Desafios na nova conjuntura do movimento sanitário
Roberto Passos Nogueira
Entre o final de 2010 e início de 2011, firmaram-se os contornos de uma nova conjuntura do Movimento Sanitário Brasileiro, em associação estreita com a campanha eleitoral e a posse de Dilma Roussef e de sua equipe de governo no Ministério da Saúde. O fermento da mudança vem de uma ampla e entusiasmada juventude militante do PT, bem como de antigos e novos militantes do movimento, com ou sem filiação a partidos de esquerda.
Fica claro que tal conjuntura surge associada a uma particular perspectiva política do movimento que agora se coloca em aliança ou na proximidade política com o governo Dilma. Igualmente, deu-se a ocupação de importantes cargos federais da saúde por lideranças com perfil de gestor. Com as devidas reservas, é algo parecido como o que aconteceu em 1985 no início da Nova República.
Há de se notar uma importante diferença em relação a outros períodos da era Lula. É que embora anteriormente houvesse militantes do movimento exercendo cargos destacados, incluindo o de ministro, não ocorreu a renovação e a ampliação do movimento, nem condições subjetivas e objetivas que pudessem levar à aproximação e simpatia entre o governo e o movimento. O que se pode dizer com certeza é que estamos diante de uma nova conjuntura do movimento, embora ainda não esteja clara a direção que será tomada e qual é a agenda comum.
Partindo do pressuposto que é possível aprender com a experiência passada, menciono a seguir cinco desafios colocados para o movimento por esta nova conjuntura, com o intento de que possam constituir objeto de discussão mais ampla.
1. O movimento sanitário sempre manteve bandeiras que se cruzavam com as grandes questões nacionais. Estivemos mos anos 1970-80 envolvidos profundamente com a demanda por um novo sistema de saúde, mas que não se separava da luta pelo Estado de Direito e pela democracia participativa, bem como do resgate da dívida social. O primeiro desafio que aqui enuncio é a necessidade de o movimento continuar a se apoiar na formulação de questões nacionais de magnitude similar e que o movimento não se limite a pregar a transformação institucional do SUS, por mais importante que isto seja do ponto de vista de uma política setorial. Precisamos, por exemplo, estar articulados a outros movimentos de defesa dos direitos sociais e, paralelamente, devemos defender um projeto de desenvolvimento ambiental sustentável, que não seja só inclusivo dos pobres, mas que tenha outras características progressistas, como a capacidade de controlar a ganância dos bancos, da agroindústria e do complexo médico-industrial. É incompreensível e inaceitável, por exemplo, que um movimento contemporâneo no campo da saúde seja alheio aos problemas ambientais e sua relação com o desenvolvimento. O risco atual é o de nos convertermos num movimento quase paroquial, ocupado apenas com questões setoriais e, sobretudo, com a defesa deste ou daquele modelo de gerência de hospitais e com o financiamento do sistema. Neste caso, cabe perguntar se esta tendência não o apequena de tal modo, que ele não pode mais com propriedade ser chamado de movimento sanitário, porque se desvia do debate principal que o caracteriza historicamente, ou seja, a relação entre a saúde e a sociedade, entre a saúde e as grandes questões nacionais.
2. É inevitável que haja alguma força política hegemônica, desde que não seja comprometido o caráter suprapartidário do movimento. Este exemplo foi dado pelo antigo PCB, que sempre reconheceu a importância de uma perspectiva suprapartidária para obter ampla adesão política e para evitar sua sectarização. Hoje, o PT é a força hegemônica, a despeito de sua diversidade de correntes. Mas persiste a necessidade de preservação da velha premissa de convergência suprapartidária e do respeito ao direito de divergência. Por exemplo, considero um equívoco tomar a todos os tucanos como definitivos adversários no campo da saúde, quando se sabe que muitos deles marcharam conosco ao longo de todos esses anos e talvez apenas divirjam em uma ou outra orientação no campo da gestão do SUS.
3. É importante que apenas uma parte das lideranças do movimento esteja dedicada às funções de gestão e que as questões relevantes do movimento não se confundam com os problemas ou prioridades de governo. Houve um momento, nos anos 1980, em que praticamente todas as lideranças do movimento se transformaram em gestores, muitas vezes com visões bem distintas quanto ao processo da reforma, porque motivadas por estratégias político-institucionais diferentes. É mais sadio manter a independência e, inclusive, o espírito crítico em relação às pautas de ação do governo que nós politicamente apoiamos. De outro modo, corremos o risco de sermos absorvidos por questões de curto prazo ou por táticas meramente ligadas a certas conjunturas de governo. O movimento sanitário precisa ter um horizonte político de décadas de mobilização social e não se limitar às metas definidas de modo restrito para um período de mandato do poder executivo.
4. Precisamos igualmente de um processo que se pode chamar de educação permanente dos militantes da reforma sanitária. Algo assim aconteceu nos anos 1980, mediante os cursos descentralizados de saúde pública e outros cursos de especialização e pós-graduação em saúde coletiva que sentaram as sementes da doutrina da reforma sanitária. Hoje há inúmeras outras questões de políticas sociais e econômicas, articuladas às alternativas do processo de desenvolvimento, que deveriam estar sendo devidamente estudadas pelos militantes do movimento, sobretudo pelo fato de eles constituírem em sua maioria jovens egressos de cursos de graduação em medicina e outras profissões nos quais tais questões não constituem matéria curricular. É possível que haja hoje uma grande defasagem de conhecimento entre esses militantes e os alunos ou professores da saúde coletiva. De sua parte, a saúde coletiva viu-se na contingência de ter de responder a demandas de desempenho acadêmico e se dividiu em inúmeras especialidades com dificuldade de fundamentar a ação política mediante uma visão unificada dos problemas da saúde. O CEBES está planejando um programa de mini-cursos junto aos seus núcleos, que terá início no ano corrente (2011). Esta é uma iniciativa importante, mas limitada, pois seria preciso um esforço mais intensivo e articulado com outras entidades tais como a ABRASCO para cobrirmos toda a potencial demanda de qualificação e atualização nos diversos campos das políticas públicas relevantes para o campo da saúde.
5. Por sua história, está demonstrado que o movimento sanitário nunca deixou de avançar por falta de consenso. Provavelmente nunca tivemos consenso sobre certas questões de importância estratégica. Isto não nos dividiu seriamente, nem mesmo num momento delicado como o da aprovação do capítulo da saúde na Constituinte, quando surgiu a proposta, posteriormente vitoriosa, de inserção do SUS no âmbito da seguridade social. Hoje, infelizmente, há menor tolerância com a dissensão, especialmente no campo da gestão, onde qualquer defensor do modelo de fundação estatal é visto como sério adversário pelos defensores da gerência integralmente pública. Verifica-se muitas vezes um clima de guerra entre gestores e trabalhadores do SUS, que se manifesta particularmente nos conselhos e vem comprometendo sua democracia interna. Este é o maior desafio de todos os já citados, na medida em que não constitui uma dificuldade de entendimento, mas uma fratura ampla e crescente que ameaça não somente a unidade do movimento, mas a sobrevivência do próprio SUS como projeto político.