Decisão racional
O Globo – 21/02/2012
A legislação brasileira considera crime a prática de aborto. Por isso, qualquer que seja o viés (ideológico, religioso, cultural etc.) pelo qual se examine a questão da interrupção voluntária da gravidez, discussões sobre o tema convergirão necessariamente para a barreira legal que, em última análise, transforma ocorrências nesse terreno em casos de polícia. Mas, ao fixar na lei a condenação a essa prática, o legislador teve o cuidado de estabelecer exceções que fogem ao rigor do Código Penal, nos casos em que a gestação seja fruto de estupro ou implique risco de vida para a mulher.
Discute-se, agora, descriminalização do aborto também nos casos em que o feto seja portador de anencefalia (malformação que, em mais de 50% dos casos, provoca a morte do embrião durante a gestação e em que, chegando-se ao parto, o óbito é imediato ou, no máximo, obtém-se uma sobrevida de poucas horas). Ou seja, a expectativa de vida nesses casos é zero ou próximo disso. Por definição, a anencefalia é a inexistência de abóbada craniana e dos hemisférios cerebrais, letal em cem por cento das ocorrências.
A anencefalia na gravidez não é incomum no país. Portanto, há um universo considerável de mulheres que, gerando um feto condenado à morte no ventre ou logo ao nascer, vivem o risco de uma gravidez que lhes ameaça a saúde, e sofrem psicologicamente por alimentar o embrião de uma vida impossível. É um aspecto que a lei deve levar em conta. Um estudo da Sociedade Brasileira de Genética Médica mostra que nascem por dia no Brasil oito anencéfalos, cerca de três milhões por ano, ou uma criança a cada três horas. Como consequência desse tipo de gravidez, a gestante fica sob o risco de uma série de problemas de saúde, decorrentes da anomalia do feto, como hipertensão e perda do útero. É o que sustenta a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia, com base em estudo da Universidade Federal de São Paulo com 80 grávidas de anencéfalos. De acordo com a pesquisa, metade das mulheres apresentou variações no líquido amniótico – o feto não consegue deglutir o líquido, que se acumula, podendo provocar problemas renais na mãe. Registraram-se, também, casos de diabetes, parto prematuro e sofrimento psíquico. Apenas 2,8% das pacientes examinadas não tiveram complicações do parto ou na gestação.
A discussão sobre a legalização do aborto nesses casos está para voltar à pauta do Supremo Tribunal Federal, depois de sucessivos adiamentos. A Corte, precavidamente, dada a carga polêmica do tema, chegou a convocar consultas públicas para ouvir os argumentos dos dois lados que se antepõem no exame da ação – que remonta a 2004 – em que a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde pede a descriminalização dos casos de interrupção de gravidez por anencefalia do feto. O relator, ministro Marco Aurélio Mello, já tornou pública sua posição a favor do pedido ano passado, mas o Tribunal, então desfalcado de um de seus membros, decidiu transferir a decisão até que o plenário ficasse completo, o que acontece agora.
Deve-se respeitar os aspectos subjetivos (religião, moral, ética) dos argumentos contrários à descriminalização. Mas o ponto crucial do debate está no direito da mulher à preservação da própria saúde e, mais ainda, no fato de a medicina já ter provado que não há a menor possibilidade de sobrevida nos casos de anencefalia. Ademais, tribunais de todo o país têm permitido que gestantes com fetos anencefálicos abortem voluntariamente, sinal de que há amparo legal para esse tipo de intervenção.