Declaração ao Governo Brasileiro por ocasião do encontro do G20 em Pittsburg
O mundo se prepara para assistir ao terceiro encontro do G20 no final desse mês, pouco mais de um ano após a falência da agência de investimentos Lehman Brothers e a espiral de choques no mercado financeiro norte-americano e mundial que foram o marco zero da atual crise global.
A atual crise configura-se como o sintoma de um sistema econômico internacional baseado na insustentável super acumulação de capital que tem na globalização neoliberal seu motor de aceleração e propagação. No entanto, a carência de avaliações mais profundas das falhas incontornáveis desse sistema por parte dos governos é crítica. Como conseqüência as respostas à crise – que deveriam basear-se em uma verdadeira reformulação da arquitetura financeira internacional, entre outras medidas de caráter estrutural – têm se restringido a uma espécie de mea culpa, na qual tradicionais investidores e países promotores da agenda de desregulação financeira, preocupados apenas com o imediato restabelecimento de um ambiente favorável aos negócios e com a retomada do crescimento da economia global, clamam pela necessidade de maior supervisão do Estado na economia, sem propor mudanças estruturais.
Nesse contexto, uma das maiores evidências das falácias promovidas como resposta, é a insistência na retomada das negociações da Rodada de Doha como uma das soluções chave para a crise. Pelo contrário, a agenda de liberalização comercial na OMC é uma das causas da crise e de seus impactos nos países do Sul. Por um lado, a desregulação como pilar da agenda de negociações da OMC, inclusive dos serviços financeiros no âmbito do GATS, e ainda a promoção dessa desregulação pelos EUA, através dos acordos de investimentos bilaterais por todo o mundo propiciaram justamente o ambiente de instabilidade que os governos declaradamente buscam sanar. Por outro lado, os impactos da crise nos países do Sul se deram principalmente pela maior dependência desses países das exportações promovidas pelo modelo produtivo agro-exportador dominante no Sul, como também pela queda nos fluxos comerciais e de investimentos e a maior integração da economia mundial promovida pela liberalização comercial. Dessa forma, a agenda da OMC tornou os países do Sul mais interdependentes e vulneráveis a choques ocorridos no Norte.
Nos debates sobre a nova arquitetura financeira que têm se levado a cabo em diversos espaços da governança global, as estratégias do governo brasileiro têm sido de especial interesse para os movimentos e organizações sociais brasileiros. Observamos que o Brasil assumiu um papel de maior evidência no sistema internacional e que a política externa brasileira naturalmente tem se alinhado a essa mudança. Entretanto, nos causa consternação a decisão do governo brasileiro de emprestar US$ 10 bilhões de dólares ao FMI, com total desconsideração do papel nefasto que essa instituição teve em toda a região latino-americana na imposição de políticas neoliberais que agora são tardiamente diagnosticadas – apesar de décadas de denúncia por parte dos movimentos sociais – como as causas da crise.
A concentração de esforços e recursos na mudança de posição em instituições financeiras multilaterais falidas em sua lógica de atuação contribui, em última instância, para a legitimidade dos mesmos processos e atores responsáveis historicamente pela manutenção das assimetrias internacionais. Neste sentido, o reconhecimento da responsabilidade destas instituições pela crise e a imediata declaração da ilegitimidade das dívidas contraídas por países do Sul global por imposição das mesmas, são um importante passo no sentido da construção de uma nova arquitetura financeira global.
Ao mesmo tempo, apesar de ter se comprometido há mais de 2 anos com 1/5 dessa quantia para a criação do Banco do Sul, o governo brasileiro não tem feito os esforços necessários para que este instrumento fundamental de financiamento do desenvolvimento na região saia do papel. Paralelamente, os debates sobre o estabelecimento de uma arquitetura financeira regional sólida – que consideramos fundamental no processo de integração dos povos latino-americanos – não tem ganhado a atenção devida do governo brasileiro. A Cúpula da UNASUL no Equador configura-se como oportunidade de demonstração de uma vontade política renovada para com a região.
Além disso, na recente Conferência da ONU sobre a Crise Financeira e Econômica e seus Impactos no Desenvolvimento, a atuação brasileira dentro do G77 foi distante do que historicamente é conhecido como um papel fundamental na construção de uma ordem internacional alternativa. A diplomacia brasileira não dedicou os esforços necessários para o fortalecimento do G77 e até os últimos instantes se opôs à criação do Conselho Econômico Global, órgão que fortaleceria o papel da ONU no debate sobre a nova arquitetura financeira internacional. A oposição brasileira foi suprimida ao final do processo, quando os esforços dos países do Norte de barrar a proposta já eram preponderantes e venceram o embate político.
Preocupa – nos que a priorização do G20 como espaço prioritário de debate sobre a nova arquitetura financeira e a desconsideração dos esforços da Assembléia Geral da ONU têm sido a estratégia da política externa brasileira, quando não reconhecemos o G20 como um espaço legítimo e democrático para decidir os marcos do sistema econômico de todos os países e povos do planeta. A simples expansão do G8 para o G20 não acaba com o caráter excludente desse espaço. Exigimos do governo brasileiro a abertura de um debate amplo na sociedade sobre quais os espaços legítimos da governança global que o governo deve promover em sua política externa, e qual a agenda substantiva que o Brasil deve levar a cabo para que o sistema internacional caminhe rumo a uma efetiva democratização.