Desenvolvimento e saúde
O padrão nacional de desenvolvimento é predominantemente voltado aos interesses do mercado. Isso significa que ele é baseado no fortalecimento do consumo, com prejuízo para as políticas sociais básicas que visam à consolidação dos direitos sociais.
Nesse contexto, o direito universal à saúde não ganhou o espaço que a sociedade brasileira espera. É preciso retomar e adequar a agenda política de reforma sanitária, atualizando à luz da conjuntura seus objetivos e estratégias e construindo novos consensos e arranjos sociais e políticos para a sua sustentação.
Para analisar os rumos e possibilidades atuais para o projeto da reforma sanitária brasileira no contexto contemporâneo, é necessário verificar o impacto sobre a saúde do fenômeno da globalização. Regida pelo capital e pelo mercado, a globalização vem produzindo desigualdades e assimetrias, bem como impondo um modelo de revolução tecnológica que acirra a condição de dependência e de atraso entre países, com repercussões para a saúde.
O Brasil, por exemplo, enfrenta, de forma acumulada, novas e velhas condições e situações que alimentam, reproduzem e agravam o círculo vicioso entre dependência, atraso e iniquidade, sem nenhum sinal de mudanças significativas na estrutura econômica do País.
Em razão disso, os objetivos ‘setoriais’ para a saúde enfrentam barreiras intransponíveis oriundas do próprio modelo de desenvolvimento do País, como as observadas na atual configuração dos setores público e privado. O agravamento da crise atual impõe que ou aqueles que defendem a saúde como direito social universal enfrentem as contradições desse cenário de desenvolvimento posto para o País ou os modelos que impõem limites reais ao projeto da reforma sanitária serão cristalizados.
A urgente necessidade da retomada de uma agenda política para reforma sanitária deve buscar atualizar os seus objetivos e estratégias e construir novos consensos e arranjos sociais e políticos para a sua sustentação. O Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (CEBES) tem buscado motivar este debate a fim de contribuir para a revitalização do movimento sanitário e de uma reflexão crítica sobre o nosso País, a qual deve ser feita sob o prisma da economia política. O que se espera desse processo é que faça surgir novas alternativas de transformação de nossa economia e que ao mesmo tempo provoque mudanças na política e nas atuais relações de poder da sociedade.
Faz-se pertinente revisitar, nesse sentido, o primeiro documento político do Cebes “A questão democrática da saúde”*, no qual afirmamos que a saúde deve se constituir em um direito universal, compreendida no contexto dos direitos sociais e colocada como uma condição para a cidadania, assumindo, dessa forma, o papel de parte inerente do próprio conceito do desenvolvimento. Por esse motivo o direito à saúde foi inserido na Constituição Federal, compreendida como resultado da articulação de políticas econômicas e sociais para o bem-estar coletivo.
Contemporaneamente, não existe nenhum país que possa ser considerado desenvolvido enquanto houver precariedade das condições de saúde de sua população. A defesa da visão ampla da saúde como um direito social constitui uma premissa, inclusive ética, para a definição do desenvolvimento justo e adequado para o país. É, pois, enganoso e falacioso sustentar argumentos que vinculam o crescimento econômico às responsabilidades públicas para com a saúde e, mais ainda, para justificar as políticas universais e o gasto em saúde. Já não são mais admitidos os falsos dilemas, demasiadamente difundidos no passado, pautados por uma dimensão econômica restrita.
No exercício da atualização aqui proposta para a agenda da saúde, é básica a seguinte pergunta: o que diferencia a agenda liberal da agenda da reforma sanitária? A resposta a essa pergunta deve considerar que, atualmente, a saúde conta com a simpatia e o interesse de muitos setores da sociedade e que mesmo os liberais defendem saúde como ‘direito’ e a presença do Sistema Único de Saúde como política pública. Essa situação cria ‘aparentes’ pontos de convergência dos liberais com o ideário da reforma sanitária que devem ser analisados e discriminados, particularmente quanto à temática da ‘saúde e desenvolvimento’.
Para separar joio do trigo, mais uma vez vale refletir sobre aspectos da relação entre saúde e economia e o modelo que vem sendo adotado no Brasil: a constatação das falhas de oferta de serviços alimentando o mercado e a adoção das tecnologias de baixo custo que justificam o foco na atenção primária e no contexto local municipal. É o SUS de baixa qualidade, que não compete com o mercado privado da saúde, destinado aos grupos e populações de baixa renda.
A agenda liberal reforça a saúde como um direito individual e que essas pautas são ‘igualmente’ compatíveis com o ideário liberal dos países, instituições acadêmicas e organismos internacionais que fazem parte do núcleo central da hegemonia capitalista mundial. Entretanto, a relação entre saúde e desenvolvimento não se restringe a ser um elemento constitutivo dos direitos sociais ou individuais básicos. A saúde também gera um efeito indireto sobre o crescimento econômico, decorrente apenas de sua dimensão social, o que implica a melhoria das condições de vida dos trabalhadores e do ambiente geral para os investimentos.
Nessa perspectiva, a justificativa do gasto como investimento se fortalece ao incorporar a saúde como fator indireto de crescimento. Não podemos, no entanto, cair na armadilha de restringir o debate sobre saúde e desenvolvimento à dimensão dos recursos requeridos e ao tamanho do Estado e do Mercado no provimento de bens e serviços e no financiamento.
O conjunto das dimensões aqui apresentado deve compor a defesa da saúde, mesmo nas mobilizações — definitivamente necessárias —, por mais financiamento e pela efetiva ação do Estado, que deve ser compatível com as necessidades e demandas coletivas de saúde e qualidade de vida.
A saúde é bem mais que um fator genérico nas funções econômicas de produção quando relaciona a saúde com o crescimento econômico. É por isso que a atualização da agenda da saúde deve incorporar análises que considerem os aspectos históricos e estruturais de nossa sociedade. O passado escravista e colonial é também responsável pela conformação da sociedade desigual aliada à cultura de preconceito, discriminação e ‘naturalização’ da exclusão social.
A inserção do País no plano internacional tem a ver com a característica assimétrica do progresso técnico, do conhecimento e do aprendizado. Nessa dimensão, ocorre, outra vez, um corte entre a visão liberal e o pensamento desenvolvimentista, aqui referido aos seus diversos matizes políticos e ideológicos, incluindo a matriz do pensamento da reforma sanitária.
A articulação entre saúde e desenvolvimento exige mudanças estruturais profundas em nossa sociedade, economia e política — perspectiva que confere a relevância que diferencia a necessidade de uma economia política da saúde.
Diante da necessidade, se faz mais uma vez claro para a agenda da reforma sanitária o questionamento sobre as reais condições de saúde de um povo que vive em um País com tamanha pobreza, dependente, desigual, sem acesso a conhecimento, com condições precárias de trabalho e sem capacidade de aprendizado — mesmo que esse País tenha melhorado alguns indicadores clássicos de saúde.
A saúde como qualidade de vida implica pensar em sua conexão estrutural com o desenvolvimento econômico, a equidade, a sustentabilidade ambiental e a mobilização política da sociedade. Assim, torna-se parte endógena de discussão de um modelo social e econômico de desenvolvimento. A agenda da saúde deve avançar para além do debate setorial e insulado para adentrar efetivamente na discussão e definição do padrão do desenvolvimento brasileiro.
Para a atualização da agenda, há de se considerar a trajetória do desenvolvimento brasileiro nas últimas décadas, caracterizada pela forte substituição de importação que engendrou elevadas taxas de crescimento do mundo, mas acirrou a desigualdade social e regional, sem capacitação tecnológica endógena ao longo desse período.
Mais do que isso, há de se refletir sobre mais uma pergunta que deve orientar nossa reflexão: como avançar em um projeto político para a saúde no contexto do capitalismo brasileiro, que não consegue se sustentar sobre seus próprios pés, excludente do ponto de vista social e dependente do ponto de vista do conhecimento e de sua capacidade de inovação?
A diretoria nacional, em Revista Saúde em Debate número 93
* Publicado originalmente em 1980 pela revista Saúde em debate n. 9, p. 11-14. republicado na coletânea “Saúde em debate: fundamentos da reforma sanitária”, organizada por: Sonia Fleury, ligia Bahia e Paulo Amarante, p. 149-151, Cebes: rio de Janeiro, 2007.