Diga-me com quem andas…
Por Francisco Campos*
Até 1985 eu não conhecia bem e pessoalmente a figura de Eleutério Rodriguez Neto. Eu tinha suas referências, sabia onde ele militava e sabia igualmente que ele escrevera, orientado por Cecília Donnangelo, sua dissertação de mestrado sobre Integração Docente Assistencial, tema que abracei também naquele momento.
Mapeava os vínculos deles no movimento estudantil da Universidade de Brasília (UnB), onde eu conhecia melhor o grupo que se formou em 1974 e sabia quase de cor o nome dos pioneiros que vivenciaram esta que foi uma experiência pedagógica única no Brasil. Quando o Centro Latino Americano de Tecnologia Educacional para a Saúde (CLATES/NUTES) se estabeleceu eu mapeava bem o Lobo, o Jouval, as “Marias Alices” e o Eleutério. De alguma forma havíamos nos desencontrado, quando ele foi de São Paulo para o Rio de Janeiro eu estava saindo do PESES para iniciar o internato rural Belo Horizonte.
Entretanto, ainda que sem conhecê-lo bem, o tinha em boa conta, porque toda vez que o via em reuniões e evento estava do lado de Sérgio Arouca e/ou da Cecília Donnangelo, do Ricardo Lafetá, do Moisés Goldbaum e de outros amigos. Tutti buona gente! Apesar de não conhecê-lo profundamente neste momento me lembrava de um ditado comum no interior de Minas: Diga-me com quem andas e te direi quem és! Este deve ser gente boa, eu intuía!
Na efervescência do alvorecer da Nova República, quando ainda usávamos o DDD para telefone fixo, me surpreendi quando, estando numa reunião da CAPES em Fortaleza, recebi dele uma convocação para, em meu regresso a Belo Horizonte, fazer um stop-over de algumas horas em Brasília. Ele havia sido convidado pelo Deputado Carlos Santana, indicado Ministro da Saúde, para ser o Secretário-Geral. Cargo que havia sido ocupado por um dos gigantes da saúde pública brasileira, especialmente José Carlos Seixas e naquele momento Mozart de Abreu e Lima. Intimou-me, sem chance de responder negativamente, para ocupar a Secretaria de Recursos Humanos.
Naquele momento eu era muito ligado ao Hésio Cordeiro e mais ainda ao Arouca, que estavam também na contingência de assumir o INAMPS e a FIOCRUZ. Eu sugeri que seria menos transtorno que ele convidasse o Paranaguá Santana (que já se “candanguizara”, trabalhava na OPAS) que assumisse no MS e eu iria para o Rio. Alguma função teríamos que assumir. Na oposição, havíamos proposto a reforma do setor saúde. Sabíamos que seria difícil naquele momento nos esquivarmos e não tive como me esquivar do convite. Quiseram desígnios vários, incluindo o doutorado do Paranaguá, que ele pudesse ir para o Rio e eu fosse (épocas de centralismo democrático) para a Secretaria de Recursos Humanos do Ministério da Saúde. Ontologicamente era a estrutura que precedeu à SGTES, à qual tive oportunidade de voltar anos depois.
O conheci melhor, ombreando com uma grande equipe as outras secretarias da Secretaria Geral (José Agenor, Cid Pimentel, José Augusto, Da. Elza), Uma intensa convivência, muito mais que a meramente pessoal, estabelecemos então. Em tom de brincadeira posso dizer que a discordância maior era o gosto dele pelo Cutty Sark. Eu sempre preferia ir almoçar na casa do Luis Felipe, da SNVS, onde os “taifeiros” traziam imediatamente generosas doses de Johnnie Walker Black. Aprendi na casa do Eleutério em sucessivos almoços e jantares a conviver com a Lúcia, conhecer bem a Sylvia e o Pedro Paulo ainda meninos, mas discutir, discutir e discutir.
O que mais me chamava atenção no Eleutério era a intransigência bastante radical com os princípios que moldariam o SUS. Havia momentos em que alguns propúnhamos ceder, negociar e já vinha ele com uma ótima análise estratégica: se entregarmos isto hoje seremos forçados a entregar isso e aquilo no futuro. Ficava surpreso com sua visão estratégica e de futuro, que fora moldado tanto no profundo conhecimento da Universidade, da qual ele provinha, não sem traumas, como também da experiência e conhecimento (como o Profeta Jonas) do ventre da baleia, o INAMPS, onde ele estruturara as Ações Integradas de Saúde, predecessoras do SUS.
O trabalho institucional, juntamente com Arouca, contando com a parceria de Saraiva Felipe (Secretário de Serviços Médicos do MPAS) em discussões que nem sempre foram adocicadas, por vezes tensas, levou à montagem da estratégia da 8ª Conferência Nacional de Saúde como o portal para todas as mudanças que ocorreriam dali para diante. Sabíamos da instabilidade de um governo cujo o presidente era um, mas que havia sido montado por outro. Era necessário ocupar aquele breve período para lançar mudanças que se perenizariam. Foi o que aconteceu.
Logo depois da 8ª Conferencia, Eleutério decide permanecer em Brasília, ocupar um cargo de direção na Casa Civil e voltar à sua alma-mater, a UnB. Estou certo que o que estou desfrutando hoje, o belo edifício que é o campus da FIOCRUZ na UnB, foi um dos sonhos fulcrais do Eleutério. Acompanhei de perto seus grupos de apoio à Assembleia Nacional Constituinte. Sonhei com ele uma Universidade muito mais integrada ao SUS, chegamos a sofrer desacatos por arriscarmos a “autonomia da universidade”. Tive oportunidade de acompanhá-lo, de perto, na montagem do NESP/UnB e no acompanhamento da Comissão Nacional da Reforma Sanitária e da própria Assembleia Nacional Constituinte.
Nos anos seguintes, eu já estava como consultor da OPAS em Washington, segui me valendo da inteligência e perspicácia daquele que se tornara grande amigo e referência, envolvendo-o em algumas consultorias internacionais. Pouco a pouco sofremos muitos com a enfermidade que o acometeu. Perdeu muito o Brasil com a perda, inicialmente no longo período da inconsciência e depois com a morte deste grande militante. Mesmo hoje, décadas passadas, ainda me pergunto quando grandes questões aparecem em relação ao nosso SUS, como tem sido mais frequente: O que pensaria e como agiria o Leleco nesta circunstância? E encontro por vezes luz nesta reflexão, ele segue iluminando nosso caminho!
*Francisco Eduardo Campos é professor titular da Faculdade de Medicina da UFMG e Secretário Executivo da UNASUS.