio de Janeiro e – não tão racional assim – a busca de novas perspectivas e horizontes, levou-me, então, a escolher a cidade de São Paulo como lugar para viver.
Depois de me instalar em São Paulo entrei em contato com o médico sanitarista David Capistrano Filho, cujos familiares eu havia conhecido no início da década de 1970 no Rio de Janeiro, que, na época, era secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro, no Estado de São Paulo.
Durante nossa primeira conversa David Capistrano me fez um relato acerca do campo da Saúde no Estado de São Paulo. Informou-me que a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SES-SP), no processo de reforma do Serviço Público Estadual, ocorrida de 1967 a 1969, havia instituído a carreira de médico sanitaristae, no início de 1976, mediante convênio com o Ministério da Saúde e a Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, criado o curso concentrado para formação desses profissionais de modo a acelerar o preenchimento das lacunas existentes nos quadros da carreira. Informou-me, ainda, sobre as atribuições dos médicos sanitaristas e destacou o fato de que o provimento das direções de diversas instâncias técnico-administrativas da SES-SP era privativo dos quadros da carreira, sendo o caso do provimento das direções dos Centros de Saúde ilustrativo do viés contraditoriamente – afinal vivíamos sob o Regime Militar – democrático da carreira de médico sanitarista: o provimento não se dava por indicação, mas sim por escolha pública – periódica e baseada na classificação obtida em concursos internos pelos membros da carreira.
No entanto, o marcante deste encontro foi ouvir David Capistrano descrever fatos aparentemente triviais, porém reveladores da naturalidade com que ele explicitava, a partir da práxis, a integração da clínica e da saúde pública. Depois que lhe falei do meu interesse em trabalhar como médico neurologista, ele, na época diretor de um Centro de Saúde que prestava serviços mais complexos e iniciava a incorporação da assistência médica individual, começou a me contar as discussões que tinha com os médicos do Centro de Saúde sobre a maneira como exerciam a prática clínica. Inesquecíveis dois questionamentos que motivaram tais discussões com clínicos: o primeiro, sua crítica aos pediatras que receitavam inúmeros medicamentos e não esclareciam adequadamente as mães sobre o processo de adoecimento e terapêutico dos seus filhos e, o segundo, uma crítica técnica aos pediatras por receitarem anticonvulsivante para todas as crianças que apresentavam convulsão febril, pois, nesses casos, o emprego de anticonvulsivante é indicado apenas em circunstâncias especiais.
O que se seguiu? Corria o ano de 1979 quando fiz o concurso para frequentar o curso de especialização em Saúde Pública, obtive a aprovação e passei a fazer jus a bolsa – ajuda de custo – que era paga aos alunos enquanto durasse o curso. No ano seguinte ingressei, por concurso, nos quadros da carreira da SES-SP e fui ser médico sanitarista na vida.
* Ricardo Fernandes de Menezes é médico sanitarista da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo. Texto extraído de memorial elaborado para inscrição em concurso para professor assistente da Universidade Federal do Rio de Janeiro.