Decreto 10530: ‘Isso eleva o grau de privatização da atenção primária à saúde’
entrevista com Grazielle David para André Antunes publicada originalmente na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio
Nesta entrevista, a pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e conselheira do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes), Grazielle David, fala da polêmica envolvendo o decreto 10.530, publicado em Diário Oficial no dia 26 de outubro e revogado poucos dias depois pelo presidente Jair Bolsonaro em meio às críticas de que ele significaria o aprofundamento da privatização da atenção primária à saúde no Sistema Único de Saúde (SUS). O decreto, assinado pelo Ministério da Economia, previa a realização de estudos que viabilizassem parcerias entre estados e municípios com a iniciativa privada para a construção, modernização e operação de Unidades Básicas de Saúde. Para Grazielle, esse tema deve voltar à pauta do governo no futuro e sua implementação representaria um aprofundamento da privatização do SUS.
Quais foram as principais polêmicas envolvendo o decreto 10.530?
Uma primeira coisa que chamou muita atenção foi o formato. Estamos falando de um decreto e não de uma lei, que exige uma tramitação diferente, tem que ser apresentada ao Congresso, tem um debate, passa por avaliação de constitucionalidade, tem possibilidade de audiência pública, participação social, de debater na mídia. Há muito tempo a gente vem falando que esse é um governo que tem uma proposta bastante neoliberal alinhada com um perfil autoritário, e esse decreto demonstrou isso. Chamou atenção também o fato de ser um decreto muito curto e que não apresenta uma justificativa. Essa é outra questão. A quem interessa essa proposta? Por que ela está sendo apresentada? Ainda na questão da forma, outro elemento importante foi que o Ministério da Saúde, que é o responsável pelo planejamento do SUS, não assinou o decreto, só o Ministério da Economia. Também é um desrespeito ao planejamento do SUS e aos espaços de participação e controle social que são o Conselho Nacional de Saúde, a comissão intergestores. Só isso já poderia servir de base para que ele fosse anulado.
Recentemente, a gente vem escutando alguns atores relevantes da sociedade, como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, o Armínio Fraga – que é uma pessoa relevante no campo econômico e agora tem um instituto que trata sobre saúde – falando que a saúde precisava de mudanças, de inovação, do setor privado. Então já havia uma expectativa de que fossem apresentadas algumas propostas. Existe uma pressão pela privatização por dentro do SUS por diversos atores, e um muito relevante, e que tem tido como estratégia a atenção primária, é a Amil, que foi comprada há alguns anos pela United Health [conglomerado que atua na área da saúde com sede nos Estados Unidos]. Ela entrou no Brasil a partir de uma lei que permitiu o capital estrangeiro na saúde em 2015. A partir do momento em que ela entra no país a gente começa a notar uma mudança inclusive nos planos de saúde. A Amil tem uma agenda de verticalização dos processos que não era algo que os planos tinham. Os planos tinham seus prestadores de serviço e faziam uma intermediação entre o usuário que contratava o plano de saúde com os prestadores de serviços. O que a Amil faz é mudar essa lógica, ela verticaliza o plano de saúde, ela deixa de ser uma intermediária e passa a ser uma executora. Eles trouxeram para dentro dos planos de saúde uma lógica da atenção primária em saúde, de prevenção, de unidades básicas de saúde. Isso antes não existia no setor privado.
Mas a maior parte da saúde no Brasil é atendida pelo setor público, pelo SUS. Essas pessoas que estão no SUS são um mercado potencial para os planos de saúde, principalmente para esses novos planos verticalizados e essas grandes corporações do setor de saúde como é a United Health. O setor privado está vendo que só a gestão das unidades de saúde por meio de OS [Organizações Sociais] não está sendo suficiente. Eles não querem só gerir, querem ser proprietários mesmo das unidades, que é um pouco o que o decreto trazia, a possibilidade de você entrar com um investimento para construir uma unidade para depois permanecer como gestor.
Por meio da inclusão da atenção primária no Programa de Parcerias de Investimento (PPI), programa de privatizações e concessões do governo federal…
Exatamente. É isso que o decreto fazia. As unidades básicas de saúde passariam a fazer parte do PPI, então o setor privado ia poder investir, seja para construir unidades, seja para poder modernizá-las, reformá-las. E além de participar dessa construção o setor privado poderia atuar também na operação das unidades. É um mecanismo muito sério de privatização. A terceirização da gestão via OS já era muito complicada, sem nenhuma transparência. E sem transparência não tem possibilidade de monitoramento e avaliação, o que inviabiliza o controle. Mas os contratos com as OS têm que ser renovados, então pelo menos isso colocava certa segurança. Mas, com o PPI, eles iriam construir, iriam ser, de certa forma, donos daquela unidade. A gente conhece qual é a história de antes do SUS, em que o governo dava dinheiro para o setor privado para construir hospital, para fazer assistência, mas isso virava um hospital privado que nunca mais era utilizado pelo SUS. É isso que preocupa. E vale lembrar que a atenção primária está em todos os municípios brasileiros, diferente dos outros níveis de assistência. E ela não tem muita complexidade, é mais barata. A possibilidade de fazer um lucro com esse volume todo se torna grande. Mas isso eleva o grau de privatização da atenção primária à saúde.
Esse é um processo que não vem de hoje na atenção primária: já em 2016 o então ministro da saúde Ricardo Barros defendia os chamados planos de saúde populares, por exemplo, e já na gestão do ministro Luis Henrique Mandetta nós vimos, por exemplo, a criação da carteira de serviços essenciais na atenção primária, com foco em procedimentos biomédicos, bem como a criação da Agencia para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps), de natureza privada. De que forma vem se dando essa desconstrução da atenção primária dentro do SUS e como isso se alinha com o decreto 10.530?
É isso, você fez um bom levantamento. Eu somaria a portaria de mudança do modelo de financiamento da atenção primária à saúde [em 2019]. Antes, o repasse para a atenção básica era um cálculo per capita por indivíduo residente em determinada área e agora é por cadastrado. É todo um processo de focalizar o SUS, colocar ele mais como residual do que como um direito universal. A carteira de serviços eu também vejo como um mecanismo de privatização da atenção primária no SUS, que deveria ser integral. Funciona para limitar o que o SUS oferece. E o que não for oferecido pelo SUS é o setor privado que oferece. E se o setor privado assumir a gestão disso com uma oferta de serviço muito ampla, isso dificulta o lucro. Então é uma nova perspectiva. Não é mais uma garantia de direito universal e integral, mas uma garantia de direito universal dentro dos limites, mais focalizada inclusive. Vale lembrar a proposta de Cobertura Universal em Saúde, da OMS. Para muitos países que não tem a saúde como direito, isso foi e está sendo muito importante para garantir um conteúdo mínimo do direito a saúde para a população. Mas em países que têm sistemas universais de saúde, como é o caso do Brasil, isso pode, na verdade, representar um retrocesso para um nível mínimo de serviços e com isso e você abre todo o restante para o setor privado.
Qual é a sua análise sobre a revogação do decreto nesse momento? Você acredita que seja uma retirada estratégica em um momento de ganho de popularidade do SUS em meio à pandemia? Quais os sinais de que esse tema deve voltar à pauta?
Nesse governo é bastante frequente lançarem e retirarem propostas. É como se ele estivesse constantemente testando até onde ele pode ir e como a sociedade reage. Esse decreto foi um pouco isso. A repercussão não foi boa, então, ele foi revogado. Mas o governo retirar uma questão de pauta não quer dizer que ele não vá colocar isso novamente no futuro. Até porque essa pauta não é só desse governo, que é só um canal por onde correm diversas águas do neoliberalismo e do capital internacional. Hoje, os sistemas públicos de saúde representam um empecilho para os lucros do oligopólio corporativista da saúde. Então, é necessário ir acabando com essa lógica. Não que vão acabar com todo o setor público, que vai continuar existindo, mas numa lógica mais focalizada, mais restrita, de cobertura de uma cesta de serviços mais limitada. E o que ficar no público não vai ser ofertado pelo Estado. O que eles desejam é que seja uma lógica terceirizada, sem integralidade e sem servidores públicos, mas com gestão privada por meio de organizações sociais, parcerias público-privadas. É uma forma de se apropriar do orçamento público e acabar com um, digamos assim, concorrente, que é o próprio Estado nessa oferta de serviços de saúde. Na verdade, não vejo uma possibilidade de que os oligopólios corporativistas da saúde não sigam tentando implementar essa proposta no futuro.