Desmonte do SUS: mito ou verdade?

Desmonte do SUS: mito ou verdade?[1]

 

Carlos Octávio Ocké-Reis[2] e Francisco R. Funcia[3]

 

Não há dúvidas entre os especialistas sobre o subfinanciamento do Sistema Único de Saúde (SUS).

 

Tampouco há desconfiança acerca do papel indutor das políticas de saúde sobre o emprego, a produção, a renda e a inovação tecnológica. Sua natureza redistributiva parece igualmente evidente, bem como suas implicações sobre a produtividade do trabalho, o bem-estar social e o crescimento econômico.

 

Menos claro, entretanto, é compreender seu caráter anticíclico no atual quadro recessivo da economia brasileira: seja combatendo o desemprego, seja melhorando as condições de saúde da força de trabalho, ou ainda, sedimentando terreno para retomada de um ciclo de desenvolvimento inclusivo e sustentável.

 

Diante de doenças transmissíveis, não transmissíveis e dos agravos decorrentes de causas externas, essa incompreensão é preocupante, considerando o aumento da procura pelo SUS, em parte causada pela expulsão da clientela do mercado de serviços de saúde, cujos planos empresariais deveriam ser regulados estritamente pela Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS (preço, cobertura e qualidade).

 

Como o gasto público em saúde gira apenas em torno de 4% do PIB, a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241/2016 parece arriscada para a segurança das famílias brasileiras, uma vez que, para implantar o ajuste fiscal, pretende-se estabilizar a trajetória da dívida pública subtraindo direitos sociais.

 

Essa PEC propõe um novo regime fiscal, fixando em zero o crescimento real das despesas primárias. A base para a projeção desse teto será o valor pago em 2016, que corrigido pela inflação, definirá o valor máximo da despesa do governo federal nos anos seguintes. Em resumo, para reduzir o déficit, as despesas primárias devem ser congeladas, bem como suprimidas as vinculações constitucionais, tornando o modelo de seguridade social instaurado na Constituição de 1988 letra morta.

 

No caso da saúde, essa regra foi adaptada pelo art. 104, que estabeleceu um piso, um mínimo, invés de um teto. Tendo em mente a regra constitucional (EC 86), o piso de 2017 seria igual a 15% da receita corrente líquida de 2016 mais a inflação do período. Vale dizer, essa base fixa é o parâmetro para os recursos que serão doravante destinados às ações e serviços públicos de saúde (ASPS), tendo validade durante duas décadas.

 

Para se ter uma noção da magnitude do estrangulamento financeiro, construímos dois cenários[4] para demostrar a gravidade do fato:

 

(i) se a PEC 241 não for aprovada este ano, apesar da tentativa de aplicar o dispositivo do “teto” por meio do PLDO[5] 2017, o financiamento do SUS pela União perderá aproximadamente R$ 12 bilhões (tabela 1) em comparação a EC 29, considerando o efeito do escalonamento percentual da EC 86;

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(ii) Se a PEC 241 for aprovada esse ano, a partir de um exercício contrafactual, o financiamento do SUS perderia aproximadamente R$ 148 bilhões (tabela 2, hipótese 2), quando comparamos entre 2003 e 2015 o que foi efetivamente gasto (EC 29) com a regra estipulada pela PEC 241; na hipótese 1, ao comparar a proposta da Fazenda com a regra da EC 29 (vigente naquele período), a perda seria de R$ 314 bilhões.

 

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Cabe ressaltar que a PEC não leva em conta o crescimento populacional, a especificidade da inflação setorial (maior do que a taxa média de inflação da economia) ou a própria necessidade de aumentar os recursos do SUS em relação ao PIB (pelo contrário, quanto maior for seu crescimento, menor será o gasto público em saúde).

 

Essa desconstituição do SUS se apoia na ideologia do estado mínimo. O problema é o estado, o tamanho do SUS. Em compensação não há medidas para penalizar os mais ricos, achatar as desonerações fiscais ou para reduzir os juros: o ajuste acaba se concentrando nas despesas que garantem os direitos sociais como meio de criar superávits primários crescentes, visando a diminuição da dívida pública.

 

Na prática, assistiremos o desmonte do SUS e a privatização do sistema de saúde, onde todo esforço para melhorar as condições de saúde das famílias brasileiras ficará à deriva, prejudicando os recentes avanços obtidos no combate à desigualdade, uma tragédia que lembra o mito de Sísifo.

 

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Nota e referências:

 

[1] Os autores agradecem aos demais participantes do Grupo Técnico Interinstitucional de Discussão sobre o Financiamento do SUS pelas reflexões realizadas a respeito da PEC 241/2016; porém, as análises e comentários presentes neste artigo são de nossa inteira responsabilidade.

[2] Economista e doutor em saúde coletiva (IMS-UERJ).

[3] Economista e mestre em economia política (PUC-SP).

[4] Os valores e referências da Tabela 1 e as simulações da Tabela 2 foram desenvolvidas em conjunto no Grupo Técnico Interinstitucional de Discussão sobre o Financiamento do SUS.

[5] Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias da União.

Anexos