Descriminalização e legalização do aborto

A Campanha 28 de Setembro marca nesta quarta-feira o Dia pela Despenalização e Legalização do Aborto na América Latina e Caribe.

A campanha é impulsionada pela Coordenação Regional sediada na República Dominicana e apoiada pela Rede de Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe – RSMLAC e Rede Feminista de Saúde Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos que estão divulgando a edição 2011 do Chamado à Ação, documento que estimula uma reflexão sobre as questões do aborto inseguro, sua clandestinidade e as consequências na saúde das mulheres. O documento traz um conjunto informações de avanços, ameaças e retrocessos quanto ao direito à interrupção voluntária da gravidez na região, mostrando que os Estados na maioria dos casos não vêm assumindo o compromisso de garantir a possibilidade das mulheres exercerem sua sexualidade e reprodução com autonomia.

A pauta da legalização do aborto no Brasil é parte da programação do XI Encontro Nacional da Rede Feminista de Saúde Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos com início, nesta quinta-feira, 29, às 19 horas, no Salão de Eventos do City Hotel, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul.Em seu manifesto, que pode ser conferido abaixo, a Campanha 28 de Setembro denuncia que setores conservadores continuam agindo livremente, com a conivência de muitos governos, para impedir o acesso de adolescentes, jovens e mulheres adultas à educação sexual, a todos os métodos contraceptivos e ao aborto seguro. No Brasil esta campanha é coordenada pela Rede Feminista de Saúde. A Campanha 28 de Setembro foi criada no V Encontro Feminista da América Latina e no Caribe, realizado na Argentina em 1990. As participantes escolheram esta data para marcar ações de visibilidade para a questão do aborto e reivindicações por reformas legais pró descriminalização e legalização.

Descriminalização e legalização do aborto
Avanços e desafios neste 28 de Setembro

Chamado à Ação da Campanha 28 de Setembro pela Despenalização do Aborto na América Latina e no Caribe e da Rede Feminista de Saúde

As questões relacionadas saúde e direitos reprodutivos estão ganhando terreno na agenda de discussão da nossa região, assim como as políticas públicas e, nesse sentido, parece haver mais avanços do que retrocessos. Assim, fazendo um balanço geral da situação continental por ocasião deste 28 de Setembro encontramos que deum lado persistem condições muito graves quanto à negação dos direitos humanos das mulheres, trazendo sequelas de sofrimentos terríveis e desnecessários, tambémvimos elementos esperançosos que poderão nutrir os nossos esforços ao longo do próximo ano.

Por suas implicações políticas e estratégicas para o trabalho das organizações que defendem os direitos humanos das mulheres, cabe primeiro destacar os avanços emmatéria de jurisprudência internacional obtidos no último ano:

· A concessão por parte da Comissão Interamericana de Direitos Humanos de uma Audiência Temática Regional sobre Direitos Reprodutivos das Mulheres na América Latina e no Caribe, solicitada por 12 organizações feminista da região. Em sua declaração posterior, a Comissão afirmou a necessidade de despenalizar o acesso aos serviços de saúde materna que limitam a obrigação dos Estados de garantir o direito à saúde das mulheres, declarando explicitamente que a proibição do aborto terapêutico “viola a vida, a integridade física e psicológica das mulheres “[1].

· O parecer emitido pelo Comitê de Direitos Humanos, das Nações Unidas, no caso de uma jovem argentina, LMR, a quem foi negado o direito de interromper agravidez a que tinha direito de acordo com as leis do seu país. O Comitê de Direitos Humanos criou assim jurisprudência sobre a aplicação do PactoInternacional sobre Direitos Civis e Políticos, em relação aos casos de aborto legal não punível [2].

· As recomendações feitas à Nicarágua pelo Comitê de Direitos da Criança e Adolescentes quanto a necessidade de descriminalizar o aborto em casos degravidez resultante de incesto e abuso sexual de meninas [3].

· As recomendações feitas a El Salvador pelo Comitê de Direitos Humanos sobre a necessidade de “rever a sua legislação sobre o aborto, tomar medidas paraevitar mulheres que buscam os hospitais públicos sejam denunciadas pelo crime de aborto, assim como suspender a acusação contra as mulheres pelocrime de aborto “[4].

· A decisão histórica do CEDAW, em um caso de mortalidade materna no Brasil, onde o Comitê estabeleceu a obrigação dos Estados de assegurar a todas asmulheres o acesso a serviços acessíveis, não discriminatórios e adequados a saúde materna [5]. Este é o primeiro caso de mortalidade materna decidido eminstâncias internacionais.

Estes avanços em matéria de jurisprudência internacional, que nos lembram da importância de continuar a utilizar os instrumentos e mecanismos internacionais dedireitos humanos, têm implicações importantes em vários sentidos. Em termos políticos, são um passo importante no processo de deslocar a discussão sobre o aborto daesfera da moral sexual para o âmbito dos direitos humanos o que, por sua vez, é condição imprescindível para laicizar legislação sobre o aborto na região, historicamente fundamentada em premissas religiosas.

Em termos estratégicos estes avanços são um recurso valioso para apoiar nossas exigências e demandas frente aos Estados, a começar pelos países da região (Chile, Nicarágua, República Dominicana e El Salvador), onde a proibição legal não admite sequer o aborto terapêutico. Mas as graves irresponsabilidades que incorrem osEstados em matéria de saúde e direitos reprodutivos não estão limitados a países com leis mais punitivas. Também naqueles países onde o aborto está despenalizado (Puerto Rico, México DF), assim como em outros da região, onde está permitido por causais, os Estados têm falhado sistematicamente na sua obrigação de prestarserviços oportunos e de qualidade, apelando a táticas dilatórias (tais como exigência de certificações ou atrasos na emissão de documentos), promovendo a objeção deconsciência pelos profissionais de saúde, restringindo os orçamentos para os serviços de aborto e pós-aborto, e negando a informação oportuna as mulheres sobre osserviços que estão autorizados pelas leis do país.

A Jurisprudência internacional sobre direitos reprodutivos em geral, e ao aborto em particular, fortalece a nossa posição para pressionar os governos para que cumpram oscompromissos internacionais sobre o tema, assumidos em Beijin, Cairo e nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, cujos prazos se encontram em contagemregressiva, sem que na maioria dos países se vislumbre a necessária responsabilidade governamental em matéria de políticas públicas para o seu cumprimento.

Finalmente, esta jurisprudência pode ser usada para fortalecer nossas denúncias frente às agressões que sofrem as defensoras de direitos humanos em nossa região,que vão desde as ameaças telefônicas, as sabotagens sistemática das nossas páginas da WEB, até pressões sobre os empregadores, a difamação pública e ouassassinato. De fato, para o nosso movimento é uma prioridade estratégica denunciar as agressões feita por grupos ultra-conservadores em toda a região, ante a indiferença, quando não a cumplicidade direta dos governos, com frequência estimulados por uma retórica irresponsável das igrejas que nos estigmatizam e nos infamam rotulando-nos publicamente de assassinas.

Em vários países (incluindo o Brasil e a República Dominicana), a igreja católica fez uma campanha política aberta contra parlamentares que se mostram a favor da descriminalização do aborto, além disso instigou os governos a iniciar processos judiciais e assédio de várias formas aos provedores de serviço de aborto. Uma dasmanifestações mais odiosas da pusilanimidade dos governos, quando não da cumplicidade direta, frente a esses setores ultraconservadores, se observa em El Salvador,onde em vez de aplicar as penalidades de 2 a 8 anos de prisão estabelecido no Código Penal para casos de aborto, as autoridades judiciais com frequencia tipificam ofato como “homicídio agravado por parentesco” para conseguir penas de até 30 anos de prisão para as mulheres (em sua maioria pobres) sob a acusação de interromper agravidez.

Devemos evidenciar e denunciar os comportamentos vergonhosos e antidemocrático de instituições religiosas que se autoproclamam defesoras da vida e paladinas damoral, ao mesmo tempo que atuam na promoção de medidas para aumentar o sofrimento, adoecimento e a morte de mulheres e meninas de todas as classes sociaisporem, sobretudo as mais pobres, que são sempre as principais vítimas da negação dos direitos sexuais e direitos reprodutivos. Neste sentido, é oportuno saudar osesforços de um número cada vez maior de organizações que promovem o uso correto do Misoprostol como um método abortivo que reduz os riscos de saúde associadosa clandestinidade. Dado o sucesso dessas campanhas de informação, a redução comprovada da morbidade e mortalidade associadas ao método e empoderamentopessoal das mulheres que o mesmo promove, é de esperar uma ofensiva a curto prazo por parte das igrejas, para a qual devemos estar em alerta.

Finalmente saudar os avanços observados no último ano em matéria de investigação científica e de registro de evidência na região. Os comitês de mortalidade materna e os observatórios de políticas públicas, registro de negligência e / ou violência na prestação de serviços de saúde, estudos e pesquisas qualitativas, etc, são matéria-prima indispensável para a construção das bases analíticas que ancoram as melhores estratégias políticas. Para ilustrar, consideremos que vários estudos recentesdocumentaram a complexidade do vínculos entre o aborto e a pobreza, não só na questão da maior vulnerabilidade das mulheres pobres frente a ilegalidade, mas emrelação ao papel da pobreza e os baixos níveis educativos como determinantes de atitudes mais conservadoras em relação ao aborto [6]. A constatação de que setorespobres e menos escolarizados são os que mais se opõem à despenalização deve levar ao desenvolvimento de análises mais refinadas e, portanto, a busca de estratégiaspolíticas mais efetivas.

A luta pelos direitos sexuais e direitos reprodutivos segue enfrentando grandes desafios em nossa região, como atestam as estatísticas de morte materna, morbimortalidade por aborto, gravidez na adolescência, doenças sexualmente transmissíveis e outros. Muitos dos desafios postos nos chamados à Ação para a Campanha 28 de Setembro nos anos passados continuam em plena vigência.

Seguimos vivendo sob a ameaça do fanatismo religioso que infecta cada vez mais as instituições sociais e políticas da democracia. Porém, como demonstra esteChamada à Ação, também temos razões para a esperança,para confiar que nosso compromisso com os direitos de bem-estar e felicidade das mulheres do nossocontinente pode dar os frutos para aqueles que lutam e continuam lutando.

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[1] Ver “Decisión Del Comité CEDAW De Naciones Unidas: Brasil Viola Los Derechos Humanos De Una Mujer En Caso De Mortalidad Materna”, http://www.awid.org/esl/Las-Noticias-y-Analisis/Temas-y-Analisis/Decision-del-Comite-CEDAW-de-Naciones-Unidas-Brasil-viola-los-derechos-humanos-de-una-mujer-en-caso-de-mortalidad-materna
[2] En este sentido ver: Claudia Dides C. et al. 2011. Estudio de opinión pública sobre aborto y derechos sexuales y reproductivos en Brasil, Chile, México y Nicaragua. FLACSO, Santiago de Chile; y Encuesta LAPOP, Cultura política de la democracia, 2010: Informe de las Americas, Vanderbilt University (http://www.vanderbilt.edu/lapop/ab2010.php)