Volta às aulas na pandemia não controlada cria centros de contágio

artigo escrito por Heleno Correa, pesquisador colaborador da Universidade de Brasília (UnB) e diretor executivo do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES)

Determinantes do processo de saúde e doença entre professores e estudantes na Pandemia de 2020.

O domínio da sensibilidade e da razão é o que habilita o exercício do poder nos tempos modernos da mídia e da propaganda, tomada no sentido original de publicidade da ideia que interessa aos grupos sociais da classe dominante. A narrativa que descreve quem “vence na vida”, ao contrário de quem poderá viver a vida, muda conforme estudantes seguem seus professores na busca de conhecimentos que só a classe alta transmite a seus filhos.

O modelo de sociedade dividida entre perdedores e vencedores predomina no senso comum da cultura anglo-saxônica enquanto o modelo solidário de investir na sabedoria do aprendiz engrandece a Pedagogia criada no Brasil a partir de 1950 com Paulo Freire (1, 2).

No Brasil do século XXI os expoentes do pensamento colonial não conseguiram – ainda – ‘emplacar’ para subir no consenso social o pior xingamento que se pode fazer a um estudante estadunidense – “Loser”. No Brasil xingar de “perdedor” não faz sentido tanto quanto xingar de “oportunista” ou “arrivista”. Frantz Fanon chegou mais forte ao Brasil assim como Paulo Freire chegou forte aos cientistas sociais e pedagogos do hemisfério norte (3, 4).

O processo de escolarização é complementar ao exercício do poder e crianças e adolescentes agem na busca do que desejam e pensam que podem alcançar. Usam como espelho o poder e a condição social de seus pais, suas famílias e vizinhos.

Os estudantes criados em ambientes de maior acesso ao poder e à riqueza podem se dedicar ao aprendizado de ciências sociais, história, arte, música, química, física e matemática. Os estudantes e professores das regiões de famílias de trabalhadores têm menos acesso a fontes de informação qualificadas sobre estas áreas do conhecimento humano. A dor de ensinar é buscar quebrar a barreira que mantém a narrativa de que filhos de classe trabalhadora não aprendem.

Para quem já vivencia o poder do trabalho bem remunerado e do acesso aos bens de consumo a expectativa é garantir esse acesso. Para quem não têm acesso ao conhecimento, a expectativa de estudar, aprender e compartilhar aprendizados é quebrada. O desejo é mobilizado por questões imediatas. As necessidades básicas são o acesso ao baixo consumo, o conhecimento de coisas práticas sem fundamentação no estudo, a busca de soluções de força que sejam capazes de enfrentar a violência que veem todos os dias.

O filho do intelectual de classe média deseja aprender, viajar, buscar formas de lazer renovadas e constituir amigos. O filho da trabalhadora pobre deseja ser forte, impor-se pela violência que a polícia usa contra seus colegas de bairro, quem sabe se opondo de imediato a todos os apelos de escolarização que solicitem prestar atenção para coisas que não são vistas entre seus amigos.

A cultura da aceitação da ignorância é baseada na aceitação de que existem compartimentos estanques entre ricos e pobres, entre trabalhadores e chefias, entre poderosos e fracos. A aceitação dessa cultura implica em ódio aos diferentes, aos mais fracos, e ao aceitar esta narrativa os jovens estudantes se chocam com seus professores que tentam quebrar as barreiras que os cercam. Esse processo é doloroso e violento quando não existe solidariedade e companheirismo.

Os professores trabalham nesse terreno de conflito social intenso. Seu investimento de energias pessoais é voltado para buscar transmitir o desejo de aprender aos estudantes e contra isso trabalham as forças sociais que criam a narrativa de que a diferença de acesso entre ricos e trabalhadores é natural, inevitável e imutável. O sofrimento de ambos, professores e estudantes se dá pelo conflito entre seus desejos.

O conflito intenso nos ambientes de ensino-aprendizagem gera as formas de adoecimento ligadas aos motivos mais conhecidos de licenças para tratamento de saúde entre trabalhadores da educação de antes da Pandemia de COVID-19, que são as doenças mentais (pânico, fobias, angústias, depressão e até suicídio), as doenças musculo-esqueléticas (Lesões de esforços repetitivos conhecidas como LER-DORT), e o agravamento de doenças comuns do envelhecimento consideradas doenças individuais, que se agravam pela forma descuidada de impor-se a rotina de trabalho como distúrbios alimentares, obesidade, diabetes, hipertensão arterial).

O que a Pandemia de COVID-19 trouxe de novidade foi a possibilidade de contágio e morte no trabalho bem como a pressão pelo teletrabalho remoto sem condições de pausa, repouso e estrutura de comunicação eficientes. Para os trabalhadores da educação há uma associação maligna entre ter de escolher o risco de morrer de contágio ou de sofrer pela exigência de produção acima da estrutura oferecida consumindo recursos pessoais e dos seus próprios lares.

O professor público e privado em “teletrabalho” se angustia preparando aulas que grava na Internet pagando com seu salário sua própria cota de telefonia, gastando seus recursos pessoais fora da escola, usando seu tempo além do programado, e se angustiando com a avaliação de qualidade inferior à que seria possível se a escola pagasse os custos de produção, gravação e exibição centralizada em estúdios próprios. O estúdio do professor angustiado é sua cozinha ou seu quarto com livros empilhados, gritos abafados de suas próprias crianças sem escola, e um telefone velho que mastiga as palavras no acesso de Internet de banda estreita.

O teletrabalho remoto agrava a condição de pressão psíquica por invadir o espaço pessoal do sono, alimentação, repouso, aprendizagem e até do mínimo lazer. Cria condições que agravam os estressores psíquicos gerados no trabalho altamente vigiado, excessivamente focado na produtividade medida por quantidade de tarefas entregues, pelo monitoramento invisível e presente acima das capacidades de resposta dos trabalhadores presenciais.

A COVID-19 é mais letal para os trabalhadores acima de 50 anos de idade, justamente os professores, administrativos, supervisores, merendeiras (os), e profissionais de limpeza, segurança e logística. É sempre bom lembrar que trabalhador da educação é uma Atividade Econômica (CNAE) e vai além das categorias ocupacionais abrangidas (CBO), em que ser professor é apenas uma das muitas classificações dos trabalhadores desse setor.

A escola presencial como modelo anterior à Pandemia é um centro de contágio inevitável. O retorno precoce ao trabalho educacional presencial aumentará o contágio se que a Pandemia tiver zerado as mortes e não seja possível rastrear contatos de pessoas adoecidas. Os ambientes de trabalho não essencial e as escolas deveriam ter sido os primeiros a entrar em fechamento no início da Pandemia. Jamais deveriam parar apenas e tão somente as escolas por que crianças sem escola em casa sem seus pais ficam na rua.

O país que não paga bônus de Pandemia para empresas não demitirem seus funcionários e não paga a Renda Básica Mínima para trabalhadores alimentarem suas famílias determina que os trabalhadores tenham que se expor, e expor seus filhos ao contágio. O país que paga resgate financeiro aos bancos e não paga suporte aos trabalhadores determina que a Pandemia da COVID-19 mate os trabalhadores, seus filhos e seus professores. Torna o trabalhador da educação descartável (5).

A entrada no fechamento ou “lock down” deveria ser simultânea para escolas e trabalhos não essenciais. A saída deveria ser igualmente planejada para só abrir ambientes de contágio quando o contágio comunitário descontrolado não existe mais.

Abrir escolas significa colocar agentes de saúde em busca de todos os comunicantes ou contactantes de todos os casos novos da doença cuja incidência estaria em declínio. O número declinante de adoecimentos novos deveria ser compatível com a capacidade de investigar, isolar casos novos e comunicantes, e testar todos que vivem e trabalham ao redor de cada caso novo de infecção. Sem capacidade de testagem e rastreamento, abrir escolas é abrir centros de contágio incontroláveis. Abrir sem testes e rastreamento significa gerar nova onda epidêmica.

Para professores que já vivem condição agravada de conflito social tão intenso, expor estudantes e profissionais da educação à perspectiva de contágio é criar condição nova de adoecimento muito séria, que poderia e deveria ser evitada.

O trabalho na educação só poderia voltar ao exercício presencial em estreita aliança com os profissionais da saúde no exercício da vigilância em saúde. Sem a vinculação entre escola e saúde o trabalho educacional presencial se tornará gerador de contágio, angústia, adoecimento e morte com perdas mais sérias entre os trabalhadores acima de 50 anos de idade, mas também com risco de mortes entre crianças e jovens estudantes.

Questões para discussão com professores, pais e estudantes:

  1. Quando seria possível testar e rastrear casos novos?
  2. Quais números ou indicadores epidemiológicos poderiam sinalizar o momento de abrir escolas?
  3. Como seria possível estruturar grupos de solidariedade para conter a COVID-19 nas escolas mesmo com o declínio da Pandemia?
  4. Quais práticas ajudariam a proteger coletivamente estudantes e professores no regresso às atividades presenciais, QUANDO ELAS se tornarem possíveis?
  5. Como prestar atenção às necessidades de cuidado dos professores adoecidos antes da Pandemia que estão sendo solicitados ao teletrabalho e construção de material didático remoto? As velhas doenças continuam presentes?
  6. Como incluir as formas de adoecimento novas trazidas pelo trabalho remoto ou teletrabalho nas práticas de prevenção?
  7. Como traduzir em ganho de desejo de aprendizado coletivo as metas produtivistas de conteúdo didático que atravessam a educação sem adoecer os professores?

Referência:

  1. Freire P. Pedagogia do Oprimido. 1 ed. Candido A, Gasparian F, Cardoso(licenciado) FH, editors. Rio de Janeiro – São Paulo: Editora Paz e Terra S.A.; 1970. 107 p.
  2. Freire P. Educação como prática da liberdade. 4a. ed. Weffort FC, Gasparian F, editors. Rio de Janeiro: Paz e Terra – Vozes; 1974. 150 p.
  3. Fanon F. Os Condenados da Terra. Feliz M, editor. Rio de Janeiro – RJ: Editora Civilização Brasileira – S.A. – Ênio da Siveira,; 1968. 275 p.
  4. Fanon F. Pele negra máscaras brancas. Naomar Monteiro de Almeida-Filho, editor. Salvador – BA: EDUFBA – Editora da Universidade Federal da Bahia – CEAO – Centro de Estudos Afro-Orientais,; 2008 2008. 194 p.
  5. Corrêa Filho HR. Sem meias palavras: quando sair do confinamento? CEBES Portal Eletronico [Internet]. 2020 25/05/2020:[4 p.]. Available from: https://www.cebes.org.br/2020/05/sem-meias-palavras-quando-sair-do-confinamento/